quinta-feira, 19 de julho de 2012

SIMÃO & COMPANHIA


Danielle Moser
Je m'envole autre
Manufactura de Tapeçarias de Portalegre
Portalegre/Portugal




17 – DEZ ANOS DEPOIS – 10º CAPÍTULO

Luís que era um homem alto e magro, tinha muito cuidado com a escolha do lugar no avião. Era uma viajem longa, o voo estava sempre completo e tantas horas encolhido numa cadeira era um suplício. Desta vez atrasou-se e ao escolher o lugar não encontrou alternativa a um com o lugar da janela e na penúltima fila do avião.
Sabia o tormento que o aguardava e chegou a pensar e alterar o voo ou escolher viajar em classe executiva. Mas era teimoso e nada fez. Embarcou.
Enquanto os passageiros iam entrando, Luís aproveitava para ler a correspondência do amigo. Mas parou porque ficara perturbado e porque começou a sentir a incomodidade do lugar que havia aceite. Tentava estender as pernas para debaixo das cadeiras da frente. Mas não deu certo, o espaço tinha sido ocupado por sacos cheios de compras e por todo o tipo de pequenas malas que não couberam na respectiva bagageira. Luís assistira à luta que as passageiras que ocupavam os lugares da frente haviam travado, para conseguirem encaixar debaixo das cadeiras, toda a bagagem restante. Eram três mulheres fortes e determinadas e empurrão depois de empurrão lá conseguiram construir a muralha que agora lhe limitava o seu espaço, para esticar as pernas.
Com algum cuidado foi empurrando com os pés alguns dos volumes. Fizera força e logo uma das senhoras dos lugares da frente, se virou e com um olhar furibundo e a voz áspera o criticou:
- Com que direito é que o senhor se julga para pisar a nossa bagagem?
 Este espaço é nosso e a bagagem não serve para ser o seu tapete. Tenha lá cuidado onde põe os pés.
Assim dito de forma ameaçadora incomodou Luís que esteve tentado a responder no mesmo tom desabrido mas resolveu calar o seu protesto.
Ao seu lado viajava um casal, também carregado com bagagem de mão e com um berço onde um bebé pequeno choramingava, talvez com fome. A mãe conseguiu ajeitar-se apesar da falta de espaço, ocupava o lugar do meio, e começou a amamentar a criança, mas estava manifestamente desconfortável. Luís aproveitou  a situação e sugeriu que trocassem de lugares. E o casal concordou, fizeram a troca e enquanto os Pais se acomodavam, foi Luís que segurou o bebé.
Sentiu-se bem, ter nos braços uma criança seria o prazer maior que um Pai podia ter. Tenho que pensar nisso, murmurou, enquanto afagava ligeiramente e com um gesto de ternura a face do pequenote.
Conversando com os companheiros de viajem, sorrindo com as gracinhas do bebé, o voo pareceu ser mais rápido.
Foi com alegria que respirou o ar quente daquela África de que se habituara a gostar.
Vivia numa casa recuperada que comprara e que partilhava com o irmão, a cunhada e os sobrinhos.
Reservara para sim o primeiro andar da moradia, que por ter uma entrada separada lhe dava a o conforto da sua intimidade e evitava as perguntas, algumas um pouco embaraçosas quando, recebia a visita da sua namorada. 
E foi mesmo a Sofia, a quem pedira para o esperar e lhe garantir transporte para casa.
Não eram casados mas tinham uma relação sólida mas livre. Cada um tinha o seu espaço, encontravam-se sempre que lhes apetecia e pouco a pouco a frequência dos encontros ia aumentando.
Casar não fora, ainda, uma hipótese a considerar. Estavam bem assim e como Sofia costumava dizer, cada vez que se encontravam no apartamento dela ou na casa dele, era como se vivessem um amor escondido, uma paixão proibida. E o prazer físico e emocional que retiravam dessa situação era avassalador. Estavam bem e por enquanto, assim iriam continuar.
Tinha sido uma ausência curta mas Luís precisava de descansar e fazer alguns telefonemos para se inteirar sobre o andamento das obras em curso. Optou por ficar em casa só. Depois se encontrariam.
Estendeu-se no sofá e dormitou um pouco. Acordou estremunhado e foi abrir o computador e o correio electrónico. Tinha a caixa cheia de mensagens. Foi lendo, apagando as desnecessárias e salvando os relatórios sobre o andamento dos trabalhos e os balancetes que o Director Financeiro tinha o hábito de lhe enviar. De repente tropeçou numa mensagem enviada pelo Simão. Era o convite para um encontro na Casa da Ribeira, comemorando dez anos desde as férias de fim do curso liceal, daquele grupo dos sete magníficos. O convite trazia como anexo um poster. Abriu e encontrou os sete cavaleiros, amigos da adolescência, quando ainda pensavam salvar o mundo.
Cada um era representado por um boneco, desenhado com muita imaginação e cujo rosto queria fazer um retrato de cada um, dez anos atrás. Para não restarem dúvidas, cada um vestia uma camisola colorida e com o nome estampado. Gostou da ideia e mais ainda quando localizou o Frederico sonhador, com os braços sobre os ombros dos seus amigos de eleição. Ele e Leonor. 
Na mensagem era indicada a data o lugar e referia que o convite não era excluía ninguém. Mulheres, maridos, filhos, todos cabiam naqueles sete dias de férias que Simão propunha. Como objectivo, apenas e só um reencontro de amigos, dez anos passados.
Não hesitou, faria tudo para estar presente e tentaria convencer Sofia a que lhe fizesse companhia.
Depois da euforia sentiu alguma preocupação. Simão teria conseguido contactar todos os membros do grupo? Ou alguém faltaria à chamada?
Não acreditara que Simão tivesse conseguido encontrar todos. Ele sabia que Frederico fora um, teria sido o único, perguntou-se?
Abriu a mala de viajem e retirou o sobrescrito com as cartas do amigo. Ainda tinha cartas por ler e talvez nelas encontrasse alguma forma de estabelecer contacto. 
Abriu a terceira carta. Um texto não datado e ainda mais confuso. Frederico seguia uma estrela que lentamente se ia apagando.
Começou como as outras com um título.
( Caçador De Sonhos)
Estou numa cidade fria, olhando com inveja a gente que passa apressada. É o fim do dia de trabalho e todos correm para o remanso dos seus lares. Poderão sofrer de solidão, talvez vidas trocadas, com medos escondidos, mas sabem o endereço.
Pelo contrário eu, caçador de sonhos, ando cada vez mais perdido, mas longe de tudo e de todos. Já não sei o que procuro, o que faço aqui perdido no meio da multidão.
O meu amigo foi procurar um lugar onde nos possamos acolher depois de mais uma longa caminhada. Eu aguardo, ele é a única razão para esperar.
Eu não tenho destino, nem agora nem nunca. O meu sonho desfez-se em fumo e nada mais resta.
Tenho momentos em que penso desistir, falar para casa e pedir ajuda. Mas são rapidamente esquecidos.
A mim já nada me atrai tudo me desespera.
 A vida tem sido um desengano e não guardo recordações felizes.
Agora tenho um amigo e companheiro que no silêncio da noite fria e escura me estende a mão recitando velhas canções da sua terra, perdida no interior da África, onde a fome empurra os jovens para viagens que acabam no fundo do mar ou num campo de refugiados de onde serão repatriados.
Ele ficou só e olha para mim como o último refúgio.
E logo a mim que sinto que o meu sonho está a terminar.
Adeus velho amigo, sê feliz.
Frederico”

