sábado, 30 de outubro de 2010

O Carteiro que gostava de cartas de amor

11 – MUDANÇAS

Um contínuo veio chamá-lo. O senhor director acabara de chegar e mandara avisar que o esperava no gabinete.
Fazendo das fraquezas forças, Felizberto entrou no gabinete e cumprimentou o Director com um esgar, que pretendia ser um sorriso. Este levantou os olhos dum papel que estava lendo, olhou para Felizberto e assustou-se.
- Meu caro amigo, você está doente ou é cansaço? Nunca pensei que o viria encontrar tão abatido, logo hoje, que tenho tantas novidades para lhe contar! Talvez o melhor seja deixar para amanhã. Vá descansar, passe pelo médico para lhe receitar umas vitaminas ou uns tónicos, durma uma noite bem dormida e amanhã ou depois falamos. Não se preocupe com o serviço porque eu estou de volta e posso dirigi-lo.
Felizberto nem sentiu coragem para responder. Saiu do gabinete, curvado como um velho e voltou para casa. Deitou-se em cima da cama, teve um ou outro espasmo mas deixou-se vencer e dormiu horas seguidas. Acordou já era bem tarde. Saiu foi tentar jantar, conseguiu comer qualquer coisa leve, voltou para o quarto e continuou a dormir.
No dia seguinte sentiu-se um pouco melhor, ao fazer a barba ainda tremia de olhar o espelho mas já deixara de ver aquela imagem que o havia transtornado.
Entrou cedo no trabalho e começou a dar seguimento às inúmeras cartas que tinha pendentes na sua secretária.
Mas o destino perseguia-o como uma maldição. Ao tocar numa das cartas, sentiu que ali estava mais uma carta de amor e de desespero. Ficou muito tempo com ela nas mãos, hesitando em abrir ou deixar seguir. Não sabia o que mais o faria sofrer. A angústia de um desenlace ou a persistência da dúvida.
Mas abriu. O endereço seguia o padrão habitual e o remetente também. Já nem perdia tempo com estes pormenores.
O texto era um lamento e um raio de esperança.

“Minha vida,
Agora,o nosso encontro está mais próximo. Tu és a réstea de sol que me alumia. Não ma tires, não me condenes à escuridão eu que só já vejo o mundo nos teus olhos.
Em breve, muito em breve estaremos juntos e beberemos as nossas lágrimas.

IR BEBER-TE

Ir beber-te num navio de altos mastros
No mal alto
Ó grande noite alucinada e pura,
Brilhante e escura,
Bordada de astros.

Para ti sobre a minha inquietação e sobressalto,
O meu caos, desilusão e agonia,
Pois trazes nos teus dedos
A sombra, o silêncio e os segredos,
A perfeição, a pureza e a harmonia.

(Sophia de Mello Breyner)

Que o vento suão te traga, como de mim te levou.
Quando voltares, olha bem para o cais, pois vais ver-me de branco vestida, como uma noiva em dia de casamento.
Sim, conseguimos.
Ao fim de tantos anos de dor e ausência, vou para Paris e estarei no cais alvoroçada e fremente à tua espera.
Então, como dois jovens de rosto feliz e de lamentos contidos, com o sorriso das madrugadas, com o cantar das ondas do nosso mar, perder-nos-emos nos braços um do outro. E assim ficaremos, até que algo mais forte do que a morte nos separe.
Acredita no amor que me consome. Na saudade que me fere. Não troco as nossas vidas feitas de dor e regadas com lágrimas. Somos o que somos e este foi o nosso fado.
Volta, meu amor, volta depressa.
Amo-te tanto.
M
Porto, 8 de Setembro de 1954

Fechou o envelope e colocou-o pronto para seguir. Tinha acabado de o fazer quando o Director o mandou chamar.
Estava à porta procurando mais forças para entrar no gabinete, quando a porta se abriu e o Director lhe lançou um braço pelo ombro dizendo:
- Venha meu amigo, sente-se aqui, pois vejo que está com melhor aspecto e as notícias que lhe vou dar ainda o vão fazer sorrir de alegria. E começou a contar as novidades:
- Estas férias trouxeram grandes modificações na vida deste seu amigo. Primeiro, fui requisitado pelo Ministro da Informação para seu assessor, com início no primeiro dia de Outubro. Isso implica uma mudança residência e a Dona Leocádia, entusiasmada, já ficou em Liboa para escolher a nossa futura casa;
Depois, a minha filha a Maria da Cruz, casou-se no último fim de semana. Foi uma festa simples, por vontade expressa dos noivos, e reservada à família mais chegada. O meu compadre, Comendador Moreira e a Esposa ficaram desgostosos, mas eu entendi o desejo da minha filha. Bem a conheço e sei quão simples ela é.
Ainda mais, a minha filha mais velha a Maria Madalena, quando esteve na quinta do Douro com o casal nosso amigo, recebeu o convite para ir trabalhar para a Embaixada em França como assistente do adido cultural .Ficou naturalmente feliz. O Dr. Alexandre de Freitas, acaba de ser nomeado Embaixador e vai apresentar credenciais na próxima sexta-feira. Nesta altura a minha filha já está em Paris para acompanhar a transferência dos dossiers.
Então meu amigo, o que me diz? Não me parece ter ficado contente?
- Desculpe senhor Director, estava a pensar nas voltas que o mundo dá, em menos de um mês. Mas, claro que fico muito feliz com o que ouvi e desejo a todos o melhor. Ficarei triste, é claro, por o ver partir, mas como vou agora de férias terei tempo de recuperar.
-Sim eu compreendo a sua tristeza, mas são oportunidades que não devemos deixar fugir. Você meu caro amigo, trate de aproveitar as férias para descansar. Que bem precisa, isso eu vejo. Até porque ao voltar terá novas funções à sua espera. Irá ser adjunto do novo director, pois ele, coitado, é novo nestas coisas e não tem experiência. E a sua promoção, e é disso que se trata, será efectiva a partir do dia 1 de Outubro próximo. Fui eu mesmo que a redigi e obtive o acordo do senhor Ministro.
- Vejo que já ficou com melhor cara, Felizberto. Agora saia e vá preparar as suas coisas para as férias. Não se esqueça que no último dia de Setembro deve estar aqui para a transferência de poderes. Tenha umas boas férias que bem merece.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

O Carteiro que gostava de cartas de amor

10 - À BEIRA DO ABISMO

Mais uma carta para juntar aos seus receios. E que ele iria sentir de forma tão intensa, sofrendo como nunca pensou ser possível.

Meu amor,

Hoje quero estar mais tempo perto de ti. Hoje a noite em que te escrevo vai ser de martírio.
Hoje vão desfilar pela minha memória todos os horrores por que passei. As desilusões que sofri, o sofrimento que testemunhei e a barbárie de que o homem foi capaz. Hoje sinto o cheiro a morte que se me agarrou ao corpo. E que teima em não me libertar. E é com os olhos rasos de lágrimas que penso em ti.
E sinto-te, partilhar dos meus momentos. Aqueles que vivemos juntos, e tão poucos eles foram, e aqueles que vivemos, cada um em seu mar, mantidos afastados como dois proscritos.
Hoje preciso de reviver o nosso passado, porque tenho medo do futuro.
Sinto-me morrer um pouco e tenho medo de fechar os olhos.
Vem nas asas aladas do pensamento fazer-me companhia. Vamos beber do mesmo copo o fel das nossas vidas. Brindemos ao amor à vida e à morte. Mas brindemos juntos, dois corpos numa mente.
É de noite. Faz calor e as ruas estão cheias de gente que ri enquanto sorve bebidas geladas. Gente que ri, porque meu Amor ainda há gente que ri e que é feliz.
Chego à janela e apetece-me pedir silêncio em nome dos que estão tristes e sós. Mas que adianta, ninguém me vai ouvir.
Sabes, amanhã vou embarcar para Marselha e dali sigo para Argel. Vou para uma cidade linda e branca, mas carregada de ódio e pronta a rebentar em pólvora e em sangue.
Eu já vi sangue demais. Já não sei se suporto nova provação. E meu Amor, desta vez sinto o medo. Quando cerro os olhos, vejo corpos caídos, exangues, mas sem rosto. É um medo que me arrepia como se fosse um pressentimento.
Não sei que fazer. Estou perdido a meio caminho, sem bússola sem guia e sem vontade de caminhar. E a noite que não passa e leva os meus fantasmas. Sinto-me à beira de um precipício e uma sombra que ri, segreda-me: anda em frente, segue, dá o passo que te falta!
E eu recuo, agarrando-me ao vazio, pedindo e gritando, agora não, ainda não.

BALADA

Depois do sangue misturado,
depois dos dentes, dos lamentos,
estamos deitados lado a lado,
e desfolhamos sofrimentos.
Temos trint’anos, mais trezentos
de sofredora exaltação.
É este o cabo dos tormentos?
Ai, não e não! Ainda não.

Saboreamos o passado
por entre os beijos mais violentos
e mais subtis que temos dado.
E o monumento dos momentos
oscila, desde os fundamentos,
a tão febril consagração.
Mas estacamos, sonolentos.
Agora, não. Ainda não...

Tudo se torna esbranquiçado:
eram azuis, são já cinzentos
os horizontes do pecado ...
Há nos teus ombros turbulentos
cintilações, pressentimentos ...
Os nossos corpos descerão
para que abismos lamacentos?
Ah! não, e não! Ainda não!

Eis-vos, de novo, movimentos
que apunhalais a inquietação!
E assim unidos gritaremos
que não e não! que ainda não!

