Foi um sonho lindo que vivi por algumas horas. Flutuava do espaço, deitado numa nuvem branca, olhando o brilho das estrelas. Tudo era paz e silêncio. O Paraíso teria que ser algo parecido.
Mas era uma noite diferente, iria terminar o pequeno período de férias e no dia 13 de Agosto do ano da graça do senhor, todas as notícias vividas num ano de profundo desencanto, esquecidas durante o período de ausência, começaram a reclamar o seu lugar. E o sonho lindo começou, pouco a pouco, a tornar-se mais agitado como se o meu subconsciente tivesse sofrido um abanão.
E era, o meu amigo John Doe já esperava por mim. Sim o meu amigo do peito aguardava que eu aterrasse da minha viajem ao mundo da magia e da tranquilidade, para me dar as novidades.
E eu vi-o sentado na frente do computador e com uma página de excel aberta que analisava com toda a atenção. Na sua frente lá estava uma cadeira desconfortável, cheia da tralha do costume, livros, jornais, panfletos de publicidade, o folheto do fornecedor de pizza, etc. Sentei-me e ouvi:
- Acabei de fazer o balanço e o apuramento do resultado dos saldos de verão.
E não tenho boas notícias.
Tivemos algum sucesso com o crescimento das visitas, mas ficamos muito longe do objectivo.
Os monos continuam monos, nem um saiu, e é preciso enfrentar a situação, reconhecer o que fizemos de errado e teremos de baixar os custos por hora de trabalho.
Só assim poderemos sobreviver neste mundo louco, cada vez mais perdido entre os sonhos e a realidade.
O nosso sonho corre o risco de se esfumar. E assim acontecerá se não tivermos a coragem de aplicar as mais severas medidas de controlo da despesa.
Fiquei a olhar para o meu amigo. Parecia-me uma visão reflectida num espelho mas o seu semblante era um mau prenúncio. Com a voz sumida e trémula arrisquei:
- Queres dizer que me vais empurrar para o horário zero?
- Horário zero, o que é que tu estás a pensar? Receber sem trabalhar? Julgas que isto de escrever e alimentar de histórias e colagens de imagens é como se fosse a Assembleia?
Engoli em seco, não percebera a alusão e esperei para ouvir o programa de estabilização e de recuperação financeira. E ~para mal dos meus pecados ele chegou:
- O custo da hora de trabalho passará de 1, 75 euros a que será deduzida a parte correspondente às contribuições para a segurança social da entidade empregadora e do assalariado;
- O assalariado deverá subscrever um seguro de saúde cobrindo os riscos de quebra de rendimento, designadamente a perda de lucidez;
- O horário de trabalho será de dez horas seguidas, com um intervalo de cinco minutos para uma refeição diária;
- Horas extraordinárias se as houver serão contabilizadas à parte e remuneradas com um acréscimo de 0,05% sobre o valor líquido de uma hora em horário normal;
- O regime de férias será aumentado, vá lá uma boa notícia, vigorará salvo disposição em contrário, do mês de Janeiro até final de Novembro de cada ano;
- Os feriados civis serão anulados, ficarão apenas os praticados nas religiões não oficialmente reconhecidas.
Acredita que esta estratégia exigente, reconheço, vai combater o desemprego, pois ficas com o teu trabalho assegurado, e ajudará a combater o défice de exploração e o desequilíbrio das contas da sociedade.
Entretanto a imagem do John Doe, já difusa e pouco perceptível, começou a esfumar-se e desapareceu do meu horizonte visual.
Acordei banhado em suor, olhei à minha volta, era noite escura, caminhei descalço pela casa até ao escritório, o meu local de trabalho, guiando-me pelo hábito de tantos anos. No caminho tropeço numa cadeira e acabo estatelado no chão.
E com um riso alvar, ouvi uma voz distante, proclamar:
Parabéns, acabaste de aterrar em Portugal.
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