domingo, 28 de agosto de 2016

A VIDA EM CONTRAMÃO


TEMPO DE CHORAR

 

Sentada na cadeira na beira da cama do hospital onde o Pai fora internado após o AVC, Carolina sentia uma dor profunda, uma angústia por se encontrar só, enfrentando uma morte anunciada.

Lia e relia o testamento vital que o Pai havia assinado e entregue ao médico de família. Sabia e compreendia que o Pai recusara tratamentos paliativos e utilização de suportes artificiais para prolongar a vida, mas os médicos sempre lhe fizeram notar que a ela caberia a última palavra.

E era essa a decisão que ela temia.

Durante a viajem de regresso a casa, deixando na grande cidade uma parte dos sonhos de que se alimentara durante dois anos, foi interiorizando que chegaria o momento em que teria que tomar uma decisão sobre a doença do Pai. Sabia da gravidade do acidente que atirara o Pai para o limbo, onde só o coração não deixara de bater, mas tinha uma secreta esperança que o Pai iria vencer a batalha e estender-lhe a mão.

- O seu Pai, em teoria, não está a sofrer, disse-lhe o médico, mas eu acredito que pode não ser assim. A morte cerebral pode significar o fim de tudo mas, a dúvida existirá sempre. Sabemos que já houve casos de recuperação do coma, mas eu acredito que o do seu Pai não será um desses. Aliás a Carolina sabe o que o seu Pai pensava e escreveu quando estava na plena posse das suas faculdades mentais. Por isso, nós, a equipa médica do Hospital, tomamos uma decisão conjunta e pedimos que para seu bem, se junte a nós. Vamos desligar a máquina de suporte e deixá-lo partir.

Carolina balbuciou a palavra sim, quero respeitar a vontade do meu Pai.

E foi só, com o olhar nublado pelas lágrimas que teimavam em cair que sentiu o vazio. Começou a pensar que vira do olhar do Pai, antes do momento final, um sinal de gratidão e um adeus. Era com esse sinal, porventura imaginário, que enfrentou o destino. O corpo seria cremado como o Pai havia escrito e as cinzas espalhadas pelos campos do Alentejo, terra que o vira nascer.

No final, Carolina refugiu-se em casa, no apartamento que o Pai lhe havia deixado em testamento. Percorria a casa mas, como se fosse a primeira vez sentou-se na secretária e deixou vaguear o olhar pelas estantes repletas de livros e fixou-se num pequeno armário que quase passava despercebido. Estava fechado à chave, era o único móvel em toda a casa que estava protegido o que lhe parecia estranho. Procurou na secretária e numa gaveta, por entre blocos de papel, encontrou uma chave. E, nos escritos que encontrou, acabou descobrindo o Pai que nunca conhecera.

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