(David Mourão-Ferreira)

O sol despontou. A noite escura foi-se desvanecendo e um dia radioso se anuncia. Vou até à janela, já não oiço a voz que me atormentou. A cor do sol ao amanhecer é viva, cheia de esperanças. Assim como eu fico. Mas são horas de partir.
É só descer as escadas, puxar uma pequena mala e tomar um táxi que me espera. O condutor guiará que nem um louco na direcção da estação de Austerlitz. A hora do comboio aproxima-se. Não posso tardar.
Voltarei?
Vai à nossa praia, procura o lugar onde enterramos os sonhos e os desejos e junta mais este. Quem sabe, um dia os iremos reviver.
Adeus, adeus adeus
A
Paris, 31 de agosto de 1954


Felizberto leu este pedido de ajuda, este grito de medo. Também eu tenho medo meu irmão, murmurava enquanto um espasmo de dor lhe perpassava pelo corpo.
Oh como agora se lembrava do que lhe custarara, jovem e ingénuo seminarista, ter de inventar segredos, pecados e luxúrias, que nem sabia o que eram, para deleite de alguns Padres que o ouviam no confessionário. E agora, tantos anos já vividos, tinha sido ele a espreitar os segredos de um par de amantes e também para seu único prazer. Afinal, pensava para si, qual era a diferença?
Olhava em redor, perdido. Procurava uma mão amiga a quem pedisse ajuda. Mas não tinha. Tudo perdera porque tudo quisera e esquecera as pessoas.
Tinha o olhar turvo e pesado. Precisava de refrescar a cabeça. Foi a um lavatório, olhou-se num espelho e recuou num salto. Também ele vira jovens da sua idade tombados, erguendo as mãos implorando ajuda, mas não tinham rosto. Eram mortos vivos, eram a sua assombração. Saiu a correr para casa. Sem parar, ouvia passos que o perseguiam mas não via ninguém. As ruas estavam vazias e só ele corria fugindo do destino que imaginara ver.
Parou numa taberna a meio do caminho, escura e quase vazia, comprou uma garrafa de vinho, um maço de cigarros e uma caixa de fósforos. Pagou e sem olhar para trás correu e encerrou-se no quarto. Estava quente e o suor escorria em bica pelas fontes. Abriu a janela, e começou a beber pela garrafa grandes tragos de vinho. Era áspero e parecia queimar a garganta e o peito. Acendeu um cigarro, outro, e mais outro e inalando tanto fumo e sorvendo tanto alcool, começou a sentir uma névoa sobre os olhos que se fecharam de cansaço. Acordou com os primeiros raios de sol. Lavou-se, vestiu-se sem nunca olhar o espelho. Tinha medo de se ver.
Entrou no serviço e seguiu logo para o seu lugar. Remexeu uns papéis,
segurou a cabeça entre as mãos. Estava esgotado. Consumira-se naquela loucura que vivia, como se fosse uma vida paralela. Ele era parte da tragédia e, era dela, que o seu espírito se alimentava.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

O Carteiro que gostava de cartas de amor

9 - SINAIS

E a procura, desesperada, das cartas que tanto o impressionavam, tornou-se doentia. Ficava eufórico e perturbado ao mesmo tempo. Estava a perder o controlo das suas emoções. Para isso contribuiu mais esta carta dirigida a Louis Aragon, rue de Montparnasse, 36 – Paris. A remetente era Sofia Melo, da Rua sá da Bandeira, sem número, na cidade do Porto.

Meu amor,

Estou só, mas estes são os melhores momentos da minha vida. Os meus Pais e a minha irmã foram de férias, eu fiquei. Só irei passar uma semana a casa de uns amigos no Douro pois para além da paisagem fazer bem à minha alma, estarei com uma senhora muito simpática, que sempre me tratou com carinho. Ela conhece um pouco da história do nosso jovem amor e prometeu ir tentar ajudar ao nosso reencontro. E eu acredito.
Na noite passada fui passear à nossa praia. Estive sentada a ouvir o bramir das ondas, tentando destruir os blocos de pedra que colocaram como obstáculo.
O mar luta para seguir o seu caminho. Não desiste e tanto porfia que sempre alcança. Tomara eu ter feito o mesmo e ter galgado os muros com que me cercaram.
A noite está escura. No céu brilham as estrelas. São as mesmas que testemunharam o nosso amor e selaram as nossas promessas. Lá do alto, vigiam a cova de areia onde enterrámos os nossos sonhos. Noite, minha amiga e companheira, leva-me para junto de quem amo.

Noite

Mais uma vez encontro a tua face,
Ó minha noite que eu julguei perdida.

Mistério das luzes e das sombras
Sobre os caminhos de areia,

Rios de palidez em que escorre
Sobre os campos a lua cheia,

Ansioso subir de cada voz,
Que na noite clara se desfaz e morre.

Secreto, extasiado murmurar
De mil gestos entre a folhagem

Tristeza das cigarras a cantar.

Ó minha noite, em cada imagem
Reconheço e adoro a tua face,
Tão exaltadamente desejada,
Tão exaltadamente encontrada,
Que a vida há-de passar, sem que ela passe,
Do fundo dos meus olhos onde está gravada.
(Sophia de Mello Breyner)

Recebi, pelo portador do costume, a encomenda com livros e o exemplar da revista com as tuas reportagens. Fiquei feliz de ver a tua foto no jornal, com o teu cabelo revolto e já grisalho, as rugas da vida talhadas no teu rosto. Mas fiquei muito preocupada com a força dos teus artigos. Vi neles uma denúncia mais do que uma reportagem; uma acusação mais do que um relato mas sobretudo uma revolta e um grito de alerta. Que, meu amor, como bem sabes, ecoará no vazio dos que se recusam a olhar o futuro.
Guarda para ti esse sentimento, não deixes que ele vá corroendo a tua alma. Vê o futuro como sonhámos, naquelas noites intemporais. Para que um dia possamos caminhar através do mistério que se embala nos pinhais e no mar.
No nosso mar.
Vivo com uma réstea de esperança na promessa que me fizeram. Quem sabe dá certo e um dia estaremos juntos, finalmente juntos.
Até lá espera por mim. Não vou tardar.

UM DIA

Um dia mortos, gastos voltaremos
A viver livres como os animais
E mesmo tão cansados floriremos
Irmãos vivos do mar e dos pinhais.

O vento levará os mil cansaços
Dos gestos agitados, irreais
E há-de voltar aos nossos membros lassos
A leve rapidez dos animais.

Só então poderemos caminhar
Através do mistério que se embala
No verde dos pinhais, na voz do mar
E em nós germinará a sua fala.

(Sophia de Mello Breyner)

M.
Porto, 25 de agosto de 1954


Felizberto sentia-se, carta a carta, mais perdido. A realidade e a ficção não as distinguia, porque dentro de si, havia o conflito entre o bem e o mal. Um, era o jovem idealista e natural que um deixara a sua terra para encontrar um mundo melhor; outro era o adulto que abandonara os ideais, e se perdera.
O primeiro queria acabar de vez com a doença que o infectara. O segundo precisava de mais tragédia e dor para se alimentar.
Cada carta que abria, cada texto que lia, cada poesia que gritava, iam alargando a ferida sangrenta que já sentia. O sofrer era como um fogo interior, um tormento que se cumpria na solidão da sua existência.
Não se conseguira libertar do vício, mas, pouco a pouco, ia tentando colocar mais distância.
Mas quantas vezes o destino determina o caminho. Já não perdia tempo a procurar as cartas. Nem era preciso, parecia que alguém as colocava à sua frente e lhe segredava” porque esperas abre e lê”.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

O Carteiro que gostava de cartas de amor

8 - O COMEÇO DO FIM

Entretanto Agosto chegou de mansinho. As pessoas saíras para férias e a cidade ficou mais vazia e calma.
Mas Felizberto nem disso se dava conta. O seu dia a dia continuava a ser o mesmo. A sua vida ficava cada dia mais distante e sem sentido, que não fosse prestar atenção redobrada à correspondência, com medo de perder o desenrolar da história de amor e sofrimento. Nada mais o interessava. Como não tinha amigos nem pessoas para conversar, fechava-se cada vez mais no seu casulo, como se ele também fosse parte da história.
Desta vez estava perturbado pois havia mais de um mês que não encontrava a resposta e chegou a pensar que tudo tivesse chegado ao fim. Mas, finalmente, localizou uma carta vinda de Paris. O nome do destinatário era agora Flobela Lobo, na Rua de Santa Catarina, 420 – 4º. Esq. Porto. O remetente era A. Botto, Rue des Tuilleries – Paris. Ele já percebera que os nomes estavam ligados aos autores dos poemas e por isso não eram importantes.
Voltou a abrir e mais uma vez, acertou. A carta também começava com um poema.

“Chora a amante esquecida,
Chora quem vai barra fora;
-Quem não chorou nesta vida
Se o próprio mar também chora?
Sim; tudo acaba num ai,
Num silêncio, num olhar,
Ou numa lágrima triste!
-Nem já sei se te beijei,
Nem me lembro se me viste...
É isto, apenas. O mais
É mentira e fantasia...
-Se a vida não fosse choro,
O que é que a vida seria?
(António Botto)

Meu amor,

Demorei mais tempo a escrever. De repente o Editor da revista mandou-me a mim e ao Yves fazer a reportagem da libertação dos soldados franceses presos após o desastre de Dien Bien Phu na Indochina.
A viajem era longa e como não queríamos perder o momento arrancámos de imediato. Regressei hoje, e só hoje pude ler a tua carta.
Não vai ser tão depressa que vou conseguir esquecer o momento em que soldados treinados, combatentes da Legião Estrangeira e das Tropas Paraquedistas de elite, homens feitos, choravam de dor e raiva depois de terem sido humilhados por um exército de homens descalços, mas de vontade indómita, que durante cinquenta e seis longos dias, os haviam combatido en Die Bien Phu, a fortaleza inexpugnável na opinião dos generais franceses.
Gritavam de raiva, nunca mais, e atiravam os bonés ao estuário do rio. Sentiam que a França tinha abandonado os seus centuriões, que ali tinham estado a combater para defesa dos ricos fazendeiros franceses e dos seus aliados.
Ouvi, e o Yves fotografou, um tenente coronel Paraquedista,a soluçar como um pai a quem tivessem morto um filho. Mas como podes reparar tem um brilho muito estranho no olhar.
Não auguro nada de bom. Estes homens vão voltar e desembarcar derrotados, e por isso escondidos do povo para sua maior humilhação. O que farão a seguir, não sei.
Ouvi dizer, e não pela primeira vez, que esta apenas foi a continuação das guerras anteriores e a primeira pelalibertação de povos colonizados. Outras se seguirão.
Pelo portador habitual vais receber um exemplar da revista onde foram publicados os meus artigos e as fotos do Yves.
Estou muito cansado. Viver, começa a pesar. A solidão mata.
Penso em ti, nos momentos que não vivemos, nas ternuras que não tivemos. Penso em ti. Vem, vem depressa.


