1 - UMA AMIZADE IMPROVÁVEL
De repente lembrei um amigo que perdi na guerra na Guiné.
Fora uma amizade nascida em Mafra, nas noites frias e chuvosas do começo do Inverno de 1963. O local, o quartel, a tapada, os montes e vales dos arredores, as praias agrestes, as marchas nocturnas encharcados pela chuva que não dava tréguas, tudo foi parte da especialidade de atirador de infantaria do curso de oficiais milicianos. No final cada um seguiria o seu destino e a direcção era apenas uma, a guerra colonial. Fora uma amizade improvável entre duas pessoas muito diferentes. O Mendonça, estudante universitário a frequentar o curso de medicina em Coimbra, recusara pedir mais um adiamento e fora incorporado no ano de 1963. Era um rapaz franzino, quase imberbe, apesar dos vinte e cinco anos de idade, mas de rosto triste e um sorriso amargo e descrente. Eu, pelo contrário, filho de gente humilde, soldado cadete apenas porque tinha sido considerado o melhor aluno da recruta dos sargentos milicianos, com apenas vinte um anos, apaixonado pela aventura da guerra, forte e resistente como um camponês, cumpridor da disciplina e apontado como exemplo de capacidade de comando e de liderança.
E foi na famosa camarata quinze do Convento de Mafra, um espaço onde se amontoavam mais de duas centenas de soldados cadetes, local sem regras nem lei, onde apenas uma vez o oficial de dia tentou entrar para recuar de imediato e desistir. A recepção fora de tal modo que nunca mais tivemos uma visita. Foi ali que o guerreiro sonhador e o Mendonça pacifista convicto escolheram ficar lado a lado, num canto próximo da porta de entrada da caserna.
No meu armário, para além de guardar a roupa que me fora distribuída e a velha espingarda Mauser e as cartucheiras correspondentes, guardava um pequeno garrafão de aguardente, destilada pelos meus Pais e que seria o aconchego contra a humidade e o frio que se aproximavam. Como reserva levara ainda meia dúzia de chouriços de excelente qualidade, não fora a minha terra a região que produzia os melhores enchidos do mundo. Aqueles eram caseiros, boas carnes e o segredo do tempero da Dona Ifigénia. Enquanto arrumava os meus pertences, o Mendonça continuava estendido sobre a cama, olhava para a minha azáfama e sorria.
- Sabes Barreto, qual é a diferença que nos separa? - É que eu estive a olhar para a tua alegria ao esvaziares a tua mochila e nos teus gestos pude encontrar o amor da tua família. Eu, pelo contrário, filho de gente rica trouxe a mochila vazia do mais importante. Nela não coube sequer uma palavra de conforto ou um gesto de ternura.
- Olha, disse eu, quando a comida for intragável traz o pão e a fruta e partilharemos estes chouriços tão saborosos. Assim a minha Mãe também ficará feliz por eu dividir com um amigo os enchidos que ela foi comprando com o pouco dinheiro de que dispunha.
Certa noite, durantes uma operação nocturna, fomos escolhidos para montar a segurança do acampamento, pequenas tendas expostas ao vento que sobrava na praia de Ribamar. Enquanto fumávamos um cigarro, o Mendonça falou um pouco mais de si. Da família, da sua vida, dos seus medos e das suas angústias. Filho de gente rica, o Avô era um austero Professor de Medicina; O Pai conhecido advogado, muito ligado ao regime, Deputado e Governador Civil. A Mãe, senhora muito ligada às suas obrigações sociais, era fria e distante. Fazia a delícia dos convidados da melhor sociedade, que recebia numa casa apalaçada na alta de Coimbra.
O Mendonça confessava que nunca iria terminar o curso, mas não sabia o caminho a tomar para fugir do ambiente em que fora criado. Era rebelde, não aceitava as regras da tropa, andava provocatoriamente mal fardado e como tal os fins de semana ficava, quase sempre de castigo. Eu ainda não percebera a rebeldia do meu amigo e custava-me a acreditar que o jovem universitário de boas famílias e de posição social elevada andasse como eu à chuva e ao frio, esperando o destino. E disse que mais tarde ou mais tarde ele iria ser colocado numa repartição militar qualquer, daquelas que o podiam livrar da guerra. Como era hábito, aliás.
O meu amigo abanou a cabeça e decidiu contar a razão porque não havia fugido e nada faria para evitar a guerra.
- Sabes, tenho uma irmã gémea que teve a coragem de enfrentar a família e partir para Paris perseguindo o seu sonho. Lançou-me o desafio para a acompanhar, mas eu hesitei e fiquei. Tenho outro irmão mais velho, o príncipe da família, educado para representar o símbolo dos valores tradicionais de uma família abastada e politicamente comprometida. Fora um atleta, comandante de bandeira da Mocidade Portuguesa, mas todavia, fraco aluno. Sabendo isso o meu Pai e o meu Avô decidiram que ele seria militar e daria o seu contributo para a causa nacional de defesa das nossas colónias. Mas o destino prega partidas que não se esperam. O meu irmão entrou na Academia Militar e quando estava prestes a terminar, recebeu do Pai um automóvel que fomos estrear, percorrendo a estrada da Beira. Insistiu para eu guiar e distraído como sou e sempre fui, tive um acidente. O meu irmão Luís ficou ferido e vive agarrado a uma cadeira de rodas, e eu que nas palavras dos meus Pais, bem que poderia ter morrido, não sofri feridas, salvo as da alma.
Por isso aqui estou , a fazer tudo o que mais me dói e em que não acredito. Estou no lugar do meu irmão, não por respeito ou consideração pela família, que esqueci, mas porque tenho uma dívida e quero pagar. E será na guerra que ajustarei as contas.
Ficamos mais próximos, e os goles de aguardente que daquela noite, tão fria, fomos bebendo, foram como o brinde à nossa cumplicidade.
Eu ajudei-o a ultrapassar as suas debilidades físicas, carregando durante as corridas a arma e puxando-o pelos ombros para continuar correndo. Dizia-lhe: - Ou ganhas força e resistência ou numa patrulha não terás capacidade de comandar os teus soldados. Ele sorria, abanava a cabeça mas lá ia tentando.
A especialidade terminou nos finais de Dezembro. Era hora de regressar a casa e aguardar as instruções sobre o nosso destino. Mendonça deu-me um abraço prolongado e disse-me adeus. No meio da confusão não mais o vi.
Em meados de 1964 fui mobilizado. Estava nos Açores e tive que me apresentar em Leiria, onde se encontrava em formação um batalhão que eu iria integrar para a guerra de Angola. Entre os colegas vi o Aspirante Loureiro, antigo conhecido da famosa caserna quinze. Era natural de Coimbra e conhecera o Mendonça e a família. Perguntei notícias do meu amigo.
- Pensei que soubesses, disse o Loureiro. O Zé morreu numa emboscada trinta dias depois de ter seguido para a Guiné numa rendição individual. O corpo ficou irreconhecível e lá ficou sepultado nos confins da selva.
Fiquei com um nó na garganta e deixei cair uma lágrima.
Muitas coisas se passaram. Umas deixaram marcas outras o tempo foi apagando. Hoje, quase sem saber porquê, recordei aquela amizade improvável. E senti que afinal o meu amigo tinha acertado as contas pagando a dívida e ao mesmo tempo tinha encontrado a paz que procurara.
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