2005
Alguns dias atrás, ou foram semanas (?), já não sou capaz de precisar, entendi que seria interessante olhar para o passado recente. E comecei pelo início do século XXI, o século dos prodígios, tal era a crença popular.
Foi lembrando factos, acontecimentos que fui escrevendo com cada vez mais dificuldade e mais tropeções. Na realidade deixei-me prender por guerras, sofrimento e morte.
E cheguei aqui, ao ano de 2005, e por cansaço ou desgosto sinto-me arrependido de ter começado a empreitada. Hesitei, pensei parar e tentar escrever qualquer coisa que não fosse sofrimento e dor. Mas não resisti e aqui estou eu, olhando para uma folha cheia de apontamentos e ensaiando um texto que deixe de fora as guerras, que continuam, a política, cada vez mais entediante, a fortuna dos 1% dos homens por contrapartida da pobreza dos restantes 99%.
Mas está a ser difícil.
Alguns dias atrás, ou foram semanas (?), já não sou capaz de precisar, entendi que seria interessante olhar para o passado recente. E comecei pelo início do século XXI, o século dos prodígios, tal era a crença popular.
Foi lembrando factos, acontecimentos que fui escrevendo com cada vez mais dificuldade e mais tropeções. Na realidade deixei-me prender por guerras, sofrimento e morte.
E cheguei aqui, ao ano de 2005, e por cansaço ou desgosto sinto-me arrependido de ter começado a empreitada. Hesitei, pensei parar e tentar escrever qualquer coisa que não fosse sofrimento e dor. Mas não resisti e aqui estou eu, olhando para uma folha cheia de apontamentos e ensaiando um texto que deixe de fora as guerras, que continuam, a política, cada vez mais entediante, a fortuna dos 1% dos homens por contrapartida da pobreza dos restantes 99%.
Mas está a ser difícil.
Vou esquecer a tragédia da tempestade Katrina que arrasou Nova Orleães. Por entre a destruição de uma cidade emblemática, ficou registada para memória futura a incompetência, do mais incompetente, dos Presidentes dos EUA.
Começo a desfilar os desaparecimentos, daqueles que de uma maneira ou outra me deixaram marcas e feridas que ainda não cicatrizaram. São tantos!
Começarei por referir Arthur Miller, grande dramaturgo Norte Americano, de que recordo a peça “ Morte dum caixeiro viajante” e, naturalmente o seu difícil romance com a bela Marlyn Monroe;
Depois dou um saldo até à morte do Papa João Paulo II, o Papa que no seu pontificado deu mais realce à Igreja Católica. O papa saiu do Vaticano e foi para o mundo.
Mas no mesmo ano assisti ao desaparecimento de quatro pessoas que não posso esquecer.
No mês de Junho foi a morte do General Vasco Gonçalves. E eu que sempre me julguei independente e desalinhado também juntei a minha voz à de tantos Portugueses ,cantando:” Força, força camarada Vasco, nós seremos a muralha de aço.”
Mas Vasco Gonçalves acreditou no futuro, ouviu os gritos e avançou. Mas a muralha foi abrindo brechas e o sonho fugiu.
Poucos dias depois desapareceu outro grande vulto da história contemporânea. Morreu Álvaro Cunhal. O grande resistente antifascista, que permaneceu fiel às suas ideias políticas de oposição ao Estado Novo do ditador Salazar. Foi preso político durante 13 anos, oito dos quais guardado numa cela em completo isolamento. Nunca quebrou, nunca se deu por vencido e refugiou-se na pintura no desenho e na literatura para não perder a noção do tempo. Evadiu-se do forte de Peniche e viveu na clandestinidade ou no estrangeiro até que as portas de Abril de 1974 se abriram.
Secretário-geral do Partido Comunista Português, homem de enorme cultura, tenacidade e coragem, foi admirado ou odiado por muitos mas, manteve-se até ao fim, fiel ao seu povo e às suas ideias.
E depois de duas personalidades tão marcadas, deixou-nos um POETA. E todos ficamos mais pobres. Adeus Eugénio de Andrade, a tua poesia tem sido lenitivo para muitas das minhas dores.
Adeus
Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.
Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.
Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.
Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já se não passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.
Adeus.
Eugénio de Andrade, in “Poesia e Prosa”
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.
Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já se não passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.
Adeus.
Eugénio de Andrade, in “Poesia e Prosa”
Mas uma dor maior me reservava o Outono do meu descontentamento.
Algures, lá no céu uma estrela se apagou e deixou-me a mágoa. E é com uma poesia do grande Miguel Torga que me despeço do ano de 2005, o ano da morte de minha Mãe.
Mãe:
Que desgraça na vida aconteceu,
Que ficaste insensível e gelada?
Que todo o teu perfil se endureceu
Numa linha severa e desenhada?
Como as estátuas, que são gente nossa
Cansada de palavras e ternura,
Assim tu me pareces no teu leito.
Presença cinzelada em pedra dura,
Que não tem coração dentro do peito.
Chamo aos gritos por ti — não me respondes.
Beijo-te as mãos e o rosto — sinto frio.
Ou és outra, ou me enganas, ou te escondes
Por detrás do terror deste vazio.
Mãe:
Abre os olhos ao menos, diz que sim!
Diz que me vês ainda, que me queres.
Que és a eterna mulher entre as mulheres.
Que nem a morte te afastou de mim!
Miguel Torga, in 'Diário IV'
Que desgraça na vida aconteceu,
Que ficaste insensível e gelada?
Que todo o teu perfil se endureceu
Numa linha severa e desenhada?
Como as estátuas, que são gente nossa
Cansada de palavras e ternura,
Assim tu me pareces no teu leito.
Presença cinzelada em pedra dura,
Que não tem coração dentro do peito.
Chamo aos gritos por ti — não me respondes.
Beijo-te as mãos e o rosto — sinto frio.
Ou és outra, ou me enganas, ou te escondes
Por detrás do terror deste vazio.
Mãe:
Abre os olhos ao menos, diz que sim!
Diz que me vês ainda, que me queres.
Que és a eterna mulher entre as mulheres.
Que nem a morte te afastou de mim!
Miguel Torga, in 'Diário IV'
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