DIES IRAE

Apetece cantar, mas ninguém canta.
Apetece chorar, mas ninguém chora.
Um fantasma levanta
A mão do medo sobre a nossa hora.

Apetece gritar, mas ninguém grita.
Apetece fugir, mas ninguém foge
Um fantasma limita
Todo o futuro a este dia de hoje.

Apetece morrer, mas ninguém morre.
Apetece matar, mas ninguém mata.
Um fantasma percorre
Os motins onde a alma se arrebata.

Oh! maldição do tempo em que vivemos,
Sepultura de grandes cinzeladas,
Que deixam ver a vida que não temos
E as angústias paradas!
(Miguel Torga)
Paris, 18 de Agosto de 1954
A.


Bem, pensou Felizberto, agora não sou capaz de parar, ainda que queira.
Já não tenho vontade própria. Este ser que chora as desventuras dos outros, não que lhas contem, mas que espia pelo buraco da fechadura, já se perdeu.
Não tem mais nada, nada o prende salvo as cartas de amor que anda lendo às escondidas. Se terminarem as cartas também termina a sua razão de ser. Como é que a solidão me causou tanto mal? O que eu ando a fazer não tem perdão e nem eu a mim próprio posso perdoar. Pudera eu voltar atrás, ter seguido os conselhos que me deram e tudo poderia ser diferente. O mal dentro de mim não existia, ele cresceu alimentando-se da minha própria carne e bebendo do meu sangue.
Ficou doente e em estado febril. A tia chamou um médico que o medicamentou, tratou dos efeitos mas as causas ficaram. Mesmo assim voltou ao trabalho já que aos exames havia dispensado. Os tios ficaram naturalmente preocupados mas a pedido não contaram nada à Mãe. Atribuíam o estado do Felizberto a cansaço com os estudos e que se agravou na época de exames. Até Felizberto fez por acreditar.




terça-feira, 26 de outubro de 2010

O Carteiro que gostava de cartas de amor

7 – A TERCEIRA CARTA

Felizberto, embora tivesse poucas dúvidas sobre a autora da primeira carta, não resistiu e foi à Rua do Bolhão espreitar o número 208 r/c Esq. O número existia de facto, mas a casa só tinha primeiro e segundo andar.
Andou por ali a cirandar, procurando passar despercebido, mas viu num relance uma mulher que iria jurar, era a Maria Madalena.
Mudou logo de caminho porque não queria que ela o visse a rondar aqueles sítios. Deixou de ter dúvidas. O casal de apaixonados utilizava nomes e endereços falsos.
Passou algum tempo sem localizar a resposta. Ficou preocupado pois pensou que Maria Madalena, afinal o tivesse visto e tivesse mudado a estratégia. Mas não desistiu procurando cada dia com mais afinco.
Sem nada de especial, mas como se fora um prenúncio, olhou algumas vezes para uma carta também para Paris. O nome do remetente não conseguia ler mas a morada era na Rua de Santa Catarina, nem número. O destinatário em Paris era Ricardo E. Basoalto, Rue de Rivoli, 309 – 1º. Esq. Bem esta não tem nada de suspeito, pensou, todavia vou abrir.
Ficou surpreendido porque esta carta começava com um poema. Começou a ler e logo adiante rejubilou, afinal era mesmo o que procurava.


FANATISMO

“Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer razão do meu viver,
Pois que tu és já toda a minha vida!

Não vejo nada assim enlouquecida ...
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!

“Tudo no mundo é frágil, tudo passa ...”
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!

E, olhos postos em ti, digo de rastros:
“Ah! Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: Princípio e Fim!...”

(Florbela Espanca)

Amor, meu Amor, minha Vida

Estava a ler poemas de amor e de saudade quando recebi a tua carta. Deles escolhi este, porque para mim já nada importa na vida. Tu, só tu és o meu Deus “ Princípio e Fim”.
O tanto que chorei, secou a minha alma. Nem uma lágrima restou.
Li as tuas desditas a tua dor o sofrimento a desesperança. Doeu-me muito, tanto que nem sei como te dizer.
Guardo tudo no mais fundo do meu pobre coração. Que apesar da dor e da saudade, ainda vai batendo, batendo até que se canse de esperar.
Estou perdida, sem rumo, sem destino, no meio da tempestade. “Tudo em mim foi naufrágio”.
De tanto te querer já nem sei se te quero. Receio que para ti eu seja apenas uma miragem, reflectida num espelho estilhaçado pelos desgostos da vida.
E eu, aqui fico, onde sempre estive, deste lado do muro que não caiu e já sem forças para abrir os meus braços e te acolher, invejando as aves que passam de regresso aos ninhos. “Tudo em mim foi naufrágio”.
Quero acreditar, sim ainda quero, que neste mundo ou no outro havemos de nos encontrar e, e depois, até em teus braços morrerei.
Pois tu és “Princípio e Fim”.

Porto, 7 de Julho de 1954

M.

Felizberto respirou fundo. Estava tão feliz. Nem se dava conta de que a sua vida se limitava a espreitar a vida dos outros. A tragédia e a dor daqueles dois seres eram o seu alimento. Como um vampiro. Pobre Felizberto.
O Director chamou-o ao gabinete, para lhe dizer que o mês de Agosto se avizinhava e logo o seu habitual período de férias. O Felizberto deveria aguardar pelo seu regresso já que queria que fosse ele a desempenhar as funções.
- Sabe Felizberto eu vou passar a primeira quinzena nas termas do Buçaco. Fazem muito bem à saúde de Dona Leocádia. Mas vamos só os dois. A Maria da Graça vai para Lisboa, mais própriamente para o Estoril, passar todo o período em casa de uns amigos em quem temos toda a confiança. Só assim poderia ser, como calcula. A Maria Madalena, prefere ficar na nossa casa no Porto e só irá por uma semana juntar-se a nós, numa quinta no Douro, para onde me fomos convidados por amigos, com altas funções no Governo. Mas eu só me sentirei tranquilo se você assumir as minhas responsabilidades.
Felizberto respirou fundo e garantiu ao Director que ele não se ausentaria para férias sem o seu regresso.
Na verdade nem lhe apetecia ir de férias. Tinha vontade de ver a Mãe mas receava que ela, com a argúcia de quem tão bem o conhecia, visse um filho diferente do que partira. Escreveu, dizendo que provávelmente só poderia ir de férias em finais de Setembro, por razões de trabalho e de estudo. E continuou à espera de correio que alimentasse o seu viver.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

O Carteiro que gostava de cartas de amor

6 – A SEGUNDA CARTA

Com crescente ansiedade foi aguardando a resposta. Redobrou de atenção e via ao pormenor toda a correspondência vinda de França e particularmente de Paris. Não era muita, naqueles anos e por isso não lhe foi difícil identificar uma carta remetida por André Breton. O mesmo endereço, e como destino Maria Carneiro, por coincidência domiciliada na Rua do Bolhão, 208 r/c esq. Porto. Era, apostava a resposta . E teve razão.
Com os mesmos cuidados abriu e leu:

Meu amor tão longe e tão perto

Já lá vai tanto tempo, é verdade. Mas eu sinto que foi ontem que me despedi de ti. Por entre lágrimas e beijos, trocámos juras de amor eterno. E é isso que eu ainda sinto. As forças que impediram o nosso amor, levaram-me ao exílio, mas tu foste sempre a minha estrela. Mesmo nos momentos trágicos por que passei, foi a pensar em ti que lutei, para sobreviver.
Quando fugindo da Polícia entrei em Espanha e, levado pelo romantismo e idealismo dos dezoito anos, me juntei aos que lutavam pela liberdade, estava bem longe de pensar que seria uma viajem tão longa. Atravessei a Espanha de caneta na mão e com a cabeça a fervilhar de ideais e de sonhos. Sonhos que morreram nos campos de refugiados em França, onde fui internado, juntamente com milhares de outros românticos, quando os fascistas tomaram a Catalunha. Passámos frio e fome, gritámos por ajuda e o mundo não ouviu os lamentos.
Fugi para Paris, a cidade dos nossos sonhos, mas cheguei só a tempo de ouvir as botas cardadas dos lobos nazis, desfilando pelos Campos Elísios.
Sem documentos, sem amigos, andei fugido dormindo ao frio e à chuva, misturado com a legião de refugiados que a guerra criara. Encontrei três amigos jovens como eu. E os quatro, dois judeus franceses, um refugiado belga e este pobre Português errante, tentamos a aventura de fugir para o País Basco, atravessando os Pirinéus. Não correu bem. Os meus companheiros ficaram enterrados nos desfiladeiros medonhos que cruzámos. Eu fui salvo por guerrilheiros bascos e remetido de novo para Paris.
Lá encontrei pessoas que me ouviram e tiveram pena de mim. Deram-me abrigo. E foi dali que, finalmente, te consegui escrever uma pequena carta, para te mostrar, que nem o sangue, nem as balas, haviam conseguido apagar a tua imagem.
Porém, e como tantos outros, naqueles dias de chumbo, acabei na prisão, ouvindo histórias de horror, gritos dos torturados, lamentos de jovens e de velhos. Recordo aqueles dias, perdido entre tantos infelizes, sem caminho, sem futuro e sem razão de viver, senão a esperança de voltar aos teus braços. Mesmo agora, e já passaram tantos anos e tantas coisas vivi e testemunhei, só guardo para além do medo, a lembrança de um velho que, sangrando das torturas cantava para os seus algozes a Marselhesa.
E mesmo ao ser fuzilado, por uma vez se levantou e gritou viva a França livre.
Quando fui libertado e voltei à casa que me abrigara, esta estava vazia. Os vizinhos contaram que era um casal de judeus franceses e que teriam viajado. Mais tarde, bastante mais tarde, soube a que viagem se referiam. Mais uma vez procurei ajuda e quando a encontrei, um simples quarto numas águas furtadas de onde quase não podia sair, escrevi a carta que mais me doeu escrever em toda a minha vida. Sentia-me tão só e abandonado que desesperadamente, admitia como único caminho, a morte redentora.
Lembrei-me da coragem do pobre homem que vi morrer cantando. Senti que como ele, teria de recomeçar a viver e a lutar pelo que acreditava. E a única coisa em que acreditava era no nosso amor, nas nossa juras e promessas, nas nossas esperanças. Foste tu que me salvaste.
Foste o bálsamo que acalmou a minha dor.
Esperei, oh como esperei que no fim da guerra, no meio do rebentar dos foguetes, surgisse o canto de uma trombeta que derrubasse o muro que ergueram à nossa volta.
Mas o muro continuou. Jericó não se repetiu.
As nossas memórias , os nossos segredos, o nosso amor sofrido, foi o que nos restou a que nos agarrámos e que nos sustenta. Essa força foi de ti que a recebi. As tuas cartas foram o meu alimento, o meu refúgio. Nelas ancorei o meu desespero.

