NEGRO
Regressou a casa, era já o romper do dia de sábado. Estava fisicamente esgotado mas contrariamente ao que seria de esperar, estava lúcido, pela primeira vez desde que tudo começara.
Em casa toda a gente dormia. Espreitou o quarto das filhas e confirmou, Joana e Filipa estavam bem e com uma respiração tranquila. Espreitou o quarto principal, Fernanda dormia estendida por cima da roupa, embrulhada num roupão, enquanto ao seu lado o bebé brincava com a chupeta e palrava aquela conversa do costume. Pegou nele e voltou para a sala. O bebé começava a meter os dedos da boca enquanto os olhos se riam com a alegria de que o Pai nunca se dera conta. E como era bonito o miúdo.
E com a tranquilidade que lhe veio, nem sabia de onde, ocupou-se da higiene e preparou e deu a primeira refeição.
Naquele momento esquecera o medo, percebera que os filhos e a mulher iriam precisar ele. E sentiu-se forte e capaz de enfrentar os desafios.
Foi-lhe penoso fingir despreocupação. Evitava fitar o olhar angustiado de Joana e as interrogações de Filipa. A Mãe tivera um esgotamento pelo cansaço, precisava de descansar dois ou três dias e, hesitando concluiu, depois voltará para casa.
A Fernanda tem a sua vida e tem que a continuar. Está a concluir o curso e isso será prioritário porque serei eu a tomar conta de vocês.
Eu aprenderei tudo o que for necessário, a limpar, a cozinhar, a fazer as camas a tomar conta do bebé e serei eu quem os vai levar e buscar ao infantário e ao colégio. Sabes Joana, tu vais ter que ser a minha professora.
Estava nesta conversa quando a cunhada entrou na sala. E as miúdas correram para a tia que as recebeu de braços abertos. Joana explicava entusiasmada que ia ser a professora do Pai enquanto a mãe estivesse a descansar. Mas tu também nos vais ajudar, não é tia?
- Claro que sim, até que a Mãe volte eu ficarei a ajudar. Claro, se o Pai não se importar.
- Fernanda, conto sempre contigo, mas tens que me prometer que não vais esquecer as aulas e os exames que estão à porta.
E o ambiente naquela família, atingida por um acidente inesperado e inexplicável, melhorou. Todos haviam compreendido que uma família é assim. Nos bons e maus momentos.
Artur sentou-se no sofá olhando pela janela. Apetecia-lhe fumar um cigarro. Procurou na gaveta da secretária um maço de cigarros. Remexeu tudo e não o encontrou. De repente lembrou-se, deixara de fumar há pouco tempo e Maria da Graça escondera o objecto do vício.
Mas tinha que fumar. Arranjou uma desculpa, disse a Fernanda que iria sair e combinar com o Sr. Abílio do restaurante da esquina, a comida para o almoço. Mas a cunhada lembrou que havia trabalho para fazer e sair não era uma boa ideia. As crianças sentem a falta da Mãe e se o Pai se ausenta, provocará nelas uma ansiedade evitável.
Aliás eu gosto de cozinhar e a minha irmã deixou o frigorífico cheio com as compras para a semana. Já vi e nada faz falta. Hoje o almoço já está escolhido.
Vou fazer uma sopa de legumes e bifinhos de peru com arroz e salada de alface.
Eu imagino que a tua ideia tem por objectivo um cigarro. Já te vi a remexer na gaveta. Dou-te um dos meus, mas para fumares, escondido na varanda. E só tenho dois, o outro ficará para mim.
Enquanto Fernanda ajudava Joana com a refeição do bebé, Artur telefona para o Hospital. Sem sucesso, o número estava permanente ocupado. E desistiu.
Chamou Fernanda e combinou:
- Não consigo falar para o Hospital. O número está sempre impedido. E também não ficarei tranquilo só com uma informação que me poderá ser dada sem rigor. Ficar sem nada saber é doloroso e não consigo aguentar a angústia.
À minha volta vejo a alegria os risos de criança mas cá no fundo do peito há uma nódoa negra que vai alastrando, e me consome. Tenho que ir para o Hospital. Peço-te, arranja maneira de levares as crianças a dar uma volta pelo parque. Está um dia de sol e não está muito frio. Deixo-te o carro, as cadeiras de segurança para as crianças estão montadas.
Eu prometo, direi alguma coisa logo que saiba o estado da tua irmã. Estou demasiado confuso para aguentar a falta de notícias.
Sabes o que mais me dói?
- O médico de serviço perguntou-me se a Maria da Graça teria sofrido algum acidente, caído ou se teria sido agredida. Imagina a minha reacção. O médico admitia como causa provável da lesão na coluna, uma agressão. Olhou para mim como se quisesse ver a minha reacção.
Eu teria agredido a tua irmã, tu sabes que não é possível.
- Sempre ouvi dizer que a maior partes das vezes em que se verifica violência doméstica, ela é exercida no seio da família próxima, responde Fernanda. O médico sabia do que falava.
O que ele não poderia saber é que tu sempre foste o companheiro fiel e terno e que a Maria da Graça era a tua musa.
- Mas o médico falou também em acidente, diz Artur, podia ter sido um caso de atropelamento ou choque. Vou descer e ver se o carro tem marcas.
- Não vais adiantar nada, espera que Maria da Graça recupere e conte o que se passou.
Eu acredito que ela poderá ter caído ao descer as escadas do escritório. São inclinadas e em pedra o que pode ter provocado a queda. Também sei que na altura, a dor pode não ser muito forte. O calor do corpo ajuda. Depois sim, ainda por cima com uma deslocação com as crianças ao supermercado. O esforço pode ter provocado o deslocamento de alguma vértebra.
- Podes ter razão, responde Artur.
Todavia preciso de ver e ouvir a tua irmã.
E sabes, Fernanda, a tua hipótese era perfeitamente credível, mas esquece, o escritório onde Maria da Graça trabalha é no rés-do-chão. Não tem escadas.
Eu dou notícias, disse enquanto saiu.
Na rua, a dor da dúvida manifestou-se em tremores e vómitos. O negro prevalecera.
Wassily Kandinsky
Black and Violet, 1923
Sem comentários:
Enviar um comentário