PAULA RÊGO
16 - VOLTAR DE PÁGINA
A noite havia sido uma provação. Sonhara tempos passados, ela e a Mãe, faziam a festa e eram felizes. Não havia mais nada nem ninguém que perturbasse aquela união tão forte entre as duas.
Acordou estremunhada, o sonho acabara e olhava em redor da sua vida vazia. O dia amanhecera com uns tímidos raios de sol a iluminarem a neve nos telhados, nas ruas e lá ao longe o pico das montanhas.
Preguiçou, ainda era muito cedo, não havia movimento nas ruas, mas de repente Bárbara sacudiu o torpor, afastou as lembranças e preparou-se e saiu de casa, vagueando ao longo do cais. Encontrou aberto um café que já conhecia, entrou encomendando o pequeno almoço e sentou-se na mesa do costume. Os empregados estavam alegres e felizes. Os sorrisos fizeram-na sentir menos só.
Aproveitou para continuar a ler o pequeno diário que a Mãe deixara.
Voltou a página.
Não era um diário cronológico era sim um história de vida, sem datas, só dias passados entre a alegria, pouca e a tristeza, muita.
Alguns dos textos não eram legíveis, muitas palavras manchadas, frases riscadas com força como se a Mãe tivesse querido riscar a própria vida.
Recomeçou a ler e com tal força que, acabou por assumiu a protagonista. Não estava a ler mas a viver, devorando as frases com vontade de chegar ao fim. Sabia o que a Mãe lhe havia contado, reconhecia que a verdade podia doer, mas de uma vez por todas tinha que saber. Não era Bárbara de vinte e quatro anos de idade, era a voz da Mãe, uma jovem adolescente, que sangrava aquelas palavras escritas.
E recomeçou!
“ Com a morte da pobre Felisbela, por quem chorei lágrimas sentidas, pensei que os meus serviços iriam ser dispensados.
Não foi assim, tinha treze anos de idade mas passei a desempenhar os serviços de ajuda na cozinha e na limpeza da casa. Quando, depois de um dia de trabalho, regressava ao meu refúgio, levava comigo o desespero, o cansaço e a vontade de ser livre. Mas sobre as grades da cama tinha uma campainha que tocava de dia ou de noite, sempre que alguém precisava dos meus serviços.
Pele primeira vez, conheci a família que servia.
A Senhora era tão fria como um bloco de gelo, até para um filho de dois anos, gerado sem amor e permanentemente indisposta com outro filho que carregava no ventre.
O marido Dr. Frederico, era um homem mais simpático mas passava o tempo em viagem, dizia, cuidando das propriedades da família.
Conheci uma simpática senhora, a Dona Mercedes, tia da dona da casa e que era convidada de vez em quando, como ela me dizia, apenas para completar o lugar, eventualmente, vazio na mesa.
A Dona Mercedes fora professora. Gostava de mim e eu gostava dela. Foi com ela que, às escondidas fui lendo e estudando. Tinha quinze anos de idade e a Dona Mercedes preocupava-se com o meu futuro. Falou-me muitas vezes que teria que evitar o Dr. Frederico. Ele não é boa gente a aproveitará a tua inocência para abusar de ti. Tem sempre a porta do teu quarto fechada e sem não tiveres chave utiliza a cadeira como segurança. Ao ouvires alguém tentar entrar, grita com toda a força, alguém te poderá ajudar.
Eu confiei naquela bondosa senhora e contei o meu desejo de fugir. Ela deu-me um cartão com a morada da filha, e algum dinheiro, recomendando que devia fugir de casa e procurar a morada da filha. Ela me ajudaria.
Dona Mercedes pediu ajuda para a criança perdida naquela casa. Era o filho dos Patrões, uma criança triste com pouco mais de quatro anos e eu passei a ser para ele o colo amigo, que ele nunca conhecera.
Ele era o irmão que eu não tivera e a quem contava as histórias que ia lendo nos livros que a Dona Mercedes me dera.
Mas Dona Mercedes partiu, e eu fiquei chorando. Só o Paulito pegava na minha mão e me pedia para não chorar. E dizia entre lágrimas que estaria sempre comigo.
Deveria ter fugido naquele dia. Mas tive medo e deixei-me ficar presa nos braços de uma criança.
Mais tarde, o Dr. Frederico passou a vigiar-me de perto, com o pretexto de também acompanhar o filho. À noite e por mais do que uma vez, dei por ele rondando a porta do meu quarto. Mas eu tinha seguido o conselho da Dona Mercedes, a porta estava fechada e trancada com uma cadeira.
Foram dois anos de pavor, de inferno. Até que um dia, tinha acabado de fazer dezasseis anos
Bárbara parou. A frase ficara inacabada e a seguir o vazio.
As páginas seguintes tinham sido arrancadas, mas teve um pressentimento de que conseguiria completar a história de Madalena, a sua Mãe. Precisava apenas de juntar alguns detalhes e confirmar com outra pessoa. E sentia que essa pessoa teria de ser o Paulo José, que ela conhecera no Canadá durante as férias de verão. Não queria saber mais pormenores, só o suficiente para fechar o livro das recordações. A atracção que sentira por Paulo era a voz do sangue, disso deixara de ter dúvidas. Paulo seria seu irmão de Pai.
Foi um dia de Natal que nunca mais esqueceu. Mas pouco a pouco a sua vida iria retomar o seu caminho e o coração estava agora livre.
Pensava como a vida nos reserva surpresas. Decidira partir para bem longe mas foi de facto, ao encontro com o destino. E como a Mãe lhe aconselhara, iria fazer por esquecer, desta vez disposta a correr ao encontro do amor.
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