A CANÇÃO DESESPERADA

Emerge a tua lembrança desta noite em que
(estou.
O rio junta ao mar o seu lamento obstinado.

Abandonado como os cais da madrugada.
É hora de partir, ó abandonado!

Sobre o meu coração chovem frias corolas
Ó porão de escombros, feroz caverna de
(náufragos!

Em ti se acumularam as guerras e os voos.
De ti bateram as asas os pássaros do canto.

Tudo devoraste, como faz a distãncia.
Como o mar, como o tempo. Tudo em ti foi
(naufrágio!

Era a hora alegre do naufrágio e do beijo
A hora do estupor que ardia como um farol.

Ansiedade de piloto, fúria de mergulhador cego,
Turva embriaguez de amor, tudo em ti foi
(naufrágio!

Na infância de névoa a minha alma alada e
(ferida.
Descobridor perdido, tudo em ti foi naufrágio!


Eu fiz retroceder a muralha de sombra,
caminhei para além do desejo e do acto.

Ó carne, carne minha, mulher que amei e perdi,
A ti nesta hora húmida evoco e faço canto.

Como um copo albergaste a infinita ternura,
e o esquecimento infindo estilhaçou-te como um
(copo)

Era a negra, negra solidão das ilhas,
e ali, mulher de amor, teus braços me acolheram.

Era a sede e a fome, e tu foste uma fruta.
Era o luto e as ruínas, e tu foste o milagre.

Ah mulher, não sei como pudeste conter-me
Na terra da tua alma e na cruz dos teus braços!

O desejo de ti foi o mais terrível e curto,
O mais revolto e ébrio, o mais tenso e ávido.

Cemitério de beijos, ainda tens fogo nas tumbas,
Ainda as uvas ardem debicadas por pássaros.

Oh a boca mordida, oh os beijados membros,
oh os famintos dentes, oh os corpos trançados.

Oh a cópula louca de esperança e de esforço
Em que nós nos juntámos e nos desesperámos.

E a ternura, leve como a água e a farinha.
E a palavras que quase nem nasciam nos lábios.

Foi esse o meu destino e nele viajou a vontade,
E nele caiu a vontade, tudo em ti foi naufrágio!

De tombo em tombo ainda tu ardeste e
(cantaste.
Marinheiro de pé na proa de um navio.

Ainda floresceste em cantos, ainda rompeste em
(correntes.
Ó porão de escombros, poço aberto e amargo.

Pálido mergulhador cego, desventurado
(fundeiro,
descobridor perdido, tudo em ti foi naufrágio!

É a hora de partir, a dura e fria hora
Que a noite prende a todos os horários.

O cinturão ruidoso do mar abraça a costa.
Surgem frias estrelas, emigram negros pássaros.

Abandonado como o cais na madrugada.
Apenas a sombra trémula se me torce nas mãos.

Ah para além de tudo. Ah para além de tudo.
É a hora de partir. Ó abandonado.

Pablo Neruda - (Tradução de Fernando Assis Pacheco)

Andei a arrumar e a reler as tuas cartas. Aproveitei para vasculhar papéis que guardei durante estes anos. Encontrei uma revista que foi a única coisa que salvei na minha fuga. Era preciosa. Chama-se #Caballo Verde# e foi criada no breve tempo da República Espanhola. Nela tinha guardado o poema que hoje te mando.
E faço meu o grito de angústia e desespero.
É a hora de partir.
Adeus minha deusa, meu sol.
A.
Paris, 15 de Junho de 1954

Felizberto estava tão feliz que até as faces ganharam cor. Quantas vezes leu, nem sabia, mas foram muitas e algumas lágrimas reprimiu.
Voltou aos cuidados que aprendera, guardou cópia para si e deixou seguir a carta.



domingo, 24 de outubro de 2010

O Carteiro que gostava de cartas de amor

5 – A PRIMEIRA CARTA DE AMOR

Até a Universidade não estava a corresponder ao que dela imaginara. As matérias eram banais e sem grande esforço tinha excelentes notas. Mas não tinha um amigo com quem pudesse conversar. Na verdade, sentia-se um corpo estranho e os colegas afastavam-se dele.
Tornou-se mais frio e distante. O encantamento ia desaparecendo pouco a pouco. Refugiava-se na leitura e realizava o seu trabalho de forma mecãnica e desinteressada.
E foi num desses dias mais sombrios que reparou numa carta que lhe chegara as mãos. Não tinha nada de diferente das outras mas um sexto sentido despertou-lhe a curiosidade, abriu e leu, pela primeira vez, uma carta de amor. Daí em diante a sua vida nunca mais seria a mesma.
A carta tinha como destinatário o senhor André Breton, Rue de l’Ópera, 128 – 3ème gauche Paris e como remetente R. Castro na Rua do Bolhão, 208 – r/c esquerdo – Porto.
O texto fascinou-o:

“ Meu amor distante,

É verdade, meu velho companheiro. Faz dezasseis anos que não nos vemos.
Desses, alguns, já nem sei quantos, estivemos tão longe que nem uma palavra escrita pudemos trocar.
Naqueles longos e tristes anos, sem te ler, sem saber de ti, fizeram-me duvidar da existência de Deus. Afinal, que mal teríamos nós feito para justificar tanta dor?
O nosso amor merecia um castigo tão grande?
Imagino como sofreste nesse período de escuridão. Porque sei o mal que ele me fez. Mas entre o desespero e a esperança fui aceitando o correr dos dias, dos meses, dos anos, esperando sempre uma palavra tua. A minha companhia era o nosso mar, na nossa praia. Sentada, horas e horas, ouvia o bramir das ondas contra as rochas, mas no nosso recanto, a água vinha de mansinho acariciar-me os pés. Isso fazia-me feliz.
Foi num desses dias que senti dentro de mim um som que nunca mais esqueci. Parecia um sussurro a dizer-me para voltar a casa. Corri cheia de esperança. Tinha um pressentimento que algo de bom iria acontecer. E foi. A tua palavra chegou. Mas tão triste e sofrida que as tuas palavras de desânimo, ficaram para sempre guardadas no meu coração.
Meu amor, sinto uma saudade tão grande que não cabe nas palavras. Deixámos fugir o que deveria ter sido o melhor período da nossa vida. “Erros meus, má fortuna, amor ardente”, já dizia o Poeta e foi tudo isso.
Quando deitados na praia, na nossa praia, ouvindo o bater das ondas e do nosso coração, depois de nos termos amado até à loucura, decidimos dar corpo aos nossos sonhos, aos nossos ideais, deixamos que outros impedissem o nosso caminho. Tu seguiste, apesar de tudo, e eu fiquei nesta prisão cada dia mais sufocante.
Dezasseis anos, meu amor. Será que valeu a pena?
Afinal nada mudou, nada mudámos, apenas ficámos mais velhos.
E os nossos sonhos, que é feito deles? Estarão ainda enterrados na areia da praia onde os deixámos?
Como te disse, juntei as nossas cartas, os nossos poemas preferidos e pedi ao António que os editasse em forma de livro, mas apenas uma dezena de exemplares. Eram só para nós. Até isso se foi e até essa memória nos roubaram. O António foi preso e do livro nem encontro um sinal. Desejo, que pelo menos o tenha levado, lá para onde foi, e lhe mate as saudades destes dois amigos.
Anseio pelos teus beijos. Sinto, oh como sinto a tua ausência. Nesta vida que levo, esperando ansiosamente as tuas cartas, nada mais me resta do que ler e reler os poemas da nossa vida.
Os livros são os meus únicos amigos mas até eles tenho de manter escondidos. Passo a vida à procura de alguém que não faça perguntas e aceite emprestar o endereço para receber as tuas notícias. Os livros, agora estão guardados nas prateleiras de casa e da livraria que a Dona Elvira vai gerindo enquanto não souber nada do marido. Coitada, vive só e emprestou-me as chaves para eu me esconder enquanto leio.
Mas agora fala-me de ti, meu amor etéreo. Diz que me amas e que ainda acreditas no nosso futuro. Preciso desse amparo, pois sinto-me uma estátua falsa, sem vida e ao sabor dos ventos.
ESTÁTUA FALSA
Só de ouro falso os meus olhos se douram;
Sou esfinge sem mistério no poente.
A tristeza das coisas que não foram
Na minh’alma desceu veladamente.

Na minha dor quebram-se espadas de ânsia,
Gomos de luz em treva se misturam.
As sombras que eu dimano não perduram,
Como Ontem, para mim, Hoje é distância.


Já não estremeço em face do segredo;
Nada me aloira já, nada me aterra:
A vida corre sobre mim em guerra,
E nem sequer um arrepio de medo!

Sou estrela ébria que perdeu os céus,
Sereia louca que deixou o mar;
Sou templo prestes a ruir sem deus,
Estátua falsa ainda erguida ao ar ...

(Mário de Sá-Carneiro)

Adeus, amor de uma vida. M.M.

