Aguarela de Guilherme Camarinha
MANUFACTURA DE TAPEÇARIAS DE PORTALEGRE
CAPÍTULO XI
Como era habitual quando sentia alguma areia na engrenagem, Pedro Gonçalves, não estava nos seus dias. Falou para casa e a mulher, que tão bem o conhecia, notou logo alguma ansiedade na sua voz. Falou com os filhos, dois rapazes gémeos que lhe deram notícias da escola, como era hábito iam bem. Laura, a mulher recomendou uma noite bem dormida, era o que precisaria para lhe aclarar o raciocínio. Contudo com os nervos que noto da tua conversa, receio bem que os meus conselhos não sirvam para nada, rematou.
Esteve na janela, fazia já algum frio, abriu uma nesga apenas para fumar um cigarro, e mais outro, porque começara a ter dúvidas de que o caminho que levava fosse o correcto. Mas eram apenas sinais, algum desconforto, nada mais.
O quarto tinha uma pequena mesa tipo secretária, instalou-se balanceando o corpo para trás e para a frente. Abriu o portátil e começou a rever, em traços largos, todos os apontamentos que havia coligido durante a sua investigação, desde a sua chegada junto do corpo tombado sobre o volante até ao interrogatório do assaltante ferido, vítima de uma encenação que havia custado a vida do companheiro.
Foi passando em slide todas as fotografias que guardara e de repente parou. Franziu o sobrolho, voltou a passar todos os apontamentos, refez o visionamento das fotografias do automóvel e do corpo, mas aquela campainha, sinal de alarme que sentira, não se repetiu. Fez uma nova passagem do filme e num repente encontrou a razão que lhe fizera todo o frenesim e não o deixava sossegado. E fora uma simples palavra, que não lera nos seus apontamentos mas que no seu subconsciente já bailava embora de forma difusa. Encenação, era esta a palavra que havia disparado o sinal e, como agora tudo lhe parecia mais claro.
A morte do indivíduo no carro nas arribas da praia, reconhecia agora, teria toda a configuração de um acto encenado.
Mas como é que eu me deixei conduzir, perguntava-se? Os vestígios, como o Iphone encontrado nas arribas, a chave do cofre, o saco com os CD virgens ou com um filme para crianças, teriam sido provas plantadas fazendo, naturalmente, parte da encenação.
Olhou para o cadáver e releu o relatório da Polícia.
O agente assinalara que o corpo estava tombado sobre o assento dianteiro, fez até um desenho do corpo da vítima, e escreveu que a morte fora provocada por um tiro à queima roupa, as queimaduras na testa eram bem visíveis, com a bala a ter sofrido um desvio, dado que lhe penetrara na face direita e ficara alojada junto do ombro.
Pedro raciocinava agora muito rapidamente. Se o tiro fora disparado por alguém sentado ao lado do condutor, o sendo o tiro, confirmado no relatório da autópsia, feito por uma pistola de nove milímetros de calibre, por força do impacto a cabeça teria um impacto contrário e estaria tombada para o lado contrário, o lado esquerdo.
Até o relatório do Polícia era bem claro. Nem num lado nem no outro havia vestígios de sangue.
A conclusão só podia ser uma. A vítima, já não arriscava dizer o nome, fora executada noutro lugar, transportada para aquele automóvel e o tiro que o Fernando ouviu e o fez fugir com o companheiro foi um tiro para simular o crime. Fernando ter-se-á apercebido da armadilha, fugiu antes que a mulher e o homem que o haviam contratado o tivesse conseguido incriminar.
Por algo que não conseguira ainda entender, o casal que negociara o encontro com o Fernando precisava de criar um cenário de ajuste de contas. E Fernando seria o actor ideal.
Momento a momento mais desperto, julgava agora perceber algumas lacunas de que não se dera conta. No relatório da autópsia, a hora da morte fora estimada para o intervalo entre as doze e as quinze horas e o depoimento do LuísTavares dizia que o encontro no Guincho se dera ao anoitecer.
Agora, Pedro nem se arriscava a dizer que o corpo encontrado fosse o do Doutor Bernardo. Isso significava que a mulher que identificara o corpo, e o havia transportado para ser sepultado, mentira. Faltava descobrir a razão e isso seria tarefa para amanhã.
Conseguiu descansar uma ou duas horas. Ansiava por falar com o Carlos para combinarem a investigação do dia seguinte.
Acordou com o som do telefone. Deu um salto e atendeu.
Do outro lado era o Carlos que lhe lembrava que estava há mais de uma hora à espera para tomarem o pequeno-almoço como combinado de tal modo que até o empregado da pastelaria já o olhava desconfiado.
Pedro pediu mais meia hora. Foi uma corrida para tomar o duche, fazer a barba e escolher e vestir a roupa. Fechou o computador, guardou-o na mala e saiu correndo ao encontro do colega.
Sentou-se na mesa, o empregado tomou nota do pedido, Carlos apenas decidiu beber um outro café enquanto olhava para o ar ausente a cansado do companheiro.
Não resistiu e comentou com um sorriso irónico:
Meu amigo Inspector Pedro, acha bem que um oficial da Polícia, casado e com filhos passe a noite num lugar menos adequado e numa companhia de ocasião?
Antes fosse, antes fosse, respondeu Pedro. Passei a noite quase em branco a matutar no assunto que aqui nos trouxe. E cheguei a um ponto que me deixou não desiludido comigo mesmo que só me dava vontade de gritar bem alto, és um burro.
- Oh chefe não me digas que começaste a ligar pontos e chegaste à conclusão que andamos a ser dirigidos e enganados!
- Sim é isso que agora penso.
- Pois eu também fui assaltado pelas dúvidas, lembrei-me de um colega muito amigo que fora transferido para a Directoria do Porto e liguei a marcar um encontro. E eu sim, passei um bom bocado da noite num clube nocturno muito bem frequentado.
O Álvaro Pinto é subinspector responsável pela área do branqueamento de capitais.
Então eu pensei que antes de interrogar a mulher do Doutor Bernardo, talvez fosse mais aconselhável um encontro entre nós. Não te disse nada, no sítio onde estava só podia utilizar o telemóvel, que tu recomendaste não fizesse.
Se estives de acordo ele aguarda-nos no gabinete às dez horas da manhã. E recomendou, não queria nenhum contacto com o Inspector Florindo Matos. Ele é uma peça insignificante e está referenciado pela própria Polícia. Mas goza de alguma protecção, percebes.
- Carlos fizeste bem, vamos ao encontro. Até porque eu não acredito que consigamos encontrar a mulher do morto. A esta hora a família deve estar de férias do estrangeiro, rindo da nossa cara de parvos. Acreditas?
- Que somos parvos? Sim temos sido, mas lembra-te, quem ri melhor é quem ri por último.
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