sexta-feira, 1 de março de 2013

PEQUENO JORNAL


-O País reúne as condições para, no curto prazo, consolidar o regresso aos mercados.

Era uma pequena notícia, em jeito de rodapé, da pequena folha que a Junta de Freguesia costuma distribuir.

O senhor Francisco não deu grande atenção aquela afirmação nem às poucas notícias que o pequeno jornal trazia nas duas folhas habituais. Mas viu dois óbitos na freguesia. Da senhora Gertrudes, uma mulher que nunca casara, que nunca deixara a casa recebida dos seus Pais, uma casa tão velha como velha era a aldeia. Ninguém conhecia a sua idade nem família. Vivia do que a pouca e pobre terra lhe dava e a pobreza e a solidão tinham sida as suas únicas companheiras.

E o senhor Francisco não deixou de lembrar as histórias que sempre ouvira contar sobre a Senhora Gertrudes.

Ainda jovem perdera o Pai, diziam ter sido pela embriaguez que o levara a cair numa pequena represa de água. Depois perdeu a Mãe, que escolhera partir, baloiçando na ponta de uma corda.

Enfim, é a vida, murmurava o senhor Francisco.

Depois outra notícia, até com fotografia, que noticiava a morte do senhor Aníbal Espinha. Ele conhecia o defunto. Fora seu cliente durante mais de vinte anos.

Mas a doença tinha-o atirado para uma cama de onde apenas saíra no dia do funeral. E o senhor Francisco, com mão trémula, lá consultou o velho caderno onde assentava os movimentos da sua já reduzida clientela, que nos últimos anos tinham voltado a utilizar aquele meio de pagamento. É a crise, diziam todos de forma envergonhada, não há trabalho!  Afinal lá encontrou a dívida do senhor Aníbal. Era de cerca de cinquenta euros, que riscou, enquanto pronunciava, paz à sua alma.

O senhor Francisco, taberneiro e único merceeiro, espreitou da porta da taberna mas nem um cliente, um só que fosse, lhe aparecia para beber um copo ou um café.

Ficara só, sentia que algumas pessoas evitavam passar pela sua porta. Coitadas, tinham vergonha pelas dívidas que não conseguiam pagar..

Mas os tempos estavam difíceis e o seu pequeno negócio estava próximo do fim. Também já nada o preocupava. Tinha setenta e cinco anos de idade, vivera só desde que a mulher partira para a sua última e única viajem.

Naquela aldeia restavam poucas casas habitadas e quase só por velhos. Mas pouco a pouco algumas das velhas casas tinham ganho outra vida ouvindo-se de novo os gritos de crianças brincando. Era o regresso dos netos, crianças condenadas à pobreza e à escuridão.  Os Pais haviam perdido o trabalho, as casas e o futuro. Tiveram de partir à procura de trabalho e de sustento. Pais e Mães que vergados pela dor chegaram à aldeia pela noite e saíram pela madrugada.

 
O senhor Francisco sentado na soleira da porta voltou a olhar para o pequeno jornal. Aquela frase sobre o regresso aos mercados não lhe saíra do pensamento. Não sabia o que tal queria dizer, mas até podia ser uma notícia boa. Só não percebia porquê. E assim vergou os ombros vencido pelas mentiras e pelas promessas não cumpridas. 

Com os olhos húmidos deu pela entrada do Zé Manuel, um reformado da junta de Freguesia que era um dos seus principais clientes. E ao contrário da tristeza do senhor Francisco o senhor Zé parecia feliz.

-Oh amigo Chico não esteja assim, as coisas vão melhorar. Amanhã é dia de pagamento das pensões e ouvi dizer que todos irão receber um aumento. O Presidente da Junta afirmou que no cálculo da pensão seria também considerado o valor do mês anterior.

-Eu acredito do que ele me disse. Afinal talvez alguém se tenha condoído dos mais pobres, dos velhos, dos doentes e tenha decidido um aumento das pensões. E, senhor Chico, fique ciente que logo que eu receba o valor do aumento, virei a correr pagar a minha dívida.  E com os outros acontecerá o mesmo, estou certo.
Sirva-me aí um bagaço só para comemorar.

 O senhor Francisco ganhou a esperança perdida. Amanhã os clientes voltarão e, quem sabe, assim poderia ser o regresso ao negócio pequeno, mas que lhe tinha permitido viver, pensou enquanto os seus olhos já cansados percorriam as prateleiras quase vazias.

E fez-se luz no seu espírito. Compreendeu o que lera na pequena folha do pequeno jornal. Afinal era verdade, o regresso aos mercados era uma boa notícia. Porque os mercados são coisa boa, amigos dos mais  pobres.

 Ao contrário do que vinha sendo habitual, dormiu bem, levantou-se como de costume bem cedo, abriu a porta do estabelecimento e ficou à espera dos clientes.

Esperou e desesperou. Só perto do meio-dia o senhor Zé o procurou. Trazia um pequeno papel das mãos e mostrou ao amigo, enquanto desviava a cara para esconder a vergonha e as lágrimas que lhe corriam pelo rosto. E disse: Senhor Francisco veja o valor da minha reforma. Os benefícios que o Governo nos anunciou representaram para mim um aumento no valor na pensão de 1,80 Euros.

Olharam-se nos olhos. E uma nuvem negra ocultou o sol.

Sem mais palavras, cada um regressou às suas angústias pressagiando o único caminho, a única solução. Uma corda e uma árvore.
 
ANEXO
Hoje dia 2 de Março do ano da graça de 2013, um povo massacrado, sem presente e sem futuro, governado por" gauleiters" às ordens do capital financeiro, vai sair à rua, gritando que o Povo é quem mais ordena. Nada poderá parar um Povo que lute pela liberdade.

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