Porto, 13 de Janeiro de 1954
Quando acabou de ler a carta e reler a poesia, Felizberto percebeu que havia ousado entrar na intimidade de duas pessoas, que não conhecia mas que sofriam. Acabara de violar um direito, ele que sempre pensara não o fazer.
Suores frios ensoparam a camisa porque, tal como um criminoso empedernido, sentira prazer com o que fizera. Arranjou maneira de copiar a carta, guardar um apontamento com os endereços, fechar e deixar seguir.Terminou a tarefa, estendeu as mãos e ao contrário do que imaginara, elas estavam firmes e sem qualquer tremor.
De repente lembrou-se de que a carta falava no Sr. António, o seu antigo patrão e que Maria Madalena também havia referido o incidente da prisão, na conversa que tinham tido. Maria Madalena claro, teria de ser a autora daquela carta.

sábado, 23 de outubro de 2010

O Carteiro que gostava de cartas de amor

4 – A FAMÍLIA CARVALHO e MORAIS

Como já tinha decidido ir estudar e já tinha as informações necessárias, resolveu pedir autorização ao Director. Sabia que ele iria apreciar tal gesto.
Quando entrou no gabinete, com as mãos atrás das costas em sinal de respeito, olhando para o retrato em ponto grande do Dr. Salazar, bem visível por cima da secretária, confessou com humildade que não era sobre o serviço que queria falar mas que precisava do conselho avisado e amigo do Senhor Director. Não sei o que o senhor pensará do meu pedido mas quero pedir-lhe autorização para entrar na Universidade, pois penso que o que lá aprender poderá ser colocado ao serviço do bem comum. Ao mesmo tempo e porque estou hesitante gostaria que o senhor me aconselhasse o curso mais adequado.
O Director, vísivelmente agradado, levantou-se da secretária caminhou na direcção de Felizberto, de braços abertos dizendo: - Nem sabe caro colaborador a alegria que me deu. Claro que concordo com a sua ida para a Universidade mas deixo o curso ao seu critério. Fosse eu e teria escolhido Direito, como homenagem ao meu modelo, e apontava para a fotografia, mas teria de ter ido para Coimbra. Mas o espírito de sacrifício que nessa altura conturbada era pedido aos servidores da causa pública, impediram que eu lhe tivesse seguido as pisadas.
Felizberto, disse estar a pensar num curso de Letras. Mas como desde 1928 a Faculdade de Letras do Porto estava encerrada, terei de escolher outro caminho que até poderá passar também por Coimbra se o Senhor Director não vir inconveniência para o serviço.
- Meu caro amigo, veja lá como consegue conciliar as suas opções, porque da minha parte terá sempre toda a ajuda que for necessária. E já agora, aproveito para o convidar a vir jantar em minha casa no próximo sábado. Conhecerá então a família. Felizberto, apanhado de surpresa, ia dizer qualquer coisa mas o Director logo rematou a conversa com a frase: - E não aceito uma recusa!
Para o jantar de sábado teve de recorrer à ajuda da tia. Ela lá conseguiu arranjar um fato ainda em bom estado mas que já não servia ao marido. Deu-lhe uma boa limpeza e escolheu uma camisa branca e uma gravata sóbria como convinha e uns sapatos que o sapateiro acabara de entregar depois de lhe colocar meias solas. Assim vestido e calçado, com a barba bem feita, um cheirinho a alfazema que a tia lhe espalhou na roupa, Felizberto parecia outro, como gracejava a prima.
O Director estava à sua espera e foi ele que abriu a porta e com um largo sorriso apresentou-lhe a esposa, uma senhora bem nutrida de carnes, carregada de fios de ouro, e com um rosto algo esquisito porque tinha os lábios carregados de baton. Esta é a minha fiel companheira, Dona Leocádia de Carvalho e Morais, e este o meu colaborador de confiança, sr. Felizberto Silva, espero que brevemente, Dr. Felizberto. Como tinha ensaiado com a tia, Felizberto cumprimentou a senhora com toda a deferência.
Dona Leocádia, pegou-lhe num braço dizendo: - Agora fica comigo pois sou eu que lhe vou apresentar as jóias da família. Felizberto ficou algo confuso, mas na realidade, as preciosidades eram as duas filhas do casal.
Para qualquer delas aquele jantar iria ser um aborrecimento e nem um sorriso por mais tímido, lhes aflorou os lábios. A mais velha, Maria Madalena, já teria passado a casa dos trinta. Sem ser feia, tinha um rosto triste e enigmático e um olhar sem brilho. Contudo, Felizberto teve o pressentimento que aquela mulher viria a desempenhar um papel, importante, na sua vida. A mais nova, aí na casa dos vinte anos, chamava-se Maria da Cruz. Tinha uns longos cabelos negros que emolduravam um rosto bonito e lhe davam um ar de mulher fatal. Enquanto almoçavam, Felizberto não conseguia deixar reparar em Maria da Cruz e sempre os seus olhos se encontraram. Na sua vaidade até lhe pareceu vislumbrar um olhar cheio de promessas.
Afinal tinha sido uma noite interessante e quando voltou para o quarto não deixou de escrever para casa contando o jantar e falando com entusiasmo da moça linda que tinha encontrado.
Mas algo iria mudar na sua vida. Na segunda feira seguinte, perto das quinze horas recebeu no serviço uma chamada telefónica de Maria da Cruz, a convidá-lo para aparecer no café Majestic pois precisavam de falar. Não cabia em si de contente, e o tempo que não passava.
Chegou ao café, um ex-libris da cidade do Porto, procurou uma mesa de onde visse a entrada, sentou-se, pediu uma bebida e ficou à espera.
Quando olhou para o relógio de parede e este já marcava as dezassete horas ficou mais inquieto. Sou capaz de ter percebido mal, pensava para os seus botões. Pior ficou, quando para sua surpresa, vê sentada numa mesa não muito distante da sua a Maria Madalena, que com um aceno o convidou a sentar-se.
Maria Madalena olhou-o bem nos olhos, e disse:
- Não, não é engano, eu quero dizer-lhe que a minha irmã não vai aparecer. Ela é muito jovem, gosta de provocar mas não sabe exactamente o que quer da vida. Convidá-lo foi mais uma partida das que ela costuma fazer a quem sente que impressionou. Gosta de brincar com os sentimentos dos outros.
Quando se decidir a encontrar um companheiro pode ter a certeza que o escolherá ,entre a corte de admiradores que a seguem, mas guiada pelos meios de fortuna da família. Não me parece que o senhor preencha essa condição. A minha irmã não virá e deixe-me que lhe diga, ainda bem para si. Ela gosta de se sentir adulada e mimada e não duvido que o senhor, isso faz bem. Mas acabará por se sentir traído e pode sofrer com o choque. A minha irmã sente ser um objecto de desejo, promete e não dá. Não me interprete mal, não o estou a avisar por inveja mas sim porque julgo conhecer as pessoas. O senhor é ingénuo e não tem experiência de vida, embora seja ambicioso. Mas sabe, uma pessoa atenta vê com facilidade as suas fragilidades. Não se esconda atrás de uma personagem que criou, não tenha vergonha da sua origem e condição. Seja afinal o que na realidade é; Um jovem à procura do seu caminho fascinado pelas luzes da cidade. Já agora e para fim de conversa, digo-lhe que eu já o conhecia antes de ter ido lá a casa. Quem me falou de si? Não importa, pois ele não poderá confirmar. Foi preso e dele nada mais se soube.
Levantou-se da mesa com ar decidido, deixou umas moedas para pagar o café e saiu sem olhar para trás.
Aquele encontro deixara marcas. Felizberto sentiu-as porque reconhecia que se estava a transformar em alguém que não queria ser. Regressou a casa, não saíu para comer e ficou deitado, inquieto, à procura dos sonhos que tinha deixado de sonhar.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

