2006
O ano de 2006 foi calmo para o padrão habitual e, considerado o ano internacional dos desertos e desertificação. A designação era um aviso, certamente bem intencionado e justificado, mas feitas algumas recomendações tudo iria ficar na mesma.
No horizonte, para além do inexorável avanço dos desertos levando a fome a cada vez mais gente, aquela que só conta para as estatísticas, formava-se uma tempestade que iria abalar o mundo. No horizonte havia alguns sinais que escapavam aos meteorologistas. Na verdade a tempestade que se avizinhava não tinha classificação conhecida, não seria um fenómeno da Natureza como as que se conheceram. Seria um vírus que começaria na esperteza dos Banqueiros, na falta de escrúpulos dos gestores dos fundos de investimento, na falta de regulação da actividade financeira, na incompetência dos políticos e na ganância dos investidores. Esse vírus, ainda em gestação, teria no ano seguinte um efeito destruidor nunca visto. E a vacina terá um preço que ninguém quererá pagar.
Por isso 2006 foi um ano calmo, mas com a calmaria que assusta os animais,que se calam, como prenúncio da tragédia que se aproxima.
A guerra, nos diversos teatros de operações, continuava a ceifar vidas, sendo como sempre um contributo para o fortalecimento da economia e para o equilíbrio demográfico.
Por isso estou a escrever quase sem assunto de que me lembre pela sua importância. O ano 2006 será o início do novo ano chinês, o ano do Cão, e é como um cão vadio que eu me vou alongando neste texto sem saber para onde me dirigir.
O caminho que escolhi foi o recurso ao passado. Procurei as efemérides e fui feliz.
Porque em 2006 passou o 250º aniversário de Mozart, e de repente a música do genial compositor encheu-me de vida e de beleza um dia triste, chuvoso e sem inspiração em que estou escrevendo;
-E o 400º aniversário de Rembrandt. Parei, fechei os olhos e vi-me transportado para Amesterdão onde, alguns anos passados, e durante largos momentos fiquei sentado num banco dum Museu, fascinado com a obra prima de um grande pintor. Relembrar a tela “ A Ronda da Noite” foi um momento mágico. Porque sentia que os olhares dos personagens retratados naquele quadro me seguiam e me interrogavam.
E de Portugal o que escolher?
Escolhi reler Agostinho da Silva, o filósofo não perto dos seus leitores e cujo 100º aniversário também se comemorou. E relembrei a lição:
O Povo Culto
Os povos serão cultos na medida em que entre eles crescer o número dos que se negam a aceitar qualquer benefício dos que podem; dos que se mantêm sempre vigilantes em defesa dos oprimidos não porque tenham este ou aquele credo político, mas por isso mesmo, porque são oprimidos e neles se quebram as leis da Humanidade e da razão; dos que se levantam, sinceros e corajosos, ante as ordens injustas, não também porque saem de um dos campos em luta, mas por serem injustas; dos que acima de tudo defendem o direito de pensar e de ser digno.
Agostinho da Silva, in 'Diário de Alcestes'
Agostinho da Silva, in 'Diário de Alcestes'
E já que a memória me ajudou lembrei-me de neste ano partira o grande pintor e poeta Mário Cesariny. E é com um poema cujo tema é a solidão, que hoje vos deixo em sossego.
Aclamações
dentro do edifício inexpugnável
aclamações
por já termos chapéu para a solidão
aclamações
por sabermos estar vivos na geleira
aclamações
por ardermos mansinho junto ao mar
aclamações
porque cessou enfim o ruído da noite a secreta alegria por escadas
de caracol
aclamações
porque uma coisa é certa: ninguém nos ouve
aclamações
porque outra é indubitável: não se ouve ninguém
Mário Cesariny, in "Planisfério"
dentro do edifício inexpugnável
aclamações
por já termos chapéu para a solidão
aclamações
por sabermos estar vivos na geleira
aclamações
por ardermos mansinho junto ao mar
aclamações
porque cessou enfim o ruído da noite a secreta alegria por escadas
de caracol
aclamações
porque uma coisa é certa: ninguém nos ouve
aclamações
porque outra é indubitável: não se ouve ninguém
Mário Cesariny, in "Planisfério"
PS.
Desculpem, um esquecimento imperdoável. Foi em 2006 que o Professor Aníbal Cavaco Silva foi eleito Presidente da República, deste País tão rico de poetas, habitado por um povo nobre e valente e que, todavia, tem dificuldade em aprender a ser, um Povo Culto.
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