segunda-feira, 12 de agosto de 2019

ESTRELA DA TARDE


                                                       ESTRELA DA TARDE

 

 Nascera e fora criado no Bairro de Campo de Ourique e com a morte dos Pais ficara com a casa que agora ocupara depois da zanga com Filomena. Foi a pé percorrendo a rua que não bem conhecia. Pouca gente, o Bairro tinha uma população envelhecida que se resguardava da noite. Caminhava lembrando os cafés que já não existiam, as lojas entretanto fechadas, o jardim sem jovens. Conhecia a noite na cidade, mas a outra noite, a dos perigos, dos desencontros, da miséria e do abandono. Mas agora no silêncio das ruas que ia percorrendo até casa, sentia uma nova noite, tão calma que lhe apetecia abraçar. A casa era confortável mas tão vazia que se tornava fria. Faltava calor humano. Olhou para trás e lembrou.

            “Apenas por orgulho, não fora capaz de reconhecer o equívoco, que a sua vaidade masculina alimentara, que mais não fora que uma relação platónica mal resolvida. Não dera qualquer explicação quanto Filomena o confrontou e pior, sentira-se o ofendido. Cometera o primeiro erro, reconhecia. Afinal teria sido fácil justificar que fora um momento platónico, mas não foi capaz. Arrumara meia dúzia de objetos pessoais, enchera uma mala de roupa, empacotou a papelada solta e saiu de casa, instalando-se no apartamento onde agora estava. Na realidade confiava que a sua situação, fruto de uma birra, em breve voltaria à normalidade. Acreditara nisso, mas não dera o primeiro passo. Filomena não tardaria a telefonar para o convidar a regressar, foi a ideia que sempre dominou os dias tristes. Cometera um segundo erro. Filomena não fez o gesto que ele esperava.

            Para sua surpresa, a mulher, que exercia advocacia num escritório de prestígio, decidira também, abandonar a casa comum e ir viver para casa dos Pais. Ele não tinha família próxima. Ficou só. Abdicou um pouco do seu orgulho e conseguiu que a mulher se encontrasse com ele, ocasionalmente, mas nunca manifestando o desejo, verdadeiro, de reatar a vida em comum. Nos encontros esporádicos, falavam como dois amigos, evitando o que os separara. Julgara que pouco a pouco, a situação iria ficar esquecida. Todavia, subestimara o carácter da mulher. O que mais lhe custava era que ele amava Filomena e sentia-lhe a falta, mas teimava em não o confessar e era demasiado orgulhoso para pedir perdão. Quando Filomena, a meio de uma conversa inócua, e perante o enfado com que ele a ouvia falar do seu trabalho, lhe perguntou, num repente, se ele queria o divórcio, estremeceu e respondeu negativamente. Mas aquela simples pergunta, causara-lhe um estranho mal-estar. Ela já teria outra relação, concluíra roído de ciúmes.”

            Optou por fumar mais um cigarro, abrindo a janela da sala para deixar entrar a aragem fresca que se sentia. Mas a dor de cabeça não desapareceu. Nos primeiros momentos da sua nova situação, António Pedro confortara-se, pensando nas vantagens que poderia obter, sendo um homem liberto de compromissos. Queria viajar por África, mas Filomena era muito citadina e dissera sempre não, optando pela Itália a França e, sobretudo Nova Iorque. Agora só e sem nada que o impedisse, teria a oportunidade de cumprir esse sonho, mas o desejo depressa seria esquecido na preguiça e na desilusão de cada dia que passava. Ao deixar um trabalho muito intenso e absorvente, teria tempo para escrever as memórias e ler os livros que se amontoavam no escritório. Rejubilava com isso, contudo nada fizera.

            A separação fora um erro. Ele sofria mais quando encontrava a Mulher e a via mais alegre. Ela sempre se cuidara e tinha muito gosto na forma com que se vestia. E continuava assim. Ele, por sua vez, apesar de vaidoso, sempre escondera esse sentimento, aparentando distância e indiferença, algum charme discreto, alimentando assim os olhares cheios de promessas das mulheres que conhecera. Por ironia os colegas entendiam que esse comportamento era uma estratégia de um homem tímido e inseguro. E sabiam o que diziam. Todavia agora perdera o encanto que lhe reconheciam e até começou a descuidar a sua apresentação. Nada aconteceu como previra. Menos de 6 meses depois da reforma, já estava cansado. Os dias custavam a passar e começou a ficar sentado em frente da TV, sonolento, e dia a dia mais alheio do mundo. Dera voltas à cabeça, para encontrar qualquer coisa, que lhe ocupasse o tempo. Era egocêntrico bastante, para pensar que tudo se devia concentrar à sua volta. Em consequência, qualquer atividade que implicasse partilha ou supervisão dera sempre mau resultado. Os outros não o compreendiam nem aceitavam a sua, por vezes, irritante impertinência.

Sentira-se frustrado e incompreendido, e concluíra que o que quisesse fazer teria de ser sozinho. Só não sabia era o quê.

Assustou-se, passeava no Castelo quando um antigo colega lhe pousou a mão das costas e disse:

- António, estás a cumprir alguma pena? Olha-te ao espelho, recomeça a viver. Estás tão triste e nem reparas na beleza do rio iluminado pela estrela da tarde. Acorda companheiro!

 

A decisão, na realidade a única decisão que fora capaz de tomar desde que saíra da Polícia e de casa, não fora um caminho de rutura. Nada fora fácil, em tudo errara ou desistira. O caminho não o fez, retomou-o, ainda que com algumas cambiantes. O vírus estava lá, todas as suas qualidades e defeitos se mantiveram. António Pedro voltara ao rebanho. E de tal modo que, quando a Administração do condomínio, lhe sugerira, a conveniência de colocar na placa de entrada do edifício, o nome e a atividade, decidiu indicar, simplesmente, o que sempre fora:

          António P. Castro – Investigador

Demorou algum tempo a arrumar as estantes com os livros que lhe interessavam, contou à ex-mulher e alguns amigos o que tinha decidido fazer e ficou esperando o seu primeiro cliente.



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