O Carteiro que gostava de cartas de amor

3 – AS LUZES DA CIDADE

E foi assim que Felizberto se viu na camioneta, com destino à grande cidade, com os olhos brilhando de entusiasmo, admirando o grande rio e as suas pontes.
Corria o mês de Setembro. O tempo estava agradável pelo que andou a
vaguear pela cidade durante horas. Era outro mundo. Parava com frequência a ver as lojas, o movimento das pessoas atarefadas no seu dia a dia, perdia mais tempo a ler os títulos dos livros nas montas das livrarias e sentia que tinha muito que aprender. Vivera fechado entre as serras e os altos muros do Seminário, e via agora um mundo novo que se lhe oferecia. E que tinha de percorrer.
Foi encontrar o tio Manuel, a tia Beatriz e a prima Deolinda que habitavam um pequeno mas simpático apartamento para os lados de Campanhã. Não conhecia qualquer um mas foi aceite como o familiar que decidira mudar de vida.
O tio Manuel, para evitar as más línguas da vizinhança, entendeu por bem que o melhor seria o Felizberto alugar um quarto só para si, não muito longe, numa casa que recebia hóspedes e que ele garantia ser gente séria. Depois vai ter te procurar trabalho até que o Senhor Director aceda ao meu pedido e o admita como carteiro.
Ficou tudo arranjado e no próprio dia Felizberto dormiu numa cama pequena mas que ficava bem ao lado da janela para a rua. Estava bem contente.
Não lhe foi difícil arranjar trabalho e escolheu o de ajudante numa tipografia no centro da cidade. Não ganhava muito bem mas era um bom ambiente e a tia sempre lhe ia metendo algumas moedas no bolso do casaco, quando aos domingos ia lá a casa e até lhe arranjara a roupa que entretanto deixara de servir ao Tio.
Trabalhava já há algum tempo, colaborando na impressão de livros, folhetos, revistas, etc e gostava do que fazia. Porém, o Senhor António que era a patrão, entendeu que ele, pelo nível de conhecimentos que demonstrava, seria mais útil a trabalhar com o sr. Fernando, encarregado de uma livraria não muito longe e que também pertencia ao mesmo dono. E assim Felizberto mudou, com agrado, de funções e até beneficiou dum aumento do salário.
Passou a viver com os livros e a sentir o fascínio pelo conhecimento que eles encerravam e que queria ir descobrindo.
Quando mais estava a gostar do trabalho, recebeu a informação do Tio que, no início do ano, iria ser admitido nos correios e que para agradecer o interesse, já mandara vir da terra dois presuntos bem curados, que iriam os dois entregar a casa do senhor Director, por altura do Natal.
Felizberto não ficou particularmente agradado com a notícia. Mas foi o patrão que ao saber a novidade, lhe recomendou para aceitar o lugar nos correios.
- Sabes Felizberto, o trabalho é leve, tens um futuro garantido, enquanto que o emprego que tens hoje pode desaparecer de um dia para o outro, por razões do mercado, as pessoas não têm dinheiro para comprar livros e a maior parte não sabe ler, mas também porque em qualquer momento, a Pide pode decidir que eu sou um perigo para a Sociedade e fechar-me o negócio. Aceita o meu conselho, mas não te percas no mundo que vais encontrar. Continua a gostar de livros, porque é neles que encontrarás a sabedoria. Mas não te esqueças que as pessoas também são importantes e que devemos respeitar, os seus direitos. Se não o fizermos ficaremos iguais aos esbirros e ditadores que nos governam. Tem muito cuidado com o que leres e sobretudo não digas a ninguém o que andas a ler. Quando precisares de ajuda, podes procurar-me, mas antes de entrares presta atenção a qualquer pessoa que esteja por perto a fingir interesse por qualquer coisa na montra ou na porta. Se vires, disfarça não entres e volta outro dia. Sabes, eu sei que estou a ser vigiado, e mais tarde ou mais cedo algum polícia mais zeloso, arranjará maneira de me prender.
Felizberto, agora sentado no seu exíguo gabinete, depois de ter tomado posse e ouvido o que o Director esperava dele, apercebeu-se de que a vida dera uma volta. Não seria um membro do clero, beneficiando de privilégios especiais e passaria a ser um elemento do Estado, com a incumbência de espiar outros e denunciar quem não lhe agradasse.
Lembrava a esperança que o patrão lhe transmitira, dizendo que o Salazar teria de abandonar o poder, mais tarde ou mais cedo, pois as potências democráticas não iriam tolerar, por mais tempo, a existência de uma ditadura.
Pobre amigo, como estava enganado. Não passara muito tempo, Felizberto dava ainda os primeiros passos no trabalho, quando resolveu voltar à livraria do sr. António para comprar livros. Chegou tarde, pois foi avisado que o pobre homem fora preso e ninguém sabia do seu paradeiro. Ele que tinha tanta esperança num futuro livre, não viveu o suficiente para o ver.
Felizberto aprendeu com um carteiro velho e trôpego, a utilizar as ferramentas que encontrara na secretária. Serviam para abrir cartas suspeitas, ao vapor de um tacho com água a ferver, aprendeu como as devia voltar a fechar e quando deveria utlizar o carimbo” Visado pela Censura” na correspondência inofensiva que naturalmente iria abrir. O velhote ensinou-lhe que de vez em quando deveria levar ao Senhor Director algumas cartas ou encomendas, pedindo a sua opinião. Sabe Felizberto, isso fá-lo sentir uma pessoa ainda mais importante e como é pouco mais do que analfabeto vai deixar ficar tudo ao seu critério. Aproveite e deixe seguir.
O novel carteiro aprendeu com o saber de experiência feito daquele velhote, que a adulação e a lisonja, são armas poderosas para quem quiser triunfar na vida. Mas isso já ele aprendera no Seminário.
- Pois meu amigo, dizia o senhor Alberto. Quando eu assisti ao entusiasmo do Director pela sua admissão, cheguei a duvidar de si. Olhe, levo mais de dez anos neste serviço, já passaram pelas minhas mãos muitas cartas e encomendas, algumas bem suspeitas, mas nunca, nunca abri nenhuma e todas seguiram o seu caminho. De vez em quando levo ao Director meia dúzia delas, só para ele ter a prazer de as mandar seguir.
Enquanto conversavam sobre o trabalho, Alberto, o velho carteiro, encorajava Felizberto a estudar. Sabes, vais à universidade vês os cursos disponíveis e vê também as tuas equivalências. Mesmo que tenhas de fazer exames de admissão, terás muito tempo para estudar pois já viste que o nosso trabalho se faz com uma perna às costas.
- Prometo sr Alberto que vou tratar de seguir o seu conselho. Mas sabe, eu vim dum deserto, estive doze anos encerrado no seminário, também preciso de viver a vida. Preciso de ler, de conversar, de ir ao cinema e ao teatro, de ter amigos da minha idade.
- Claro, respondeu o velhote, tens esse direito mas a Universidade também serve para tudo isso. Até para arranjares uma namorada, vais ver.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

O Carteiro que gostava de cartas de amor

3 – A RUPTURA
Tinha já quinze anos, quando nas férias de verão, enquanto apascentava o pequeno rebanho, encontrou um pequeno regato, onde nesse ano ainda corria um fio de água fresca, formando uma pequena represa no meio dos fetos. Estava um sol abrasador e Felizberto resolveu banhar-se naquela água pura. Despiu-se entre as moitas de fetos, e mergulhou na água. Sentiu-se livre como outrora, esquecendo as penas, as proibições, as censuras e até as penitências a que fora submetido por ter sido encontrado a ler, à luz do pequeno raio de luar que lhe entrava na cela, um livro que um colega lhe emprestara. Chamava-se “A Cidade e as Serras” de Eça de Queiroz. O livro fora-lhe confiscado sem qualquer justificação. Aprendeu então que ler um livro fora do sistema era considerado um pecado.
Dentro de água, sentia-se como uma ave prisioneira a quem tivessem aberto a porta da gaiola. Dava umas braçadas, mergulhava e deixava-se flutuar enquanto o sol lhe acariciava o corpo e libertava o espírito. Estava só, ou julgava estar, porque um restolhar no mato lhe chamou a atenção.
Saiu a correr da água procurando a roupa que despira, mas não a encontrou. Uma sonora gargalhada, vinda do interior da mata, fê-o descobrir uma mulher que lhe acenava com a suas calças e a camisa. Correu tentando recuperar a roupa, enquanto a mulher, ainda jovem, se ria dizendo que afinal o filho do Padre também era homem.
Felizberto, furioso, recuperou a roupa e sentou-se para melhor vestir as calças. Sentada ao lado, a mulher que lhe havia pregado a partida, não escondia o sorriso enquanto lhe perguntava:
- Olha lá, tu já és Padre ou ainda andas a aprender?
- Felizberto, já recomposto, disse que isso era assunto que a ela não dizia respeito. Mas já agora sempre digo que ainda sou só seminarista. Porquê?
- É que eu já vi mais do que um Padre nu, mas nunca um tão jovem e bonito, respondeu a desconhecida. E tu já viste alguma mulhar nua?
- Não nem quero, pois isso é pecado mortal.
- Pecado? Não sejas parvo. Um pecado é aquilo que o teu Padrinho fez. Um filho a uma mulher solteira que depois abandonou. Sim, não olhes para mim dessa maneira, ele não é teu Padrinho é teu Pai e se não acreditas pergunta à tua Mãe. Voltou as costas e desapareceu.
Sentiu-se perdido e chorou. Não por ele, nem pelo Padrinho, pessoa de quem não guardava sequer recordações, mas sim pela pobre Mãe. Não lhe vou dizer nada, decidiu, esta dor vai ficar comigo e com ela terei de viver.
Voltou para o Seminário mas a dúvida lançada pela desconhecida, estava bem presente no seu espírito. Tentou continuar, mas ano após ano, sentia-se mais desligado e sonhava com outro rumo para a sua vida. Receava magoar a Mãe e por isso continuava sem lhe dizer que tomara a decisão de não se ordenar, embora a data estivessse próxima. Não podia protelar mais a decisão que no seu íntimo já tomara. Tinha 20 anos e era tempo de mudança. Mais, porque um acontecimento inesperado, tudo precipitara. Já de férias de verão, encontrou uma mulher e com ela teve a sua primeira relação sexual. E tudo mudou, porque ele entendeu aquele momento de paixão, tão intenso, como um sinal de que a vida de Sacerdote não era para ele. Fora por isso, o dia da ruptura.
A mulher, com experiência de vida, enquanto compunha a roupa desalinhada que o entusiasmo do jovem havia rasgado, foi-lhe dizendo que o que acabara de acontecer entre eles, era algo de natural, entre um homem e uma mulher. Sim, dizia, não te esqueças que és homem antes de ser Padre.
Não te precipites a tomar decisões de que te podes vir a arrepender. Lembra-te dos sacerdotes que conheces e que têm um rebanho de filhos.
Felizberto não respondeu. Desceu a encosta da serra murmurando que poderia ser tudo na vida, mas hipócrita não seria. Não quero dizer aos outros façam o que eu digo, não olhem para o que eu faço.
Chegado a casa e como sempre fizera, sentara-se à sombra da figueira enquanto a Mãe preparava a sopa. Estava inquieto, olhava para lá dos montes e acompanhava o descer do sol, imaginando o que seria a vida para lá do horizonte. Era a hora de partir, mas primeiro tinha de convencer a Mãe.
Não foi preciso, pois esta aproximou-se, colocou a mão sobre a cabeça do filho, e enquanto lhe acariciava os cabelos, disse:

“- Meu filho:
Sinto que tens algo para me dizer e que não consegues. Já não és criança e tens o direito de fazer a tua escolha. Já há bastante tempo que venho sentindo que tu não tens a vocação para servir a Igreja. O teu Padrinho acha mesmo e até é opinião do Reitor, que apesar da tua cultura e inteligência, deves abandonar o Seminário.
Lembrei-me que podias tentar a carreira militar. Com os teus estudos até seria uma actividade interessante. Mas, infelizmente, nas sortes os médicos acharam que tu eras demasiado franzino e ficaste livre.
Eu não sei que te dizer mais. Escolhe o teu caminho. Seja ele qual for a Mãe ficará feliz se também te vir feliz.
Felizberto ouviu em silêncio as palavras da Mãe. Depois levantou-se, sentou-se ao lado e como nos tempos de criança, mergulhou o rosto no peito magro da Mãe, como se implorasse uma carícia. E sentiu a ternura dos dedos magros e nodosos a percorrer-lhe a cabeça e a face. Quando, alguns momentos depois, levantou os olhos, não teve vergonha que a Mãe visse o rio de lágrimas que lhe corria pela cara.
- Não chores meu filho, não me deste um desgosto e eu não fico triste. Tenho confiança, toda a confiança que irás encontrar o teu destino.
- Pronto, já chega de lágrimas, disse a Mãe. Vou avisar o teu Padrinho da decisão e ele acertará as coisas com o Seminário, até para que te passem um documento certificando os anos de estudo que lá passaste. Depois vamos para Vila Pouca de Aguiar e dali tu segues para o Porto e a Mãe regressa a casa.
Levantou-se, foi buscar uma velha lata de café, tirou um molho de notas amarrotadas que lhe deu, para fazer face às despesas. Não é muito, eu sei, mas é tudo o que temos. Leva também este envelope de carta, que tem o endereço do teu tio Manuel. É meu irmão e como tu também decidiu fugir da pobreza e hoje vive na grande cidade. Ele escreve-me de vez em quando à atenção do Padre Francisco que me lê as cartas e lhe responde. O teu tio pergunta sempre por ti e diz que se tu quiseres o procures que ele te ajudará, no que puder.
Ele é chefe de uma estação de correios e é pessoa muito bem vista pela chefia.
Pronto, agora limpa os olhos e vai preparar as tuas coisas. Sairemos logo pela manhã pois a caminhada ainda é longa. Depois, em Vila Pouca tu apanhas a camioneta e eu volto e fico à espera que, ao menos tu, não te esqueças de mim.”

