sábado, 3 de março de 2012

HISTÓRIAS SINGULARES

Beber água do rio Bengo

A primeira vez que visitei Luanda, foi nos inícios do ano de 1962.
Foi uma viajem desportiva. Praticava a modalidade de remo no Clube Ferroviário de Portugal, fazia os treinos nos tanques em Xabregas orientados pelo saudoso mestre Acácio. Éramos 4 amigos, e estávamos no primeiro emprego. Foi a CP que, apesar do nosso destino ter sido já decidido, a guerra colonial, nos deu a primeira oportunidade de trabalho e com a garantia que, findo o período militar, podíamos regressar ao emprego.
Não éramos uma equipe muito competitiva. Trabalhadores de escritório, sem prática o que nos faltava em técnica e força sobrava-nos em vontade.
E foi com surpresa que o Clube TAP, secção de remo, nos convidou a partilhar uma viajem a Luanda para uma regata comemorativa do aniversário do Clube Nun’Álvares de Luanda.
Foi uma oportunidade imperdível. Seria a primeira vez que íamos andar de avião, e como era prática naquele tempo, lá seguimos bem vestidos e engravatados.
Foi no super-constellation,  da TAP e o tempo de voo, considerando escalas a que era obrigado foi de aproximadamente dezoito horas.

Muito tempo? Quando se tem vinte anos e se parte numa aventura, a distância não existe.
Foi com alegria que encontramos Luanda, alegre e bonita, já a recuperar dos primeiros meses da guerra, reafirmando a vontade de resistir, apesar dos massacres que a UPA havia praticado na sua descida da fronteira até bem perto da cidade.

Ouvimos contar as histórias mais horrendas de que não vale a pena falar.
Enquanto se aguardava o dia da regata, fomos visitar a famosa fazenda Tentativa, mais os campos de cana de açúcar que alimentavam a refinaria, e a Barragem das Mabubas que fornecia a energia eléctrica à cidade.
Fora ali, a apenas algumas dezenas de quilómetros de Luanda, que os soldados e a população em armas tinham conseguido parar o morticínio.
Foi durante essa visita que um Português, daqueles de antes quebrar que torcer, que sentia aquela África como sua, a exemplo dos antepassados que haviam lutado e sobrevivido nas terras duras do planalto Transmontano, olhou para mim e me avisou:
- Sinto que bebeste água do Bengo, irás voltar a esta cidade. Toma nota do que eu te digo. Nos teus olhos eu pressinto que vais gostar.
Não eram precisos grandes dotes de adivinhação. A guerra iria encarregar-se do caminho mas, mesmo assim respondi que sim, que gostaria de voltar.
Na verdade nunca esqueci as palavras daquele homem curtido pelo sol dos trópicos.
Um ano depois, era soldado e em meados de 1964 desembarcava com os meus companheiros em Cabinda, inesperadamente, pois o nosso destino era mesmo Luanda e depois o Norte de Angola.
Mas em Cabinda a guerrilha estava muito activa e o nosso destino foi mudado.

Mas Cabinda não era Luanda e eu sentia que tinha que cumprir a promessa que fizera ao meu amigo.
E numa oportunidade, havia alguma acalmia no teatro de operações, fui autorizado a passar uma semana em Luanda. O avião militar em que iria viajar teve de proceder à evacuação de feridos num ataque inesperado e fiquei sem transporte. Alguém me aconselhou um barco que iria partir ao cair do dia.
Não hesitei, corri para o porto, cheguei á justa, saltei para o barco que imediatamente começou a navegar.
Era um barco à vela apenas com um pequeno motor. Mal entrei fiquei doente com o balanço e sentado no chão junto à amurada, ia olhando o movimento das águas e as barbatanas de tubarões que costumam visitar aquela zona. Sujo e molhado, sem forças para me levantar, foi assim que o patrão do navio  me encontrou no meio da bagagem e caixas de mercadorias,que transportava. Viu os galões de oficial, alferes, e lá me conseguiu acomodar na minúscula cabine do leme.
E cheguei a Luanda. Como havia prometido, voltara.
O fascínio daquela cidade, não mais me largou. Voltei para passar férias em 1966.
Os tempos mudaram, muitas coisas aconteceram. Mas o efeito da água que bebi no primeiro dia que pisei a terra de Luanda, manteve-se. Voltei algumas dezenas de vezes, a partir de 1978.
A cidade não era a mesma, é certo, mas para mim o fascínio não desaparecera.

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