segunda-feira, 6 de abril de 2015

A CASA DA COLINA






1 – O DESCONHECIDO


 


 


A camioneta da carreira, embora com significativo atraso, acabara de estacionar no largo da pequena povoação, algures perdida no Baixo Alentejo.


Saíram dois miúdos, com as sacolas ao ombro, viriam da escola que frequentariam na cidade, presumiu o desconhecido e mais dois casais curvados pelo peso da idade e pelo trabalho de uma vida.


Ele foi o último a abandonar o transporte, ajudando o motorista a retirar as suas coisas, bastantes, que quase enchiam o porta-bagagens da pequena e já cansada, camioneta.


O motorista esboçou um sorriso, arrancou e num instante o largo ficou vazio.


No meio, sem saber bem o que fazer, ficara o passageiro desconhecido, um homem da cidade, que se sentia perdido, rodeado por malas e sacos que nem sabia como e para onde transportar.


Sentou-se na mala, puxou dum cigarro e deleitou-se com o fumo que inspirava. Estava só e cansado. Apesar de ter tentado deixar o vício do tabaco, voltara a ele, pois reconhecera que deixar de fumar seria abandonar um dos últimos prazeres que lhe restariam até ao fim da vida.


 Olhou para todos os lados, não viu ninguém. Mas acabou por reparar que, não muito longe do sítio onde se encontrava, havia uma casa com um banco corrido ao longo da parede, protegido do sol pela sombra de algumas videiras que se estendiam por sobre uma armação feita de madeira. Ali estava a primeira coisa boa que aquele dia lhe trouxera, um lugar à sombra.


Começou a carregar as suas coisas e depois de três ou quatro idas conseguiu terminar a tarefa e sentar-se no banco, encerrar os olhos e recuperar do cansaço. Já o sabia, mas aquele pequeno esforço mostrara a sua debilidade. O corpo já não lhe respondia como antigamente, mais o pior cansaço era a sua luta entre a mente que resistia e a desesperança que pouco a pouco ia vencendo.


 Estava um dia quente, nem uma leve aragem lhe trazia algum descanso.


Talvez tivesse subestimado o calor da planície alentejana quando decidira procurar um lugar isolado e calmo, onde pudesse fazer uma vida tranquila, e eventualmente, acabar o livro que havia recomeçado a escrever sem nunca chegar conseguir dar corpo à história que havia imaginado. Acabar de escrever um livro, sorriu, aquele fora o pretexto para explicar aos amigos a sua decisão de mudar de vida.


 


Porém a realidade era muito diferente. Bem que gostaria de ser capaz de escrever um livro, ou dois ou três, mais teria tempo ou talento para tal empreitada?


É que o diagnóstico, feito após uma série de exames, confirmava que ele sofria de uma doença incurável e já em estado avançado, pelo que a esperança de vida não seria muito longa. O médico que lhe deu a notícia fora muito direto. Dissera-lhe, palavras que nunca mais esqueceria:


 


- Meu caro, podia arranjar promessas de que a sua doença poderá ter cura. Mas eu não acredito em milagres embora já tenha sido surpreendido com situações inexplicáveis. Os cuidados que o hospital lhe poderá assegurar serão, apenas, cuidados paliativos. Pense se opta por alimentar uma ilusão ou se prefere enfrentar o caminho, vivendo cada dia como sendo o último e aproveitar para fazer alguma coisa que lhe dê prazer. Eu já lhe disse que devia deixar de fumar, é verdade o fumo faz-lhe mal, mas não será também importante o alívio que sente quando inspira o fumo do cigarro?


Mas deixo à sua vontade. Marco-lhe uma consulta para dois meses e leva medicamentação que deverá tomar diariamente e alguns para enfrentar dias mais difíceis. Tem o meu telefone, utilize-o sempre que precisar de mim.


 


E foi assim que Luís Freitas, quarenta e oito anos de idade, divorciado sem filhos, se encontrou naquela praça vazia.


Cansado da profissão que escolhera, trabalhava num serviço público sem prazer e sem esperança de futuro, não demorou muito a escolher. O passado ficaria esquecido na vida sem grandes memórias, o presente seria o caminho do regresso ao Alentejo onde nascera e o futuro, bem o futuro seria o que vivido dia a dia. Sem preocupações, sem esperanças, mas com a convicção de que seria ele a mandar no resto da sua vida.


 


Com base no relatório médico conseguira a reforma antecipada, vendeu o seu ativo, apenas um apartamento na periferia da grande cidade, encontrou uma garagem que alugou para guardar os livros, mais algumas recordações de família, móveis que herdara dos Pais e só por isso lhe eram importantes e preparou a bagagem para a viagem que tinha decidido fazer.


 


Guardara para si o seu estado de saúde e mentiu para que não pudesse ver no rosto dos poucos amigos, a surpresa e as manifestações de pesar, acompanhadas pelas palavras de circunstância e os olhares que não gostaria de enfrentar. O pretexto era o cansaço, a solidão e o apelo que confessara sentir para escrever um livro e foi com a frieza de que se revestiu que se separou dos vizinhos e dos colegas.


 


A ideia de escrever um livro até a ele lhe pareceu boa, por isso na bagagem juntara o pequeno computador portátil onde iria escrevia, de vez em quando, pensamentos, angústias e o medo de não conseguir resistir à ruína de um corpo já doente e cansado. Mas precisava de mudar de vida. Esquecer a televisão, a leitura dos jornais, os comentários políticos e do futebol, as intrigas entre colegas, as traições, a eterna disputa entre os condóminos e procurar um lugar onde pudesse conviver com o sol, ouvir o vento e o canto dos pássaros, a água das fontes e regressar às origens. No Alentejo nascera e lá procuraria as memórias perdidas.


 


 


 

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