MEMÓRIAS PERDIDAS
Por razões que serão entendíveis, não gosto de comentar cenas da guerra colonial, situações que vi e vivi mas que guardei numa gaveta bem lá no fundo, no armazém que é a nossa memória.
Falo de algumas pequenas coisas mas tenho sempre evitado falar do drama, da dor e dos sacrifícios que foram parte naquela guerra.
Todavia e quase sem querer, abri umas caixas esquecidas, onde encontrei fotografias, cartas, relatórios e mais papelada sobre a minha passagem pela guerra.
Numa, encontrei um caderno diário, de folhas amarelecidas pelo tempo e a humidade de tantos anos passados, quase meio século.
Naquele caderno, com o entusiasmo da juventude, começara a escrever cartas que não mandei, textos com relatos de situações, bons e maus momentos, algumas reflexões e até críticas ao amadorismo com que fomos lançados naquela aventura.
Muito do que escrevi, não tem hoje sentido. Não é a História, seria quando muito a minha história pessoal, o meu testemunho.
Dei-me ao trabalho de reconstruir os escritos, mas foi uma tarefa quase inútil. Do caderno amarrotado, percebia pequenas frases, sem articulação nem continuidade.
Do que consegui irei dando nota se algo fizer sentido. Porque afinal, as palavras escritas foram folhas que o vento levou ou, talvez, pensamentos que o tempo apagou.
Hoje, em que enfrentamos desafios talvez mais exigentes, a guerra nas colónias ficou apenas para alguns estudiosos ou resumida a pequenas histórias que os que a viveram ainda tenham memória para contar.
CARTA A UM AMIGO DESCONHECIDO
Embarquei há dois dias para Angola a bordo do paquete Vera Cruz.
E é sentado numa mesa deste barco, que transporta mais de três mil jovens, empacotados, abraçados e inquietos, que estou a escrever a primeira carta.
Na realidade, não sei quando terei possibilidade de a enviar, mas, neste momento de despedida, escrever passa por ser uma forma de aliviar a tensão emocional, de um dia muito complicado.
Ao meu lado numa mesa de jogo, vários colegas estão a jogar poker de cartas. Também lá estive, mas com a sorte do costume, depressa fiquei depenado.
A excitação do dia de hoje não me vai deixar descansar e dormir, pelo que enquanto eles jogam e gritam, eu vou alinhavando estas palavras enquanto relembro o rosto dos que embarcaram, muitos onde a tristeza estava mal disfarçada, as lágrimas não contidas pelos abraços e beijos de familiares e depois, o mais doloroso de ver, o acenar dos lenços brancos, sinal de despedida.
Despedida, claro, apesar dos incitamentos, muitos daqueles jovens admitiam não voltar.
E até à saída da barra, lá ficaram aqueles vultos negros e tristes que continuavam a acenar. Naquela distância não se distinguia a família, e para nós já não era importante. Agora éramos irmãos que partiam ligados pela dúvida do regresso.
Á medida que o navio se afastava, uma estranha acalmia substituiu o riso, a bravata, o choro envergonhado. Cada um procurou o seu espaço, o seu beliche e nele se acolheu.
Só os olhos mostravam a inquietude, as palavras apenas serviam para esconder a dúvida ou fazer crescer a esperança. Uma palavra amiga, uma palmada nas costas, um sorriso e uma promessa. Tudo vai correr bem, vais ver, dizia eu a um soldado mais triste.
Ele olhou para mim, deu-me um abraço dizendo que tudo faria para regressar e ver o filho que ficara ainda no ventre da Mãe.
Não tive palavras mas o abraço tão fraterno, fez nascer uma luz nos olhos tristes daquele jovem Pai.
Interroguei-me se a preparação que dei aos soldados que iria comandar teria sido a mais adequada. Procurara sobretudo criar o espírito de solidariedade, repisando vezes sem conta, no final de cada hora de corrida e de cada marcha de dia e de noite, era sempre possível ir mais além, dar tudo, porque assim unidos, todos iriam resistir, porque todos teriam de voltar.
O mar está calmo, e o navio sulca as águas sem sentir grande dificuldade.
Ao longe, a luz da Lua reflecte-se nas águas, criando uma imagem de beleza e tranquilidade.
O barulho da mesa ao lado aumentou. As garrafas que vão despejando propiciam discussões acesas e mesmo alguma violência verbal. O oficial de serviço, um Tenente, teve de intervir e com muita dificuldade conseguiu acalmar os ânimos e o jogo acabou.
Na sua maior parte os oficiais, maioritáriamente, alferes milicianos, saíram para a coberta e ficaram na amurada fumando e em silêncio.
Amanhã vou ser eu o oficial de dia. Espero vir a encontrar os soldados perdidos no meio dos beliches que foram instalados em qualquer sítio livre. O meu colega que está hoje de serviço, já me avisou que não foi capaz de visitar algumas zonas do navio, pois o cheiro era nauseabundo. Pode ter exagerado e espero que sim.
Encontramos muitos soldados cantando ao som de uma viola e de uma concertina e lá seguiam encafuados nos beliches, cantando e rindo.
Tive sorte, quando da elaboração do plano de embarque, tinha escolhido o melhor local para o alojamento dos soldados da Companhia, mantendo-os em espaços abertos mais arejados e perto uns dos outros. Não encontrei situações desagradáveis, e o enfermeiro que também me acompanhava na ronda, apenas teve de distribuir alguns comprimidos para os que tinham mais dificuldade em suportar a ondulação do navio.
Estavam na maioria bem dispostos, alguns improvisaram um local para jogarem as cartas enquanto outros se tinham dedicado a visitar amigos ou conhecidos das outras unidades. E foi esse grupo que me pediu para ir ver as condições em que os camaradas de uma das companhias independentes estavam alojados. Fui com eles e fiquei impressionado. Pareceu-me que ocupavam um porão abaixo da linha de água, e de tal maneira se sentiam que uma grande parte nem tinha coragem para ir tomar as refeições. Comiam apenas o que os colegas mais afoitos e resistentes lhes conseguiam trazer.
Prometi-lhes que iria procurar a possibilidade de os realojar em melhores condições. E com alguma sorte e persistência fui descobrindo algum espaço onde ainda era possível montar mais um beliche. Ficaram apertados mas saíram da escuridão do porão.
Faltam cinco dias para o destino. A guerra estaria logo ali, à nossa espera.
Desembarcar e pisar terra firme será um momento único.
Até sempre. Adeus.
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