quarta-feira, 19 de setembro de 2012

A VIDA POR UM FIO

O MEDO

Olhava para o relógio e espreitava pela janela. Estranhava, ainda não vira o carro.
Sentou-se, cada vez mais inquieto parecia que os minutos eram horas. Voltou à janela, abriu-a para aumentar o seu espaço de visão e ao mesmo tempo receber a brisa do fim de tarde.
Escurecera, confirmou pelo relógio que aquela era a hora em que normalmente chegava a casa e já a Maria da Graça tinha tudo adiantado. As crianças tinham tomado banho, o bebé já dormia, Joana pusera a mesa enquanto Filipa via os desenhos animados.
Entrar nem casa era um momento de felicidade e como chegava cansado a família dava-lhe o alento e a energia que tinha despendido.
Era assim a sua vida. Simples, sem sobressaltos.
Mas hoje, para ele um dia especial, um dia de alegria, preparara a surpresa, chegando mais cedo. Agora tinha medo, não conseguia conviver com a angústia duma casa vazia.
Pele sua cabeça passavam relâmpagos e não conseguia pensar. O que fazer? Teria acontecido alguma coisa?
No meio do pânico conseguiu ver um carro parar no lugar habitual. Era a família que regressava e lhe trazia a tranquilidade que julgara perdida. Respirou fundo, o sintoma de solidão desaparecera. Iria surpreender todos.
 Continuou a espreitar. Maria da Graça ocupava-se agora a retirar os sacos de compras do supermercado, Joana ajudava enquanto vigiava a traquinice da irmã. Maria da Graça, debruçada no interior do carro, desapertava os cintos de segurança e retirava a alcofa com o bebé.
Pararam, olhando para os sacos e para os degraus que teriam de subir até chegar ao elevador.
Artur despertou como se tivesse sido sacudido. Ali estava ele, vigiando o trabalho da Mulher e da filha e sem nada fazer. E tomou a decisão que se impunha, abriu a porta chamou o elevador e desceu ao encontro da família. Teve vergonha de confessar o que assistira. E tudo porque tivera um desejo inesperado de antecipar o regresso a casa e compartilhar a sua alegria.
Foi um alívio, Maria da Graça estava exausta, ela que era mulher jovem, habituada à rotina de todos os dias. Sorriu agradecida enquanto Artur assumiu o transporte dos sacos de compras. Eram muitos e pesados, era sexta-feira, dia de compras para a semana.
Artur sentiu-se aliviado, mas por pouco tempo. Deixara a porta do apartamento aberta, e um golpe de vento, possivelmente pela janela aberta, fechara-a. E pior ainda, Artur deixara as chaves na fechadura. E agora como é que entramos, perguntou novamente perdido?
Maria da Graça sentou-se na escada e desabafou:
- Artur, hoje que eu me sinto tão cansada, que tive um dia de trabalho para esquecer, a tua ajuda foi providencial. Mas estragaste tudo.
Olha pega nas minhas chaves, estão na minha bolsa e tenta empurrar a chave de dentro. Com jeito, quando ela cair, podes abrir a porta, mas com cautela, não te precipites. Se não conseguires teremos de pedir ajuda a um serralheiro. Que virá quando puder e quiser. E nós aqui acampados.
Estou tão cansada que só me apetece dormir.
Artur encontrou as chaves e com as mãos cada vez mais trementes, tentou. Mas estava difícil, o suor escorria-lhe pela testa e não conseguia deixar de olhar para a mulher que parecia desfalecer.
Esqueceu a porta e correu para amparar a mulher que de olhos fechados e respiração ofegante, apenas conservava junto ao peito a pequena alcofa do bebé que, entretanto começara a choramingar.
 Foi a pequena Joana quem com o sangue frio, retirou as chaves das mãos do Pai abriu a porta.
Depois retirou o irmão dos braços da Mãe e comandou:
- Pai pega na Mãe ao colo, leva-a para dentro e deita-a na cama. Eu vou telefonar para o 112 e pedir ajuda urgente.
Artur ficou parado sem reacção. Só lhe apetecia chorar sem saber o que fazer. Joana deu-lhe uma toalha molhada dizendo para tentar reanimar a Mãe enquanto a ambulância não chegasse. E recomendou:
- Pai, tem calma, vais ver que é apenas um desmaio. Vai falando, refrescando a cabeça da Mãe, pega num pulso e tenta contar as pulsações. Precisamos que nos ajudes, não te deixes dominar pelo pânico. Eu preciso e vou buscar ajuda enquanto não chega a ambulância. O Joãozinho está sossegado e a Filipa a ver bonecos, não te preocupes com eles. Faz companhia à Mãe. Eu já volto.
A rapariguinha bateu à porta da vizinha do lado, a Dona Glória era uma pessoa simpática e disponível e ao ver o rosto da Joana percebeu que algo corria mal.
E foi ajudar.
A ambulância chegou, com médico e auxiliares. O médico começou por auscultar a doente, retirou da mala uma ampola e deu-lhe uma injecção.
Virando-se para Artur que estava lívido parado a um canto disse:
- A senhora tem que seguir já para o Hospital. Eu vou avisar e ela entrará logo para o serviço de cardiologia. Não há tempo a perder. Pode ser uma coisa ligeira, não adianta ficar assim.
Artur Joana e a vizinha assistiam aos preparativos para o transporte na ambulância, e quando os maqueiros transportavam a maca, Artur quis seguir na ambulância.
O médico afastou-o, o senhor não pode ir, fique tranquilo em casa e depois vá telefonando. Ir agora não adiantará nada e desculpe-me, o senhor tem que cuidar dos filhos. Isso é o que pode e deve fazer. Da sua esposa os médicos e enfermeiros se encarregarão. Abriu a maleta tirou uma caixa de comprimidos e deu-lhe dizendo para tomar um de seis em seis horas. Faça o que eu lhe disse, lembre-se das crianças.
E partiu.
Artur ficou incapaz de ajudar, sentado numa cadeira olhava em redor e nem se dava conta da azáfama. Joana cuidava do bebé, o banho e a refeição. A vizinha preparara o jantar que colocou na mesa.
Foi a custo que convenceram Artur a sentar-se e comer alguma coisa, uma sopa pelo menos avisava a Dona Glória. E ele lá conseguiu comer algumas colheres.
Estava agora mais calmo, olhava com admiração e ternura para a filha mais velha, uma criança de nove anos que fora o suporte daquela situação.
Depois telefonou à Fernanda a irmã mais nova da Maria da Graça e pediu-lhe para fazer vir a casa da irmã para fazer companhia aos sobrinhos. Depois eu chamarei um táxi e irei para o hospital. Quero estar presente quando a vossa Mãe acordar, deste momento de medo.
Fernanda chegou rápido, não fez perguntas. De certo modo parecia já estar à espera daquela situação.

Duas irmãs
Jean-Honoré Fragonard (1732-1806)
França, c. 1760-1770
Óleo sobre madeira
A 31,7 x L 24 cm
MNAA  - Lisboa - Portugal
  

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