Amanlis
GRAÇA MORAIS
Tapeçarias de Portalegre | Centro de Arte Contemporânea Graça Morais
Câmara Municipal de Lisboa
Portugal
- A voz sumida, entrecortada pelo cansaço de uma noite em branco. Mas falava como se estivesse ausente, dizendo algo e pensando outra coisa. Estava visivelmente perturbado, e as palavras eram um murmúrio:
- Tenho estado a pensar no Carlos e nas suas dúvidas. Eu sempre pensei que ele não as tinha, parecia sempre muito positivo mesmo quando os exemplos que todos os dias vimos retratados na comunicação social, são o espelho duma geração perdida.
Luís virou-se para o amigo dizendo:
- Oh Frederico, não te preocupes com o Carlos. Vê bem, a família não tem problemas económicos, nunca lhe ouvimos contar qualquer tipo de exigências, sempre foi um bom aluno, nas matemáticas o melhor, e seguir Engenharia como ele escolheu, tudo vai dar certo. Aliás, eu continuo a pensar que as dúvidas, os erros, o caminho trocado são características de quem cresceu num ambiente familiar disfuncional. Eu conheço a família do Carlos, o Pai sempre disposto a conversar sobre os caminhos da vida e a dar conselhos de quem fala por experiência própria, a Mãe presente, sorrindo e tendo sempre uma palavra ou um gesto de carinho para os amigos que ele convidava.
O Carlos tem tudo para triunfar na vida, apesar do seu feitio insolente, não é egoísta nem indiferente ao mundo que o rodeia.
- Poderás ter razão mas eu penso que o Carlos não é a pessoa decidida que aparenta. Toda a sua frieza e por vezes até desagradável conversa, é a forma que ele encontrou para se esconder. Não tem uma personalidade complexa mas tem um complexo de inferioridade. Naturalmente nem ele sabe porquê. Mas estás enganado, a insegurança do Carlos nada tem a ver com o ambiente familiar pois, acredita, todas as famílias têm os seus momentos, as suas virtudes e os seus segredos e nada têm a ver com o dinheiro que se tem ou não tem, responde Frederico.
Faz uma pausa prolongada e depois com a voz trémula, continuou.
- Tu, por exemplo, consegues jantar com o teu irmão e com a tua Mãe, sentes que o teu irmão está a caminhar para o abismo e que a tua Mãe cansada, chora em silêncio. Mas entre os três há carinho, amizade e preocupação. Não há segredos.
Enquanto eu, na minha casa de rico, vivo e tomo as refeições sempre sozinho. O meu Pai come fora, diz que é pelo trabalho, e a minha Mãe toma as refeições numa pequena mesa da sala contígua ao quarto, vendo programas de televisão. Ela não trabalha, tem uma mulher para a ajudar e que vai todos os dias da semana. Vive desligada de tudo e nem se lembra de que tem um filho com dezassete anos. Todos os dias sai para fazer compras, mas de objectos pessoais ou coisas sem importância e depois vai à missa do meio dia. Só aquela, porque é celebrada pelo Padre que ela mais gosta. Reza e vem para casa, para o seu canto, para que ninguém dê por ela.
Enquanto eu, na minha casa de rico, vivo e tomo as refeições sempre sozinho. O meu Pai come fora, diz que é pelo trabalho, e a minha Mãe toma as refeições numa pequena mesa da sala contígua ao quarto, vendo programas de televisão. Ela não trabalha, tem uma mulher para a ajudar e que vai todos os dias da semana. Vive desligada de tudo e nem se lembra de que tem um filho com dezassete anos. Todos os dias sai para fazer compras, mas de objectos pessoais ou coisas sem importância e depois vai à missa do meio dia. Só aquela, porque é celebrada pelo Padre que ela mais gosta. Reza e vem para casa, para o seu canto, para que ninguém dê por ela.
