DESESPERO
Aquela noite, o acto de desespero de uma mulher esquecida e a frieza do homem teriam consequências.
Não foram atitudes de revolta, gritos de dor, lágrimas e choro. Foi mais profundo, insidioso como um vírus que lentamente iria corromper uma relação à beira do abismo.
Passaram dias, meses e a alegria com que tinham combatido a adversidade foi desaparecendo.
A rotina de todos os dias não fora afectada, Artur levava os filhos à escola, depois o trabalho e o regresso. Mas começou a justificar a necessidade de regressar ao escritório, tinha trabalho atrasado.
Vivia a correr, sem pensar, mas as horas que passava no gabinete eram mais um escape, uma fuga. O trabalho era um pretexto.
Agora perdera o hábito de falar com Maria de Graça, não tinha tempo, fazia um aceno apressado e partia.
Quando regressava era madrugada, a mulher dormia ou fingia dormir. Artur deitava-se mas pouco dormia.
Na sua mente habitava a vergonha, a cobardia.
Estava no escritório, numa reunião de trabalho preparando os dados para a reunião com a Administração. Pela primeira vez estava atrasado e os resultados não eram aceitáveis.
Procurava razões para a quebra, mas elas eram simples de encontrar, Artur perdera o vigor, a ousadia, a capacidade de liderança e a Divisão pela qual respondia passou a trabalhar em roda livre.
A reunião correu mal como era de esperar. E foi avisado. Na próxima revisão, a realizar no final do mês de Setembro ou os resultados davam sinais evidentes de melhoria ou ele seria afastado das suas funções.
Tivesse esta reunião acontecido dois ou três anos atrás e ele sentiria a censura como um desafio. E sabia, sempre soube, que podia fazer melhor.
Mas agora não tinha energia, nem vontade nem orgulho. Ser despromovido seria quase um alívio. Estava no limite das forças.
Até que um fim de semana, a cunhada, aproveitando um momento em que Artur se isolara no sofá do escritório resolveu intervir, utilizando palavras duras e cortantes:
- Artur, ao fim de tantos anos em que nos conhecemos, chegou o momento de dizer coisas que não vais gostar de ouvir.
Artur levantou-se, olhou para o relógio significando que tinha pressa, mas Fernanda não parou:
- Hoje não vais fugir, não vou deixar sem que me oiças. Já tentei aproximar-me de ti, estendendo-te a mão e oferendo ajuda. Mas tu tens andado ausente, pior, tens mostrado cobardia e isso nunca esperava.
Não sei se encontraste outro apoio, alguém que te tenha ajudado a partilhar o leito. Nem isso me importa, mas duvido que alguém tenha visto uma sombra, um fantasma, que foi aquilo em que te transformaste.
E o pior é que os teus filhos já sentem a tua ausência, a falta do Pai. Agora são órfãos e sofrem.
Artur, diz-me há quanto tempo não olhas para a tua mulher, enterrada numa cama, definhando dia após dia? Vês quando te deitas, de madrugada e luz apagada?
É que, tu não te deste conta, mas na tua ausência e há algum tempo atrás encontrei a minha irmã tão diferente, que me assustei. O Aníbal o fisioterapeuta e a Rosália contaram-me que ela fraquejara nos exercícios de recuperação, que estavam a correr tão bem. Voltou ao ponto de partida, imóvel sem conseguir avançar uma perna ou estender um braço.
Chamei o médico e ele fez um diagnóstico arrepiante. Fisicamente Maria da Graça nada tinha mas psiquicamente estava à beira da loucura. E assim continua, cada dia mais próximo do fim.
Eu sei a razão porque a Maria da Graça desistiu de viver. E tu também sabes.
Sei que sempre culpaste a Maria da Graça pelo acidente. Inventaste uma traição ou qualquer coisa no género mas, cobardemente, nunca se atreveste a perguntar. Descansa, fica com a dúvida, eu não vou aliviar o peso da tua consciência.
Quando te olhas no espelho o que vês, um homem? Duvido!
Mas agora, hoje, vais ter de enfrentar uma realidade. A vida da minha irmã está presa por um fio.
Nem eu nem os teus filhos te perdoaremos. Tem um gesto de nobreza e sai, vai embora, deixa-nos viver a nossa dor.
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