VOAR NO TEMPO
A próxima quarta-feira vai ser mais
um dia de consulta no hospital, lembrava sem inquietação, ou assim queria
transparecer. Na verdade seria uma viajem igual a tantas que já fizera mas com
o aproximar da noite o estado de espírito ia mudando.
E a noite era, normalmente mal
dormida. O sono era agitado e partilhado entre dúvidas e certezas, entre
coragem e medo.
Nesta noite fria sentiu um
desafio, uma voz que lhe martelava o cérebro segredando-lhe:
-Vem, vem voar no tempo.
E para afastar os pesadelos
começou a procurar o tempo que quereria recordar. E na sua memória o momento,
longínquo, em que escolhera foi o de voar no tempo até à primeira vez em que estivera
num hospital. Começou a desembrulhar recordações que a família lhe fizera
conhecer. E sentiu com saudade o carinho
das palavras e das carícias, cheias de ternura.
Era o bebé da família, fazia
companhia à Mãe, que estava internada, dela bebia o leite da vida.
Tinha meses de vida, nem sempre
muito saudável mas, internado no hospital da Misericórdia da sua terra natal,
aprendeu o valor das palavras carinhosas.
E no sonho era tão vivo, que até acabou por
lembrar a enfermeira que fora como um anjo para si e para a Mãe doente.
Chamava-se Eduarda, mas para a criança ela passou a ser a DADA, e o nome ficou
para sempre na memória das pessoas que ela ajudou.
A Mãe recuperou a saúde, regressou
a casa onde o Pai, que trabalhava de dia ou de noite, os aguardava acompanhado
pela irmã primeira, bonita aos oito anos de idade, como bonita seria sempre.
E depois da tempestade, veio a
bonança trazida numa irmã que foi fechar o ciclo da vida, naquela família pobre
em termos materiais mas rica em afetos. E ele passara a ser, “o irmão do meio”.
E o sonho acabou, a ida ao hospital deixara de
ser uma preocupação.
Levantou-se feliz, recordara
alguns dos ausentes mais queridos e grato pela ventura de continuar a ser “o
irmão do meio”.
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