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

O Carteiro que gostava de cartas de amor

2 – ALGUNS ANOS ANTES
“Tudo começara tinha ele oito anos de idade. Nascera e crescera numa pobre casa algures no meio da serra da Padrela em Trás os Montes. Vivia com a Mãe, uma mulher ainda nova mas marcada pela dureza do trabalho e pelas privações. O seu rosto, que ele agora tão bem lembrava, era tão coberto de sulcos como um terreno acabado de lavrar. Mas com olhos bondosos e ternos como os dos animais para as suas crias recém nascidas.
Desde bem pequeno que pastoreava, nas encostas íngremes da serra, meia dúzia de ovelhas e duas ou três cabras, de onde vinha o sustento da família. Família, aliás bem reduzida, pois era ele e a Mãe. Perguntara uma vez pelo Pai e a resposta foi de que tinha emigrado para o Brasil e nunca mais dera notícias.
Era já verão e bem quente quando, sentado junto à Mãe, apanhando a brisa fresca que soprava da serra, ouviu traçar o seu destino. E ainda hoje, passados mais de dez anos, era capaz de recordar, palavra por palavra o que a Mãe lhe havia dito.

“- Meu filho, olho para ti e penso como eu gostaria que tu tivesses um futuro diferente. Queria tanto que pudesses estudar e depois arranjar um emprego que te tirasse desta pobreza em que temos vivido. Mas a escola é longe e a Mãe não tem dinheiro para de pagar os estudos, os livros , os cadernos, a roupa. Tu és, toda a gente mo diz, um garoto inteligente e esperto e serias um bom Padre.
Por isso, falei com o teu Padrinho, o Cónego Miguel, e ele garantiu a tua entrada como aluno interno no Seminário de Vila Real. Acredita na tua pobre Mãe. Ver-te tão pequeno, abandonar a casa e ires para tão longe é como se cortassem um pedaço de mim, mas sei que deves ir. Porque a alternativa é ficares para sempre enterrado aqui, nestas terras esquecidas por Deus.
Virás a casa todos os verões e a Mãe vai gostar de te ouvir ler as escrituras e falar do Paraíso. Pois meu anjo, na minha vida só conheci o purgatório dos dias sem futuro.
Se aceitares a proposta do teu Padrinho, vais estudar, conhecer Deus e as pessoas e quando acabares serás colocado numa paróquia, passas a ter uma casa onde viver, poderás ajudar os outros e serás respeitado por toda a gente. Vê bem o exemplo do Pároco da aldeia de Carrazeda de Montenegro. Aquilo também é terra de gente pobre mas ao Padre Francisco nada falta.
Pois é, dissera Felizberto, por isso ele está gordo, respira saúde e não é do trabalho, que é coisa que ele teme tanto quanto o diabo!
A Mãe abriu um sorriso naquele rosto seco e duro, como a terra que cavava, comentando que mesmo assim, ele era respeitado por toda a gente da paróquia.”

E esse fora o caminho.
No Outono seguinte Felizberto deu entrada no Seminário. Era um garoto de olhar vivo e curioso mas pequeno de estatura. O tamanho, a imponência do Seminário, o silêncio e o olhar austero dos professores, fizeram-lhe medo.
Sim, ele que se habituara a andar pelos caminhos mais agrestes da serra a guardar e guiar o seu rebanho, que já tinha enfrentado lobos servindo-se apenas da coragem e do cajado, sentira medo. E chorara.
Ia estudando e cumprindo as suas obrigações, sonhando sempre com a chegada do Verão e o regresso a casa, à montanha, para respirar o ar puro e fugir do cheiro bafiento da cela onde passava as noites. Não se esquecia das palavras e da dor que vira no olhar da Mãe quando esta lhe largara a mão à porta do seminário. Sê um homem, havia sido o último murmúrio da Mãe.
Mas nos momentos de maior solidão, naquela cela escura e fria onde dormia, e só com as suas pequenas recordações, sem uma mão amiga ou um gesto de ternura, chorava a noite inteira. E percebia o que a Mãe lhe dissera. Sê Homem, não te deixes vencer pelo desânimo, limpa as lágrimas e segue o teu destino, repetia para si mesmo. Erguia os ombros caídos, e ficava preparado para mais um dia, mais um ano.
Nas noites de insónia ouvia gemidos vindos do companheiro da cela vizinha. Não o conhecia bem, pois ele era muito calado e não se dava a grandes amizades. Felizberto bem que notava o olhar sofrido e o rosto macerado do colega. Quis falar com ele, mas o pobre fugiu e não lhe respondeu.
Uma noite, daquelas bem tristes de inverno frio, Felizberto deixou de ouvir o choro sussurrado do colega que foi substituído por um silêncio que lhe causara calafrios. Apesar dos cuidados, murmurava-se entre dentes que o pobre Manuel, o seu vizinho do lado, havia escolhido outra vida e se havia enforcado na porta da pequena cela.
Felizberto compreendeu que naquela clausura onde viviam, só a força interior o podia salvar dum destino semelhante. E prometeu a si mesmo que nunca ninguém lhe veria uma lágrima, sequer.
Foi crescendo e aprendendo a viver, escondendo os seus sentimentos, as suas angústias e as suas dúvidas. Enfrentava com coragem, as brincadeiras, seria? ou os abusos dos mais velhos e passou a ser olhado com respeito. Como alguns diziam, o franganote não era para brincadeiras, o melhor seria deixá-lo em paz.
Aprendera aquela lição. Se mostrasse receio ou subserviência o seu destino poderia ter sido igual ao do Manuel. Sem saber estava a moldar a sua própria personalidade e foi amadurecendo a ideia de que, mais cedo ou mais tarde iria deixar o Seminário.
Lia os livros sagrados como se lê um romance, aprendeu Latim, francês e até um pouco de filosofia e de teologia. Notou contradições entre a prática e as escrituras e um dia ousou questionar o professor, Padre Crispim, mas o olhar do professor de cenho franzido e benzendo-se como se a pergunta tivesse algo de satânico, depressa o fizeram compreender um dos princípios fundamentais. Não se questiona quem nos ensina.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

O Carteiro que gostava de cartas de amor


1) HOJE

Pela primeira vez instalado atrás de uma secretária, que não era mais do que uma mesa velha, com gaveta, sentado numa cadeira de madeira algo desengonçada e num pequeno cubículo, com uma janelita virada às traseiras do edifício da Central de Correios da cidade do Porto, o que lhe dava alguma luz natural, Felizberto Silva, jovem de 21 anos, franzino de corpo, de tez escura como os camponeses e de olhos vem vivos, sorria naquele seu primeiro dia de emprego. Logo pela manhã tinha sido chamado ao Director, para as formalidades habituais. O Director era um homem rubicundo, sisudo e gordo e pouco amigo de palavras desnecessárias. Mas nos dias em que recebia um novo funcionário, gostava de convocar toda a gente e exibir a sua grande eloquência, o seu amor Pátrio e a sua devoção, quase canina ao grande chefe. E discursara:

Caros colaboradores,
Neste início de ano, mais um de intenso trabalho e redobrada vigilância, queremos saudar a chegada de mais um colega, jovem e a quem vamos acompanhar com o espírito de missão que é nosso costume. Damos as boas vindas ao sr. Felizberto Silva.
Temos de si, sr. Felizberto, as melhores referências. Sabemos tudo sobre a sua vida. Por isso aqui está, por nossa escolha pessoal, e lhe vamos a dar esta oportunidade de se juntar a nós, fiéis e dedicados servidores do Povo.
Não é trabalho para qualquer um. Sinto muito orgulho de ser responsável por uma equipa eficiente, trabalhadora e leal.
Como sabe, o nosso amado País tem inimigos espalhados pelo mundo. Na sua maior parte, porque têm inveja da paz e harmonia que o Estado Novo em geral e o nosso Presidente do Conselho em particular, trouxeram a esta abençoada terra, a este jardim que Nossa Senhora de Fátima escolheu, para dar a conhecer ao mundo, os segredos do céu.
Os maiores inimigos são aqueles que fugiram e que dedicam a sua vida a denegrir o bom nome do nosso amado Presidente, divulgando notícias incorrectas e inventando mentiras que só servem aos comunistas e seus aliados.
É nossa obrigação zelar pela Lei e pela Ordem impedindo que essas ideias subversivas, venham perturbar o bem estar do nosso Povo.
Todos somos poucos, para controlar o que se diz e o que se escreve, que não esteja conforme aos superiores interesses da Nação. O senhor acaba de ser aceite na família Lusitana, daqueles que amam o País e seguem com alma e coração as orientações do nosso Presidente do Conselho.
Tenho a certeza absoluta de que podemos confiar em si. Porque nunca admitiremos entre nós quem não partilhe as nossas ideias e não esteja disposto a pôr cobro a toda e qualquer actividade ilícita. Mesmo que isso implique o sacrifício das nossas vidas, nós seremos a muralha que manterá longe as ideias dos comunistas e seus apaniguados.
O senhor vai ter, portanto, funções de grande responsabilidade. Pelo seu passado e educação, passarão por si todos os casos duvidosos que os seus colegas não se sintam à altura de decidir. O princípio orientador é só um. SERVIR, o Povo e as Autoridades, tendo presente que os Correios são um bem essencial para levar e trazer notícias mas nunca servirão para transmitir propaganda e maus costumes que nada importam ao nosso Povo.
Tudo o que lhe parecer suspeito, em termos de escrita, endereços falsos, encomendas de livros, etc, deverá ser imediatamente destruído. Mas não posso deixar de recomendar, especial atenção aos livros, que são portadores de ideias que nada dizem ao nosso bom Povo. Este, recebe toda a informação que precisa nas escolas oficiais e nas catequeses e outras prédicas dos servidores da Santa Madre Igreja.
Felizmente, o senhor não viveu nos tempos da anarquia e da desordem social, que tanto flagelaram este Povo. Se hoje reina a harmonia e a paz, deixaram de existir atentados, greves e outras malfeitorias, tudo se deve ao Dr. SALAZAR, esse homem que a Divina Providência nos deu, e que com o desvelo de um Pai salvou este País. Um homem que não dorme nem descansa, velando para que a velha ambição de alguns e os novos perigos, não venham a destruir o que com tanto suor e saber foi erguendo. Um Estado Novo.
Tenho dito.
Tinha sido o discurso mais longo que o Director, alguma vez havia feito. Escrevera-o uma vez e gostara tanto de se ouvir, naquele tom patriótico, feito de heroicidade e de abnegação, que, com uma ou outra pequena adaptação, o lia da mesma forma empolgante, a todos os carteiros que com ele iam trabalhar.
Quando acabou, com a respiração ofegante, o suor gotejava pelas têmporas e escorria para o colarinho impecávelmente branco e engomado, que até era mudado todos os dias, pelas mãos bem Portuguesas duma serviçal analfabeta que ele contratara na aldeia, para ajudar a sua excelsa Esposa e a quem pagava com alojamento, num quarto do tamanho de uma cama e comida, os restos como é evidente, e algum dinheiro, pouco, pois ela nem o sabia contar.
Enquanto o senhor Director lia o seu discurso, Felizberto, abanava a cabeça em sinal de concordância, aplaudia mesmo uma ou outra passagem mais inflamada, mas na realidade não estava ali. Percorria na sua memória, o caminho, até àquele dia em que tomava posse oficial, como carteiro. Estremeceu, porque o colega da Secretaria, lhe estendeu o Livro que deveria assinar, declarando não pertencer a qualquer associação ou partido político que fosse contra o Estado e ou os seus representantes.
Assinou sem ler, recebeu os abraços e saudações dos colegas, o cumprimento do senhor Director e voltou para o seu pequeno cubículo, onde iria passar grande parte da sua vida. Assim pensava.
E foi a sua vida passada que desfilava agora na sua memória.