Teve um mau pressentimento.
Abriu a penúltima carta, conseguia ler que o carimbo era dos correios italianos.
Começava um título que o fez tremer, como se fora uma premonição.
“ A Divina Comédia)
Estou sentado no alto de um monte. É manhã e o sol começa a despontar. O meu amigo  dorme ainda vencido pelo cansaço. Foi ele que quase me transportou até ao cume.
Lá em baixo vejo os vales e um rio que vai correndo para abraçar o mar.
Eu cheguei ao fim. Passei as fases da Divina Comédia que li quando ainda jovem estudante me sentia atraído pelos grandes poemas.
Este era um deles.
Agora estou lúcido como pode estar alguém que ultrapassou as montanhas. Vivi o Inferno quando me dei conta da inutilidade da minha vida, depois a minha peregrinação que representou a passagem pelo purgatório e hoje, finalmente hoje, consigo vislumbrar o paraíso.
É bonito, o verde do campo, o azul do céu e o doirado do sol nascente.
Vou deixar esta carta para o Omar a colocar no correio. Será a última.
Depois partirei, as portas já terão sido abertas.
Adeus velho amigo, adeus.
Frederico”
Luís não conseguiu esconder a emoção. Frederico, o seu amigo e companheiro o seu cúmplice morrera. Dele ficara apenas os escritos e a amargura de uma vida desperdiçada.
Sofia entrou em casa e percebeu que Luís chorava olhando através da janela. Sobre a mesa estavam as cartas que Frederico enviara no seu percurso alegórico para o Paraíso, como Dante o havia descrito.
Luís apenas tinha na mão a carta que fora depositada na sua caixa de correio.
Finalmente sabia que Frederico não iria estar na reunião dos amigos. O amigo tinha deixado de sonhar.
 Quase nem precisava de abrir o último sobrescrito. O mensageiro fora Omar.
Abriu e encontro uma cópia da carta que Frederico enviara ao Pai, pedindo-lhe ajuda para o companheiro negro, que lhe dera atenção e amizade nos últimos meses da sua peregrinação. E que ficara até ao fim, como devem ficar os amigos.
Sofia estivera a ler a correspondência e alvitrou:
- Sabes o que podes fazer? Podes substituir o Frederico pelo amigo que lhe restou até ao fim dos seus dias. Havemos de encontrar Omar e levá-lo ao encontro. Que melhor homenagem podes prestar ao Frederico?
Deposição de Cristo no TúmuloGiambattista Tiepolo
Museu Nacional de Arte Antiga
Lisboa/Portugal

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