sábado, 14 de julho de 2012

SIMÃO & COMPANHIA


Almada Negreiros
Partida de Emigrantes
Manufactura de Tapeçarias de Portalegre
Portalegre/Portugal



16 – DEZ ANOS DEPOIS – 9º. CAPÍTULO

Luísa escolhera uma sexta-feira para viajar para Londres. Programara ficar apenas um fim de semana. Escolhera um hotel perto de Victoria Station porque dali lhe seria mais fácil utilizar o autocarro que a levaria ao endereço que Mariana, há muito tempo atrás, lhe dissera.
Tinha também o número de telemóvel, Simão já o havia utilizado para se encontrar com a irmã, mas Luísa decidiu reservar aquele meio de contacto para a eventualidade de não conseguir localizar a residência.
Na verdade queria aparecer de surpresa.
O avião aterrara em Heathrow pelas dez horas da manhã, o aeroporto estava um caos. Gente que se cruzava carregando as malas ao longo dos intermináveis corredores, gritos de Pais porque os filhos teimavam em se afastar do caminho, gente que desembarcara vinda de diversos lugares e se atropelava para levantar a bagagem.
Há muito tempo que não visitava Londres e não se recordava de um trânsito tão intenso. Estava quase a chegar ao controlo da polícia e ficou assustada. Era uma fila enorme e parecia haver muita gente com problemas a ser encaminhada para lugares onde eram sujeita a uma revista e interrogatório mais rigoroso.
Não costumava ser assim quando viajara, mas os tempos eram outros, havia muita emigração clandestina , o flagelo do desemprego impelia as pessoas a fazer opções, largando tudo para encontrar um destino menos cruel. Londres era um mundo de culturas, permeável à realização de atentados. E o medo dum ataque bombista pairava no dia a dia dos Londrinos, especialmente os que utilizavam, regularmente, o metro.
Os jornais tablóides ampliavam os receios e quando alguém responsável recomendava calma, ninguém lhe prestava atenção. O medo viajava mais depressa.
Enquanto esperava na fila que nunca mais avançava, punha em ordem o seu programa e ia interiorizando a possibilidade de não conseguir localizar a cunhada ou de a encontrar e sofrer alguma desilusão.
Era um sexto sentido que a avisava do risco. Por qualquer razão, mas nunca seria uma razão feliz, Mariana quase desaparecera. Talvez não quisesse ser encontrada por razões, que Luísa ,nem queria imaginar.
Mas sabia ser determinada e não se deixaria vencer com facilidade. De Londres só regressaria com a Mariana ou com uma explicação para o seu afastamento da família.
Era consciente dessa força interior que avançara. Chorar era fácil,  mas sabia conter as emoções até que, em solidão  pudesse libertar as lágrimas. Não expunha fragilidades e não seria uma presa fácil para se vergar aos azares e infortúnios.
Estava prestes a chegar à sua vez de se identificar e passar o controlo. Os pensamentos ficaram guardados num recanto do cérebro. Agora sim, iria começar a sua aventura.
Como só transportava bagagem de mão, depressa chegou ao terminal de metro que queria utilizar. Era meio-dia de um dia cinzento e frio, a chuva anunciava-se a todo o instante. O que hei-de fazer, pensou para si, estamos no fim de Setembro e o Outono promete borrasca. Fora o boletim que a tripulação lhe lera antes da aterragem.
Demorou mais de uma hora no trajecto de metro, à saída a chuva começara a cair com intensidade. Deu uma corrida por entre as pessoas que se apressavam a procurar o resguardo e mesmo assim, entrou no hotel completamente encharcada. 
Não tinha tempo a perder. Um duche rápido, mudar de roupa e correr para a paragem do autocarro que iria passar por Croydon.
Ainda estava longe do lugar onde devia descer mas havia muito trânsito e não queria perder tempo. Desceu na paragem próxima e mandou parar um táxi. Indicou-lhe a morada, o motorista olhou para ela com um ar intrigado, mas fez-lhe sinal para subir.
Demorou vinte minutos até o táxi parar numa rua estreita de prédios antigos e escuros. Não era em Croydon como esperava, mas sim num antigo e degradado bairro dos arredores.
Ia pagar quando o motorista lhe perguntou se não seria aconselhável que o táxi a aguardasse, avisando:
- Pense bem, depois vai ser difícil arranjar transporte e estas ruas não são muito apropriadas para passear.
Luísa hesitou agradeceu, pagou comentando que como se ia encontrar com pessoas em quem tinha confiança sentia-se segura.
O táxi arrancou e Luísa caminhou para a porta de um edifício de quatro pisos. A porta estava aberta,sem fechadura e campainhas não funcionavam. Entrou, também não havia elevador. No patamar os contentores do lixo, cheios e espalhando um cheiro nauseabundo, eram a decoração. O apartammento que Mariana lhe dera correspondia ao quarto e último andar.
Respirou fundo, ganhou coragem e subiu as escadas. Bateu à porta, uma, duas e três vezes sem obter resposta. Começou a descer e no terceiro piso numa porta entreaberta uma mulher de idade espreitou e comentou:
- A senhora não me parece ser consumidora de drogas, então o que pensa ir fazer aquele maldito apartamento cheio de drogados e prostitutas?
