Deitado na soleira duma
porta, de um edifício decorado por desenhos e cartazes apelando à revolta,
insultando os políticos e os governantes, emblema característico daqueles
bairros sociais, todos iguais, todos colmeias com famílias empacotadas,
projetados e construídos para afastar das zonas nobres da cidade, todos aqueles
que representam, aos olhos da classe mais requintada, a pobreza que se não quer
ver.
O personagem que chegara
pela noite, deixara-se cair naquele lugar sem força para seguir caminho. Abandonado
ao seu destino, percorrera quase todos os bairros dos subúrbios de Paris. Os bairros
eram sobretudo um microcosmo, onde se vivia em conformidade com as raízes
culturais das raças que haviam feito deles o seu mundo. Nalguns os habitantes
eram sobretudo negros, emigrantes legais ou clandestinos, fugidos da pobreza e
da guerra do seu País natal, antigas colónias da áfrica francesa, outras eram
magrebinos mais inconformados e mais permeáveis ao fundamentalismo do Islão. Em
algumas ilhas começaram a surgir emigrantes dos Países mais pobres da Europa,
que haviam chegado cheios de sonhos e vivendo esperanças, que na realidade eram
utopias, e agora sentiam serem também um abcesso incómodo. A miopia dos Europeus
que constituíam a classe dominante, Alemães e alguns satélites, estava pouco a
pouco a alimentar dor, sofrimento e revolta. Faltaria apenas acender um fósforo
para que tudo a que a Europa havia representado se transformasse numa fogueira
sem controlo.
Aqueles bairros representavam um perigo, mas
era assim que a Europa, mãe da civilização moderna, tratava os que nela
procuravam o pão de cada dia.
O personagem, um vencido
pela vida, que jazia numa soleira de uma porta de um bairro da periferia de Paris,
sofria duplamente. Europeu por nascimento e cultura, havia mergulhado na
realidade. E como ela o tinha destruído.
Estava no fim do caminho
e logo na cidade que para ele representara o seu sonho. Sim porque Paris, a
cidade da cultura, dos museus, dos palácios, dos monumentos, das avenidas com
lojas de luxo, era reservada para os turistas. Os Parisienses da classe média e
da alta burguesia tinham os seus bairros com condomínios de acesso reservado.
E Eduardo, que via a
França com os olhos de um poeta apaixonado, chegou ao centro da cidade feito um
mendigo. Já percorrera quase meia Europa e passo a passo foi ficando mais
pobre, mais desiludido. Circulara por algumas Avenidas da cidade rica,
estendera a mão a pedir ajuda mas pouco ou quase nada recebeu, nem uma palavra.
Apenas sentiu a desconfiança e indiferença, e ouviu comentários que não pensara
ouvir.
Decididamente o seu lugar
não era ali. Sentiu-se escorraçado, escondeu-se para dormir num qualquer beco
mal-afamado e dia após dia, noite após noite, cheio de frio e de fome, foi
abandonando a cidade e entrando nos bairros periféricos.
E por ironia, ou talvez
não, fora no meio daquela gente pobre e negligenciada que afinal encontrara uma
mão amiga que lhe estendera um pão, uma sopa, algumas moedas e roupas velhas
com que se protegia do frio da noite.
E ele já não estendia a
mão pedindo ajuda. Para ele tudo iria terminar, naquela noite fria em que
desistira de viver. Cerrou os olhos e aguardou a chegada do último suspiro. Nada
mais podia fazer do que deixar-se levar na barca de Caronte, ou na camioneta de
recolho de lixo. Pouco lhe importava. A morte não seria pior do que o inferno e
esse, ele já o havia experimentado em vida.
Como uma folha que cai,
levemente suspensa no ar, assim sentiu que a paz ia chegar. Agora que tudo
morrera, até as memórias que teimosamente haviam resistido, estavam cada vez mais distantes perdidas num recanto de um
cérebro esgotado. Os olhos teimaram em ficar abertos e assim ficariam até que
alguém tivesse compaixão e os fechasse. Para ele tudo acabara. Era o fim, foi o
fim da viagem.
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