ESTRELA DA TARDE
Nascera e fora
criado no Bairro de Campo de Ourique e com a morte dos Pais ficara com a casa
que agora ocupara depois da zanga com Filomena. Foi a pé percorrendo a rua que
não bem conhecia. Pouca gente, o Bairro tinha uma população envelhecida que se
resguardava da noite. Caminhava lembrando os cafés que já não existiam, as
lojas entretanto fechadas, o jardim sem jovens. Conhecia a noite na cidade, mas
a outra noite, a dos perigos, dos desencontros, da miséria e do abandono. Mas
agora no silêncio das ruas que ia percorrendo até casa, sentia uma nova noite,
tão calma que lhe apetecia abraçar. A casa era confortável mas tão vazia que se
tornava fria. Faltava calor humano. Olhou para trás e lembrou.
“Apenas
por orgulho, não fora capaz de reconhecer o equívoco, que a sua vaidade
masculina alimentara, que mais não fora que uma relação platónica mal
resolvida. Não dera qualquer explicação quanto Filomena o confrontou e pior,
sentira-se o ofendido. Cometera o primeiro erro, reconhecia. Afinal teria sido
fácil justificar que fora um momento platónico, mas não foi capaz. Arrumara
meia dúzia de objetos pessoais, enchera uma mala de roupa, empacotou a papelada
solta e saiu de casa, instalando-se no apartamento onde agora estava. Na realidade
confiava que a sua situação, fruto de uma birra, em breve voltaria à
normalidade. Acreditara nisso, mas não dera o primeiro passo. Filomena não
tardaria a telefonar para o convidar a regressar, foi a ideia que sempre
dominou os dias tristes. Cometera um segundo erro. Filomena não fez o gesto que
ele esperava.
Para sua
surpresa, a mulher, que exercia advocacia num escritório de prestígio, decidira
também, abandonar a casa comum e ir viver para casa dos Pais. Ele não tinha
família próxima. Ficou só. Abdicou um pouco do seu orgulho e conseguiu que a
mulher se encontrasse com ele, ocasionalmente, mas nunca manifestando o desejo,
verdadeiro, de reatar a vida em comum. Nos encontros esporádicos, falavam como
dois amigos, evitando o que os separara. Julgara que pouco a pouco, a situação
iria ficar esquecida. Todavia, subestimara o carácter da mulher. O que mais lhe
custava era que ele amava Filomena e sentia-lhe a falta, mas teimava em não o confessar
e era demasiado orgulhoso para pedir perdão. Quando Filomena, a meio de uma
conversa inócua, e perante o enfado com que ele a ouvia falar do seu trabalho,
lhe perguntou, num repente, se ele queria o divórcio, estremeceu e respondeu
negativamente. Mas aquela simples pergunta, causara-lhe um estranho mal-estar.
Ela já teria outra relação, concluíra roído de ciúmes.”
Optou
por fumar mais um cigarro, abrindo a janela da sala para deixar entrar a aragem
fresca que se sentia. Mas a dor de cabeça não desapareceu. Nos primeiros
momentos da sua nova situação, António Pedro confortara-se, pensando nas
vantagens que poderia obter, sendo um homem liberto de compromissos. Queria
viajar por África, mas Filomena era muito citadina e dissera sempre não,
optando pela Itália a França e, sobretudo Nova Iorque. Agora só e sem nada que
o impedisse, teria a oportunidade de cumprir esse sonho, mas o desejo depressa
seria esquecido na preguiça e na desilusão de cada dia que passava. Ao deixar
um trabalho muito intenso e absorvente, teria tempo para escrever as memórias e
ler os livros que se amontoavam no escritório. Rejubilava com isso, contudo
nada fizera.
A
separação fora um erro. Ele sofria mais quando encontrava a Mulher e a via mais
alegre. Ela sempre se cuidara e tinha muito gosto na forma com que se vestia. E
continuava assim. Ele, por sua vez, apesar de vaidoso, sempre escondera esse
sentimento, aparentando distância e indiferença, algum charme discreto,
alimentando assim os olhares cheios de promessas das mulheres que conhecera.
Por ironia os colegas entendiam que esse comportamento era uma estratégia de um
homem tímido e inseguro. E sabiam o que diziam. Todavia agora perdera o encanto
que lhe reconheciam e até começou a descuidar a sua apresentação. Nada
aconteceu como previra. Menos de 6 meses depois da reforma, já estava cansado.
Os dias custavam a passar e começou a ficar sentado em frente da TV, sonolento,
e dia a dia mais alheio do mundo. Dera voltas à cabeça, para encontrar qualquer
coisa, que lhe ocupasse o tempo. Era egocêntrico bastante, para pensar que tudo
se devia concentrar à sua volta. Em consequência, qualquer atividade que
implicasse partilha ou supervisão dera sempre mau resultado. Os outros não o
compreendiam nem aceitavam a sua, por vezes, irritante impertinência.
Sentira-se
frustrado e incompreendido, e concluíra que o que quisesse fazer teria de ser
sozinho. Só não sabia era o quê.
Assustou-se,
passeava no Castelo quando um antigo colega lhe pousou a mão das costas e
disse:
- António,
estás a cumprir alguma pena? Olha-te ao espelho, recomeça a viver. Estás tão
triste e nem reparas na beleza do rio iluminado pela estrela da tarde. Acorda
companheiro!
A decisão, na realidade a única decisão que fora capaz de
tomar desde que saíra da Polícia e de casa, não fora um caminho de rutura. Nada
fora fácil, em tudo errara ou desistira. O caminho não o fez, retomou-o, ainda
que com algumas cambiantes. O vírus estava lá, todas as suas qualidades e
defeitos se mantiveram. António Pedro voltara ao rebanho. E de tal modo que,
quando a Administração do condomínio, lhe sugerira, a conveniência de colocar
na placa de entrada do edifício, o nome e a atividade, decidiu indicar,
simplesmente, o que sempre fora:
António
P. Castro – Investigador
Demorou algum tempo a arrumar as estantes com os livros
que lhe interessavam, contou à ex-mulher e alguns amigos o que tinha decidido
fazer e ficou esperando o seu primeiro cliente.
Sem comentários:
Enviar um comentário