O COMEÇO DO FIM
Antes de abrir
a caixa sentiu que um relâmpago lhe iluminava a memória. Sim, admitia
saber agora quem era, reconhecer o seu passado. Era ainda algo confuso,
nebuloso, vagueando entre amores e traições. Estava cansado, adivinhava que a sua
vida não deveria ter sido fácil, tinha cada vez mais a consciência de que
escolhera o caminho mais arriscado, e pagara por isso. As
cicatrizes no corpo e as marcas na alma eram a prova de que a sua vida não fora
pacífica.
Cerrou os
olhos, pareceu-lhe ouvir gemidos e gritos de terror. Alguém pedira ajuda e no
íntimo desejava ter sido o herói salvador. Mas talvez não tivesse sido assim,
pelo menos algumas vezes sentia que o seu papel fora mais de carrasco. Isso era de arrepiar.
Precisava
abrir a caixa e enfrentar os demónios ou as recordações que ela guardaria.
Admitiu, por momentos, esquecer a caixa com os segredos ali guardados. Sim
pensou, seria como um renascer sem comprometimentos, amizades, amor e ódios, olhar
o futuro começando do zero. No fundo sentia que nada o ligava ao passado. Família,
amigos, amores, tudo fora um equívoco, nada restava.
Hesitou, mas
como sempre fizera, deixou-se encantar pelo canto da sereia que o desafiava a
continuar, e abriu a caixa, convicto que seria capaz de enfrentar os erros, as
mentiras em que a sua vida fora pródiga. A aventura, como todas, teria um fim.
Que estava disposto a enfrentar com o último olhar.
Foi com a mão
firme que abriu a caixa. Pó, muito pó, pedaços de papel escritos numa
caligrafia que, de repente, reconheceu como sua. Eram apontamentos escritos sem
critério e sem regras, aliás como se lembrava, costumava escrever. Só ele seria
capaz de decifrar os textos que traduziriam o caminho percorrido. Algumas
páginas haviam sido arrancadas do caderno e estavam perdidas no meio do pó. Mas
encontrou dinheiro, notas de cem dólares americanos bem distribuídas por maços,
ligados por uma cinta dum Banco. Eram novas e folheando-as calculou que trouxera
com ele uma pequena fortuna. Aquele dinheiro fez-lhe um calafrio. Seria a paga
de algum serviço que prestara ou o sinal para um crime encomendado e que teria
de consumar, ali, in América.
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