1 – O DESCONHECIDO
A camioneta
da carreira, embora com significativo atraso, acabara de estacionar no largo da
pequena povoação, algures perdida no Baixo Alentejo.
Saíram dois
miúdos, com as sacolas ao ombro, viriam da escola que frequentariam na cidade, presumiu
o desconhecido e mais dois casais curvados pelo peso da idade e pelo trabalho
de uma vida.
Ele foi o
último a abandonar o transporte, ajudando o motorista a retirar as suas coisas,
bastantes, que quase enchiam o porta-bagagens da pequena e já cansada,
camioneta.
O motorista
esboçou um sorriso, arrancou e num instante o largo ficou vazio.
No meio, sem
saber bem o que fazer, ficara o passageiro desconhecido, um homem da cidade,
que se sentia perdido, rodeado por malas e sacos que nem sabia como e para onde
transportar.
Sentou-se na
mala, puxou dum cigarro e deleitou-se com o fumo que inspirava. Estava só e
cansado. Apesar de ter tentado deixar o vício do tabaco, voltara a ele, pois
reconhecera que deixar de fumar seria abandonar um dos últimos prazeres que lhe
restariam até ao fim da vida.
Olhou para todos os lados, não viu ninguém.
Mas acabou por reparar que, não muito longe do sítio onde se encontrava, havia
uma casa com um banco corrido ao longo da parede, protegido do sol pela sombra
de algumas videiras que se estendiam por sobre uma armação feita de madeira.
Ali estava a primeira coisa boa que aquele dia lhe trouxera, um lugar à sombra.
Começou a
carregar as suas coisas e depois de três ou quatro idas conseguiu terminar a
tarefa e sentar-se no banco, encerrar os olhos e recuperar do cansaço. Já o
sabia, mas aquele pequeno esforço mostrara a sua debilidade. O corpo já não lhe
respondia como antigamente, mais o pior cansaço era a sua luta entre a mente
que resistia e a desesperança que pouco a pouco ia vencendo.
Estava um dia quente, nem uma leve aragem lhe
trazia algum descanso.
Talvez
tivesse subestimado o calor da planície alentejana quando decidira procurar um
lugar isolado e calmo, onde pudesse fazer uma vida tranquila, e eventualmente,
acabar o livro que havia recomeçado a escrever sem nunca chegar conseguir dar
corpo à história que havia imaginado. Acabar de escrever um livro, sorriu,
aquele fora o pretexto para explicar aos amigos a sua decisão de mudar de vida.
Porém a
realidade era muito diferente. Bem que gostaria de ser capaz de escrever um
livro, ou dois ou três, mais teria tempo ou talento para tal empreitada?
É que o
diagnóstico, feito após uma série de exames, confirmava que ele sofria de uma
doença incurável e já em estado avançado, pelo que a esperança de vida não
seria muito longa. O médico que lhe deu a notícia fora muito direto.
Dissera-lhe, palavras que nunca mais esqueceria:
- Meu caro,
podia arranjar promessas de que a sua doença poderá ter cura. Mas eu não
acredito em milagres embora já tenha sido surpreendido com situações
inexplicáveis. Os cuidados que o hospital lhe poderá assegurar serão, apenas,
cuidados paliativos. Pense se opta por alimentar uma ilusão ou se prefere
enfrentar o caminho, vivendo cada dia como sendo o último e aproveitar para
fazer alguma coisa que lhe dê prazer. Eu já lhe disse que devia deixar de
fumar, é verdade o fumo faz-lhe mal, mas não será também importante o alívio
que sente quando inspira o fumo do cigarro?
Mas deixo à
sua vontade. Marco-lhe uma consulta para dois meses e leva medicamentação que
deverá tomar diariamente e alguns para enfrentar dias mais difíceis. Tem o meu
telefone, utilize-o sempre que precisar de mim.
E foi assim
que Luís Freitas, quarenta e oito anos de idade, divorciado sem filhos, se
encontrou naquela praça vazia.
Cansado da
profissão que escolhera, trabalhava num serviço público sem prazer e sem
esperança de futuro, não demorou muito a escolher. O passado ficaria esquecido
na vida sem grandes memórias, o presente seria o caminho do regresso ao
Alentejo onde nascera e o futuro, bem o futuro seria o que vivido dia a dia.
Sem preocupações, sem esperanças, mas com a convicção de que seria ele a mandar
no resto da sua vida.
Com base no
relatório médico conseguira a reforma antecipada, vendeu o seu ativo, apenas um
apartamento na periferia da grande cidade, encontrou uma garagem que alugou
para guardar os livros, mais algumas recordações de família, móveis que herdara
dos Pais e só por isso lhe eram importantes e preparou a bagagem para a viagem
que tinha decidido fazer.
Guardara para
si o seu estado de saúde e mentiu para que não pudesse ver no rosto dos poucos
amigos, a surpresa e as manifestações de pesar, acompanhadas pelas palavras de
circunstância e os olhares que não gostaria de enfrentar. O pretexto era o
cansaço, a solidão e o apelo que confessara sentir para escrever um livro e foi
com a frieza de que se revestiu que se separou dos vizinhos e dos colegas.
A ideia de
escrever um livro até a ele lhe pareceu boa, por isso na bagagem juntara o
pequeno computador portátil onde iria escrevia, de vez em quando, pensamentos,
angústias e o medo de não conseguir resistir à ruína de um corpo já doente e
cansado. Mas precisava de mudar de vida. Esquecer a televisão, a leitura dos
jornais, os comentários políticos e do futebol, as intrigas entre colegas, as
traições, a eterna disputa entre os condóminos e procurar um lugar onde pudesse
conviver com o sol, ouvir o vento e o canto dos pássaros, a água das fontes e
regressar às origens. No Alentejo nascera e lá procuraria as memórias perdidas.
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