quarta-feira, 16 de novembro de 2011

ENCONTRO COM O DESTINO

                                                    Berthe Morisot

10 – UMA HISTORIA DA VIDA

A opção de Bárbara tinha sido correcta e ela sentia-se feliz com o trabalho, com a cidade, tão diferente da Lisboa que deixara e com as amizades que ganhara.
O trabalho de investigação que desenvolveu levou a que a Administração da Fundação a convidassem para ficar, prosseguindo a sua pesquisa e assumindo o controlo do departamento.
Exultou e sem hesitar aceitou o convite.
Teve de proceder a algumas alterações no seu modo de vida, deixando o alojamento colectivo e procurando um espaço que pudesse transformar no seu refúgio.
Encontrou o lugar que procurava mas, como era um espaço grande, aberto, localizado na zona do porto de recreio, decidiu aceitar uma colega para dividirem as despesas.
Era uma jovem nascida em Taipé, com a qual tinha excelente relação.
Bárbara era só, não tinha mais ninguém, apenas recordações, pelo contrário Li Peng tinha família mas tão longe que também era como se estivesse só.
Havia logo muitas afinidades, eram boas amigas.
Quando o verão chegou em força, todas as restantes colegas partiram de volta à suas cidades ,aos seus Países, ficaram as duas amigas perdidas numa cidade tão grande e que mal conheciam.
Arriscaram sair para procurarem o contacto com a natureza. Alugaram um carro e partiram à aventura, sem nada reservado. Iriam percorrer as estradas secundárias, contemplando a beleza da floresta. Em algum lugar poderiam sentir o apelo de ficar, no limite admitiam a hipótese de Vancouver como fim de percurso. Tinham colegas que lá viviam e lhe falaram que era uma cidade muito acolhedora.
Enquanto preparava a bagagem, Bárbara lembrou a pequena mala com as recordações da Mãe. Ainda não a tinha aberto e aproveitou aquela noite, antes de saída para férias, para abrir e conhecer o seu conteúdo.Tremeu um pouco, hesitou mas ganhou coragem. Ela sentia que  só agora, com o futuro à sua frente, seria o momento de conhecer o passado.
Na pequena caixa, encontrou diversas fotografias que já conhecera. Eram dela desde bebé até mulher; Viu pela primeira vez fotos da Mãe jovem, lembrou-se como ela fora uma mulher bonita. E percebeu que algumas das fotos da Mãe estavam rasgadas, como se a pessoa ao lado tivesse sido apagada. De amigos e dos Avós não encontrou nenhuma. Em contrapartida fixou com surpresa uma fotografia de uma senhora de cabelos brancos e rosto bondoso e com dedicatória. Tinha escrito:
"Para a minha amiga Madalena, que Deus te proteja. Mercedes."
Ao fim e ao cabo revira a imagem da Mãe, que tanta saudade lhe deixara, mas sabia que por detrás haveria um segredo que ela não conhecia. E a fotografia da pessoa desconhecida seria, provávelmente, um peça importante.
Continuou a retirar o conteúdo da caixa. Encontrou num sobrescrito fechado uma carta que lhe era dirigida. Pressentia ser a história que a Mãe nunca lhe quisera contar. Mas agora, tinha que continuar começou a ler:

“Minha Filha,
Podia dizer-te que toda a minha vida cabe nessa pequena caixa que te deixei. Não será assim, mas asseguro-te que nela irás encontrar o caminho que a tua Mãe teve de percorrer até ao dia hoje, em que vi realizado o meu sonho de te ver na Universidade. E por isso, hoje comecei a escrever esta carta que poderás ler, um dia mais tarde, quando te lembrares de mim.
Quando decidires abrir a caixa das memórias, lembra-te que tudo nela é passado, o meu passado e do qual não guardo rancores nem mágoas. Tudo foi o que tinha de ser e eu não me arrependo dos passos que dei.
É um desenrolar de pequenos momentos, de alegria, poucos, de solidão, muitos, de dor bem difíceis alguns, mas e finalmente de libertação e de felicidade. E a minha felicidade foste tu.
A tua Mãe nasceu numa pobre casa lá no Alentejo esquecido e com dez anos e depois de ter feito a quarta classe a professora disse aos Avós que eu deveria ir estudar. Mas os teus Avós eram pobres e doentes. Tinham uma leira de terras onde só a muito trabalho conseguiam arrancar a comida para o dia a dia. A capoeira com meia dúzia de galinhas e de alguns perus eram a única riqueza e optaram por me destinar outro futuro.
Entregaram-me como serviçal a uma abastada família de proprietários, que viviam num concelho distante. A minha tarefa seria fazer companhia a uma rapariga da minha idade, a Felisbela, uma rapariga débil, portadora de uma doença que lhe iria ser fatal, mais ano menos ano.
Não culpo os meus Pais, na sua ignorância, quem tinha nascido pobre, teria de morrer pobre. Não havia outro caminho.Mas confesso que muita lágrima escondi, perdida naquele casarão grande e frio onde assistia ao lento definhar da Felisbela, sem que alguém lhe tivesse feito um pequeno gesto de  carinho.
A família era rica de dinheiro mas muito pobre de valores. O meu trabalho passou a ser tomar conta da menina doente, limpar a casa e ajudar a governanta sempre que ela precisava de ajuda. E ela precisava sempre. Mandava e eu executava. Se a patroa não gostasse de algum serviço ou encontrasse uma dedada de pó, a pobre camponesa, a criada era castigada, com algumas reguadas ou com a privação do jantar.
No meu quartito húmido e sem sol, cabia uma pequena cama e uma cadeira. Nada mais. Mas sobre as grades da cama tinha uma campainha que tocava de dia ou de noite, sempre que alguém precisava dos meus serviços.
A Felisbela morreu quando tinha doze anos, e talvez eu tenha sido a única pessoa a chorar a morte daquela infeliz.
 Bárbara parou de ler. Tinha um pressentimento que as páginas que se seguiam lhe poderiam causar dor. Percebera agora o cuidado com que a Mãe guardara os seus segredos.  
Leria quando voltasse, nas longas noites de inverno.

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