A vida tem revelado muitas surpresas. Talvez a mais dolorosa tenha sido a perda do gosto de escrever, inventar estórias, criar personagens que sempre tinham algo de mim.
Mas é tempo de recomeçar. Talvez, digo talvez, pois não tenho a certeza de conseguir .
Mas começar de novo? Quem sabe, pode ser que resulte.
E assim aqui vai o primeiro capítulo de uma história a que decidi chamar A VIDA EM CONTRAMÃO. Espero que leiam. Obrigado.
1 – ANTÓNIO
Quando na curva descendente da vida, alguém tem a
veleidade de pensar que viveu e trabalhou fazendo o que mais se gosta, haverá,
um momento em que toma consciência que a vida semeara muitas armadilhas e que
afinal, lhe restou uma mão cheia de nada.
Mas, quando esse trabalho envolveu o contacto com
vítimas da sociedade voraz que tudo trucidou, essa situação, ou essa memória
nunca se apagarão.
Recolhido em
casa depois de uma estadia, dolorosa e demorada no hospital, António Pires
mantinha o seu raciocínio, com algumas falhas, que ameaçavam a qualquer momento
fechar os caminhos entre o cérebro e o corpo. E ele que sempre se julgara imune
aos desencantos, acabara por tomar consciência da ameaça.
Lera, já não se lembrava em que livro, uma história
que não mais esquecera, em que o protagonista iria tornar-se um morto-vivo. Não
mais esquecera o drama de alguém que está morto para o mundo que o rodeia, mas
vivo nas células do cérebro que permaneciam ativas ainda que desligadas do
controlo do corpo e das emoções.
Jurara, nunca aceitaria destino semelhante mas,
agora perdera a força de terminar, de vez, com essa ameaça.
Era um homem
que acabara de passar a barreira dos sessenta anos, que vivera intensamente,
sem barreiras. A sua filosofia fora o desejo de viver intensamente e morrer na
sua hora sem dor ou sofrimento para os seus.
Mas a vida é madrasta e troca as voltas.
E ele que sempre caminhara contra a corrente,
estava agora deprimido, só, tão só, sentado na secretária da saleta que
escolhera como sendo o seu espaço, atulhada com livros, recortes de jornal,
resmas de papel onde escrevera tudo o que se lembrava duma vida agitada,
difícil, cheia de obstáculos que ele torneara, passando em contramão.
Gostava daquele espaço, desarrumado, onde se movia
sentindo o odor dos livros que sempre haviam feito parte do seu dia, e algumas
noites de insónia e desespero. Num canto, quase esquecido, estava o computado,
uma exigência que por dever de ofício tinha que consultar enquanto estava
empenhado no seu trabalho, que exigia muita pesquisa, vasculhando e tentando
decifrar os enigmas, as armadilhas, as mentiras, o horror, as ameaças, que para
mentes doentias era o motivo de horas, noites sem descanso vasculhando na
internet o pior que a sociedade da informação tinha para oferecer.
António estava doente e só. E ao pé da porta,
crescendo cada dia, a ameaça do morto-vivo, aguardava o momento.
A folha de papel em que tentara começar e escrever
um livro, permanecia em branco. Hesitava sobre o tema. Afinal ele tinha muitas
histórias para contar, histórias que também eram os retalhos da sua vida.
Histórias sobre a guerra, histórias de amor e
desamor, casamentos e divórcios. Mas a memória não o deixava sair do limbo em
que se perdera.
Lembrou-se
que também escondera segredos.
A caixa de cartão, guardado num recanto da estante
dos livros, escondia retalhos da sua vida e seus segredos. Afinal talvez
encontrasse entre os papéis a inspiração para escrever o livro.
Levantou-se e cambaleando abriu a caixa de Pandora.
Deu um passo, outro ainda e estendo a mão à procura
de ajuda deixou-se vencer, ajoelhou e depois caiu.
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