2 – VINTE ANOS
Do lugar da sala, onde agora de
acoitara, tinha mais tempo para relembrar coisas que com o tempo acabara por
esquecer. A aparelhagem de som, com leitores de cassetes áudio, de CD, rádio e
sobretudo leitor de discos de vinil, sobressaía, desligada a um canto da sala.
Perdera para as modernas tecnologias mas nem sempre fora uma luta justa. Lembrava
o prazer que lhe dera ouvir com o som mais puro do vinil, as canções de Cat
Stevens, Lou Reed, Neil Diamond, Chico Buarque e Maria Bethânia, Leo Ferré, e
tantos mais discos que agora repousam ao lado da aparelhagem.
Vinte anos passados desde que escolheram
viverem na casa que os enfeitiçara.
Mas como é que tudo começara?
Uma casa grande e diferente fora a
razão principal. Da janela podiam avistar uma paisagem que por entre campos
terminava no lugar onde a margem esquerda do Tejo abraçava o mar.
Pura ilusão. As promessas dos
construtores as garantias da Câmara sobre a urbanização do espaço que estava
livre depressa se alteraram. Da construção de três ou quatro lotes, com dois
pisos acima do solo, para uma revisão para quatro e acabando em sete, sete pisos,
que foram construídos a todo o vapor não fosse algum dos inquilinos entaipados
pelos monstros, recorrer à Justiça.
Mas como ele sabia, a Justiça não
era credível, não era o caminho. E sabia bem que uma doença endémica, um vírus
que se propagava através de envelopes e malas com dinheiro acabado de lavar,
havia contaminado um País em que tudo era possível desde que se pagasse a quem
tinha poder.
Burro murmurava para si, enquanto se
aproximava da janela e olhou mais uma vez para as promessas em que acreditara.
Ali estava o resultado, e a revolta, a dor era maior pois ele sabia que a tal
doença larvar, havia crescido nos departamentos das Câmaras e se havia
propagado aos grandes negócios, aos grandes contratos. E o Povo limitou-se a
assistir ao enriquecimento de tantos.
Mas na verdade não existe corrupção
neste País. Que se saiba apenas o Vale e Azevedo foi criminalizado enquanto o
perseguido Isaltino acabou por ter que passar alguns meses na prisão mais
confortável, enquanto aguarda a oportunidade de voltar à Câmara, apenas para trabalhar
a favor do bem comum.
Mas favores pagam favores, em
dinheiro, em autorizações partilhadas, em votos, tudo é transacionável. E
olhando para a minha rua essa pequena troca é evidente.
Numa nesga de terreno que sobrava do terreno
inicialmente livre, apareceu mais um lote, tipo caixote, candidato a um
merecido prémio de arquitetura saloia, com autorização para a construção com
dois andares acima do solo. Mas, com jeito e como um favor que tereia que ser
pago, alguém autorizou a habilidade. Sim, os dois pisos aprovados mas com a
altura de três. O terceiro passou a ser interior, disfarçado por paredes de
vidro à prova de luz exterior e que servem para enganar o mais distraído.
Um dos espaços do novo caixote é sede de um
movimento, dito independente, constituído por autarcas da mesma Câmara, que não
tendo sido escolhidos pela agência de emprego, vulgarmente chamada de Partido
ou PSD, tentam voltar ao lugar que por direito lhes pertenceria. Afinal para
quem servem os amigos?
Voltou ao sofá e deixou-se invadir
por um estranho torpor. Despertou com a sensação de que alguém ligara o projetor
imaginário e que na janela mágica via cenas de um filme que recordava ter visto
nos finais dos anos cinquenta. Filme a preto e branco, o título escolhido pela
distribuidora em Portugal fora Corrupção. Do filme guardara o tema, a direção
de um dos seus realizadores preferidos, Fritz Lang, e os socos tão cheios de
raiva que o Actor Glenn Ford, fez ficar na história do cinema como um dos
momentos mais altos da sua vasta carreira.
E foi como se o som do soco do Glenn
Ford o despertasse da letargia em que mergulhara. Nos anos cinquenta não havia
corrupção em Portugal, era assunto proibido pelo fascismo, e para compreender a
doença era preciso que o cinema nos informasse. E ele começara a lição vendo “The
Big Heat”.
Entretanto mais desperto ouviu na
Televisão alguém falar sobre o assunto da moda. Já não era o BPN, isto está
esquecido, nem o BPP, pouco importante, nem as comissões com as PPP que tocaram
a toda a gente. Não agora falava-se de “swaps”.
Teve um momento de esperança. Quem sabe podia
contratar um produto derivado no género e passar a viver longe, noutro País
livre do vírus que o atormentava. Um País em que a corrupção fosse um crime e
os corruptos e corruptores estivessem na prisão. Difícil? Só se for um “swap”
tóxico.
Ai, eu que comecei nas recordações e
acabei falando de política. Sai um soco para mim.
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