Manuel Gargaleiro
17 – NOVA IORQUE
Paulo fugira do Paraíso que ajudara a criar. Ainda tinha dúvidas sobre o seu comportamento com as duas amigas que tinha encontrado nas férias de verão. Lamentava sobretudo não ter tido a coragem de enfrentar Li mas as feridas do passado não estavam ainda cicatrizadas.
A colega Marie com quem partilhara a execução do projecto e também o leito, cansara-se. Não teve qualquer problema em lhe dizer que gostava de ter sexo, mas com paixão e pelo menos com entrega. Paulo era apenas a parte física, nunca se entregara e parecia até sentir alívio sempre que a relação terminava.
Ela não entendia, até admitira que talvez a culpa fosse sua, ela não conseguira despertar a paixão do companheiro e logo, não seria a mulher que Paulo precisava. E daí o fim da relação seria inevitável.
Fora ainda mais frontal, dizendo que o problema de Paulo, e existiria um problema, seria de ordem psicológica, que ou ele ou enfrentava ou lhe arruinaria a vida.
Apesar do conselho, Paulo continuou metido no casulo em que se encerrara largos anos atrás. Reconheceu que a atracção por Li, fora na realidade o fascínio por uma mulher exótica, que mais tarde ou mais tarde acabaria por se esfumar. Ele fugia do amor.
E bastou algum tempo afastado para se esquecer e ter decidido acabar o que, na realidade, nem sequer tinha começado.
Falou com o Primos, arranjou um substituto, fez as malas e seguiu para Nova Iorque. Escolheu um pequeno hotel no centro de Manhattan, fez amizade com o proprietário e, quase sem querer foi convidado a dirigir o hotel. O desafio, mais um, seria o de reformular o interior mantendo a traça original, uma questão que exigia muito cuidado e bom gosto.
Paulo aceitou sem hesitar. Procurou um apartamento, encontrou um na zona de Chelsea, alugou para ele e para receber a Irmã que estaria para chegar.
Cecília chegou pelo Natal. Vinha feliz, cheia de sonhos.
Para uma jovem como ela, a cidade era um mundo para descobrir. A sua alegria e entusiasmo foram um bálsamo para Paulo. Ainda estava na fase de discussão do projecto de arquitectura, tinha algum tempo livre e passearam pela cidade.
A noite de Natal foi diferente. Pela primeira vez, ao fim de alguns anos, Paulo voltara a sentir o calor da família. Eram dois irmãos que estando sós tinham tempo para partilhar recordações. A certa altura, Cecília, a irmã rebelde, perguntou ao Irmão mais velho o que se tinha passado entre ele e o Pai para que ficassem tão distantes.
Paulo olhou nos olhos de Cecília, e assumiu contar a sua infância, as feridas não cicatrizadas, a solidão e o desespero.
Fixou o olhar longe, como perscrutando as memórias do passado e começou a falar:
- Penso que nunca ouviste falar duma irmã mais velha, chamava-se Felisbela. Era muito doente e o Pai encontrou uma raparia numa aldeia distante e levou-a para nossa casa para lhe fazer companhia. Era uma rapariga da mesma idade e foi ela que acompanhou a nossa Irmã até à sua morte e foi a minha única amiga. Eu tinha quatro anos quanto Felisbela morreu e a partir daí, fiquei ainda mais ligado a Madalena.
Mas o Dr. Frederico, o nosso Pai começou a perseguir a minha amiga. Ela era agora uma rapariga muito bonita e o nosso Pai não tinha escrúpulos. Um dia ,em que eu estava no quarto dela ouvindo uma história, ele entrou de rompante, eu escondi-me debaixo da cama enquanto ele violou a Madalena. Eu tinha sete ou oito anos, ouvi o choro e os gritos da pobre rapariga, ninguém ouviu e eu, o seu único amigo, teve medo e ficou escondido.
O nosso Pai saiu prometendo voltar mais vezes e eu que assisti à violência, fugi e nunca contei a ninguém.
Mas um dia Madalena fugiu e eu nunca mais a encontrei. E eu passei a viver com a vergonha e o ódio.
No meu aniversário dos dezoito anos, o Pai embriagado, tentou que eu o acompanhasse num passeio. Ganhei coragem e acusei-o da violação da minha amiga. Tinha guardado aquele segredo, mas o ódio crescera e não me contive. Bati-lhe com toda a raiva acumulada ao longo de mais de dez anos.
A partir desse dia fiquei sem Pai e ele sem filho. Tudo o mais foi fingido. Mas toda a cena me perturbou e ainda perturba, tantos anos depois.
Paulo parou, olhou para a irmã que tinha o rosto coberto pelas mãos e tremia enquanto soluçava. Ela percebera o drama do irmão e apenas dissera, num abraço sentido:
- Esquece, não te martirizes mais. O Pai está velho, já não é a mesma pessoa, faz por lhe perdoar. A Madalena, a tua amiga, certamente seguiu a sua vida e também esqueceu.
Paulo chorou, nem se lembrava de ter chorado desde aquela malfadada noite em que ainda criança, ouviu o pedido de ajuda e teve medo. Como ele desejara a morte do Pai. Com as lágrimas e o carinho da irmã, tinha finalmente escorraçado o ódio que tinha acumulado. Cecília fora o apoio que ele precisara para retomar o gosto de viver e de amar. Tinha vinte e oito anos de idade, vinte dos quais de revolta e dor.
FIM
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