Pouco lhe importa o que eu como, com quem ando, onde durmo, quando não regresso a casa. Nunca me disse para convidar amigos, nem no meu aniversário. A última vez que me lembro de ter tido uma festa em casa com os colegas estava a entrar na primeira classe.
Nestes anos passados e vão mais de dez, alguma coisa se passou e eu nunca me apercebi. Deixei de ter Mãe a quem contar as minhas dúvidas, encostar a minha cabeça e receber uma carícia. Aprendi a respeitar o seu silêncio sem nunca ter procurado saber porquê. E acredita, nunca a vi chorar, mas acredito que a dor está mesmo à flor da pele.
O meu Pai dá-me uma mesada generosa, por vezes um sorriso fugidio e pronto, o seu papel, a sua responsabilidade termina aí.
O meu Pai dá-me uma mesada generosa, por vezes um sorriso fugidio e pronto, o seu papel, a sua responsabilidade termina aí.
E no meio estou eu, o teu amigo Frederico, perdido numa casa grande como grande é a minha solidão a minha tristeza e a minha angústia.
Trocava contigo, talvez eu não fosse capaz de ter a força que tu demonstras ter mas, tenho a certeza, seria mais feliz. Sabia o que fazer e por quem.
Luís levantou-se, entrou na tenda e trouxe um maço de cigarros e mais duas garrafas de cerveja.
- A tua confissão despertou-me a vontade de beber mais uma cerveja e fumar mais um cigarro. A bebida tem servido também para soltar a nossa voz. Eu sinto que hoje, ao fim de tantos anos te conheci e me sinto mais amigo, mais próximo. Brindemos à vida e ao futuro. Ao meu, ao teu, ao nosso!
Frederico estendeu a mão e sentou-se ao lado do amigo enquanto acendiam os cigarros.
- Temos que ter cuidado o pasto está seco e qualquer distracção pode ocasionar um incêndio, murmurou enquanto seguia a espiral de fumo do cigarro que se perdia na noite. A espiral era como se fosse o redemoinho da sua vida.
De repente perguntou: - O que vai ser da nosso grupo? Simão & Companhia vai desaparecer na voragem da vida ou conseguiremos estabelecer um guia para não nos perdermos?
- Tu, diz Luís, és capaz de traçar um plano para manter viva a nossa companhia. Pensa no assunto, eu estarei contigo.
- Olha lá tu não estás a tentar que eu recrie o tema daquele filme que revimos há dias, “Os Amigos de Alex”, pois não?
- Par falar verdade podia ser algo assim, ou então um pacto de sangue, à maneira das máfias, e que nos ligue nos bons e os maus momentos.
- Máfia, pacto de sangue, promessas… não, a vida dá muitas voltas e os tempos são outros. Mas podíamos criar um elo de ligação, por exemplo uma página na internet, a página do Simão & Companhia. Para aceder só sendo membro do nosso grupo.Cada um poderá escrever, dar notícias, divulgar um sítio interessante, recomendar um livro, uma poesia, uma viagem. Mas com uma limitação, deverá sempre utilizar um pseudónimo, que não divulgará.
- É uma boa ideia, combinamos um local, um dia um ano em que nos voltaremos a encontrar. Aposto que vai ser uma surpresa, um reencontro de amigos que terão seguido caminhos diferentes. Eu proponho que o nosso encontro seja em Paris, porque não, no Arco do Triunfo, ás dez horas do dia 14 de Julho de 2020!
- Vamos tentar dormir sobre esta ideia. Não tarda a noite cede o seu lugar a uma manhã com sol. Tenta dormir que eu vou tentar fazer o mesmo, propõe Frederico. Amanhã acertamos os pormenores.
Procissão Corpus Christi
Amadeo de Souza-Cardoso
Amadeo de Souza-Cardoso
Centro de Arte Moderna
Fundação Calouste Gulbenkian
Lisboa, Portugal
Fundação Calouste Gulbenkian
Lisboa, Portugal
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