Siga o meu conselho, vá-se embora ou então espere lá fora, naquele café da esquina. O pessoal quando tiver terminado a sua agonia costuma parar, beber um café antes que a noite os leve, de novo, para o inferno.
Disse isto e fechou a porta com estrondo.
Luísa ficou bloqueada, apesar das suas dúvidas e dos seus receios custava-lhe a acreditar que Mariana, a pobre Mariana vivesse naquele lugar.
Saíu para a rua e respirando o ar fresco, encostou-se à parede, escondeu o rosto e chorou.
Depois seguiu a sugestão da vizinha, foi procurou o café. Era um espaço pequeno, chama-se pomposamente “TERMINAL PUB”, havia um ou dois clientes ao balcão bebendo cerveja. Pediu um café e escolheu para se sentar numa mesa perto da porta de entrada.
Entrara despercebida e assim continuava. Mas estava nervosa com o ouvira e o ambiente soturno não a ajudava. As palavras  duras, droga e prostituição martelhavam-lhe a cabeça.
Voltou para a rua e numa esquina quase deserta recorreu ao velho amigo, o cigarro que retirou dum maço que trazia na mala e que funcionava como um desafio. Desta vez perdera, ia mesmo fumar.
Nervosamente acendeu o cigarro, inspirou o fumo que outrora lhe dera prazer, mas que agora lhe queimava os pulmões. Fez mais uma tentativa, espalhou o fumo em círculos pelo ar e ficou seguindo as figuras que o vento ia desenhando. Perdera o prazer de fumar,  apagou  nervosamente o cigarro que  esmagou no chão, mesmo por baixo do anúncio do café. “Terminal Pub”, que nome tão apropriado, murmurou.
Decidiu que não ia desistir, andava de um lado para o outro sem perder de vista a entrada da casa que pretendera visitar.
Começava a ficar preocupada com o movimento de carros que passavam na rua. A sua presença intrigava os automobilistas que abrandavam, faziam sinais que ela nem queria perceber.
Era já noite quando três vultos saíram do prédio onde procurara Mariana e entraram no café.
Luísa entrou de seguida, já havia mais gente ao balcão mas também ninguém se apercebeu da sua presença. Sentou-se ao balcão e começou a percorrer o rosto das poucas mulheres que lá estavam. Na outro lado do balcão estavam sentados as pessoas que seguira. E como um raio fulminante, viu o rosto magro e macilento, a roupa extravagante e um olhar triste e sofrido de alguém que a fitara e também a reconhecera. Acabava de encontrar Mariana. Mas o choque foi tremendo, a mulher em que Mariana se transformara não era sequer uma sombra da rapariga bonita que conhecera. Era uma mulher coberta de maquilhagem, onde apenas os olhos encovados lhe davam algum sinal de vida.
Não resistiu e saiu para a rua, Mariana foi ao seu encontro:
- Esperei tanto por ajuda, mas nunca fui capaz de a pedir. Agora é tarde minha amiga. Faz um favor ao meu irmão e aos meus Pais, inventa que me encontraste e que eu sou tão feliz e não tenciono voltar. Tu saberás inventar uma história. Ou diz que não me encostraste mas soubeste que eu parti para o outro lado do mundo. Conta como quiseres mas para eles não digas a verdade. Agora mesmo que queira já não posso voltar, o meu tempo está a chegar ao fim.
 Eu estou condenada pelo vício e pela doença que me consome. Nunca voltarei.
 Esquece que me viste, guarda a memória que tinhas de mim. Essa pessoa, a Mariana dos olhos negros,já não existe. Hoje sou Miriam e caminho junto dos meus companheiros de desgraça.
 Vai embora, do fundo do coração só te posso dizer, adeus e obrigada.
Voltou as costas, juntou-se aos companheiros e recomeçaram a sua viajem até ao inferno da noite.
Luísa ficou por momentos a ver o andar cambaleante do grupo. Mariana não se voltou mas ao passar por baixo do anúncio do café, uma chapa pendurada sobre uma porta gradeada, Luísa iria jurar que Mariana soltara um grito de dor e de morte. Afinal, acabava de transpor o Terminal Pub.
Reentrou na rua principal, andou sem saber para onde. Teve sorte, um táxi parava perto e fez sinal que estava livre. Correu com quanta força tinha, abriu a porta sentou-se, colocou as mãos sobre a face e chorou. Conseguiu dizer o o hotel. Depois, por obra do destino ou por vontade do próprio, verificou que  encontrara o mesmo táxi e o mesmo motorista.
A viajem foi ainda longa mas feita sem palavras. O motorista respeitara a dor que vira no rosto da passageira. No final da corrida e à porta do hotel enquanto pagava ouviu o conselho do motorista, um homem de cabelos brancos e olhar bondoso:
- Não se esqueça que por vezes é preciso descer ao mundo dos desgraçados para compreender o valor da vida e dos afectos. Eles são o amparo uns dos outros, a droga levou-lhes tudo, menos o sentimento de partilha. Poucos são os que resistiram à heroína. Naquela rua escondem os últimos dias de uma vida que deixaram fugir por entre os dedos.
Esqueça naquele lugar, ninguém consegue de lá sair. Só morto pelo droga ou pelos traficantes.


Paula Rêgo
Agonia no Horto
 Casa das Histórias de Paula Rêgo
Cascais/Portugal

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