A Transformação

Quando, com a tranquilidade de quem se viu livre dos fantasmas do passado, tomei a decisão de continuar a escrever neste espaço, o meu amigo John Doe segredou-me que devía contar as histórias que não escrevi, os sonhos que não sonhei, as aventuras que não vivi, enfim tudo o que estava submerso, no meio do lixo tóxico, com que os fazedores de opinião me envenenaram durante tanto tempo.
Sinto que ele me propõe uma terapia como forma de reganhar alguma alegria de viver.
Confesso que tenho medo de abrir a caixa das recordações. Não será, necessáriamente uma caixa de Pandora, mas pode causar-me muito mal porque, no final, se pode revelar ser apenas um simples caixote sem conteúdo.
Por outro lado, John diz-me para não ter medo. Escreve com o coração, segreda-me, porque escreves só para ti e se tal te der prazer valeu a pena. Mesmo que ninguém leia, eu vou gostar.
Pois bem. Estou convencido.
Desde muito novo que na quietude do campo, no meu Alentejo natal, era um ouvinte atento das histórias que os mais velhos contavam à lareira nas longas noites de inverno. Eram histórias de vidas sofridas, de aventuras que os copos de aguardente iam, pouco a pouco, tornando mais heróicas.
Peguei numa dessas histórias, uma história de amor, dei-lhe uma roupagem nova, e vou passar a publicá-la. Chama-se " O CARTEIRO QUE GOSTAVA DE CARTAS DE AMOR". Até lá!

domingo, 17 de outubro de 2010

O Reencontro

O meu amigo Jonh Doe voltou.

Na realidade ele nunca tinha desaparecido, eu é que, perseguido pelas angústias dum presente sem futuro, deixei de o ver. E ele estava bem perto, mesmo bem perto.

Fiquei tão feliz, porque é bom ter um amigo como ele, que não pede nada, que nos ouve e não critica, só nos faz companhia.

Nos momentos difíceis sabemos que ele está sempre ao nosso lado, em silêncio, mas partilhando as nossas dores e os nossos medos.

O meu amigo John Doe, entende a minha revolta e sinto que está comigo quando enfrento tudo e todos. Também ele é vítima de uma sociedade baseada na imcompetência, na mediocridade, no salve-se quem puder, no quem vier depois que feche a porta, ao fim e ao cabo as principais virtudes deste Povo que já foi grande.

Porque, na realidade, John Doe é a outra face da moeda. O outro eu, onde escondo e guardo os meus desânimos e os meus sonhos não vividos.

É por isso que é mesmo bom ter um amigo assim e acreditem nem é difícil de encontrar.

A mim bastou-me, parar um pouco, desligar a Televisão, deixar de ler jornais e encontrei.

Experimente também, há sempre um John Doe dentro de cada um.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

A ameaça

Se encontrar o meu amigo é importante, agora torna-se uma questão fundamental.

É que ouvi dizer, enfim vale o que vale neste País de boataria, que o FMI estava mesmo para chegar. As pessoas estavam mesmo assustadas o que me leva a crer tratar-se de uma ameça séria.

Pensei logo que com o azar que o meu amigo tem, ele será logo a primeira vítima daqueles senhores. E dizem que eles não brincam em serviço.

Normalmente, quando alguém chama a Polícia, os ladrões já desapareceram e quem se arrisca a ir dentro é o mirone que, cumprindo aquela função habitual dos Portugueses, ficou à espreita à espera de encontrar um repórter de TV ,que possa aparecer ou para ter algo que contar no trabalho.

E pelo que se ouve dizer com o FMI não se brinca. Ainda há meia dúzia de dias o meu barbeiro me contava que eles tinham ido a Porto Rico e prenderam mais de 150 polícias que controlavam o negócio da droga.

Confesso que não conheço este Porto Rico, só se for o da zona da Boavista, mas não quis perguntar para não passar por ignorante.

Bem se a missão do FMI é vir prender 150 ladrões, daqueles que toda a gente fala, principalmente quando vai ao futebol, também não valerá de muito, pois mal eles virem costas já os Tribunais os mandaram para casa.

Mais valia que viessem para prender os ladrões que não conhecemos, mas lá que eles existem, existem, e cada vez mais gananciosos.

Já os estou a ver a desembarcar no Aeroporto, todos vestidos de negro, cabelo curto, óculos escuros, auriculares e volumes estranhos nas axilas, que se percebem mesmo com o casaco abotoado.

Quando chegarem já os criminosos se reciclaram em homens de negócio, empresários, banqueiros,políticos de meia tijela, etc. pelo que não acredito que esses sejam o seu objectivo.

Qual será é que não sei!


PS . Peço desculpa, alguém mais atento do que eu acaba de me informar que quem foi a Porto Rico foi o FBI, por coisas lá dos americanos.

Mas então pergunto eu, quem é que são esses senhores do FMI de quem tanta gente fala?

Coisa boa não serão de certeza. Serão agentes transmissores de mais alguma forma de gripe?

Valha-nos S. Bento!

S. Bento não, que desse já estamos fartos.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Ausência

Coitado do meu amigo, por onde andará?

Já não o vejo há dois ou três dias, mas imagino que deve andar pela madrugada, a percorrer as ruas da cidade, chocando aqui e ali com os automóveis estacionados no passeio e olhando com admiração para a quantidade de Hotéis "low cost" que encontra debaixo de cada arcada. é a Europa deve pensar com os seus botões.

Vou sair para o procurar. Receio que as sensações de se saber um Europeu a passear numa cidade estranha e suja o possam perturbar ainda mais.

Quando já estava cansado de tanto procurar, subo uma avenida e passo em frente a uma daquelas lojas de roupa para gente rica, com grandes vitrines iluminadas e através delas vejo o meu amigo John. Aceno, ele também me acena, começo a correr entro na loja mas deixei de o ver.

Sumiu-se ou escondeu-se nalgum prédio em ruínas, desses que abundam pela cidade.

Perco a esperança e regresso a casa.

Ligo a TV, pois é hora das notícias.É tempo de saber todos os desastres que aconteceram, e foram muitos, desde incêndios, explosões, choque de viaturas, crimes de morte, assaltos com violência, discussões entre os partidos políticos a propósito de tudo e de nada, mas enfim, todos à procura do poleiro, mas ninguém fala do meu amigo John Doe.

Ou falam , todos falam, dão-lhe outro nome e eu ainda não percebi?

O pesadelo

O acordar de um pesadelo é sempre difícil. Mesmo que o mesmo seja uma coisa sem sentido e desligada do que chamamos vida, alguma marca ou desconforto, sempre ficam.
Os que vivem normalmente e só de vez em quando são assaltados por um pesadelo, também se queixam do mesmo.
Agora imaginem o que sentiu o meu amigo John Doe.
Passou pela vida sem nunca dar nas vistas, trabalhou dando tudo o que sabia e podia, foi sujeito a sucessivas lavagens ao cérebro feitas pelos sindicalistas da Empresa, e a tudo resistiu.
Mas agora, que é agredido diáriamente com as notícias que mesmo sem querer, vai ouvindo na TV, que fica assustado de morte ao ouvir as professias dos Bandarras dos tempos modernos, todos especialistas em alguma coisa, embora a maior parte deles nunca tivesse feito nada, e apesar de se lembrar daquela célebre frase, cujo autor não recorda "Se sabes faz se não sabes ensina", ficou irremediávelmente perdido.
Pensou em ir para a rua gritar o seu desassossego, mas a rua já estava ocupada com os gritadores profissionais do costume; Idealizou escrever um cartaz bem grande pedindo ajuda, e colocar-se no meio do IC 19 à hora de ponta, mas desistiu pois no mínimo seria atropelado; Não podia nem devia ir para a rua perguntar aos outros o que realmente se estava a passar, pois embora ninguém lhe fosse capaz de responder ainda o iriam chamar de ignorante.
Então fechou-se numa concha, esqueceu o passado e tenta viver hoje o futuro porque amanhã poderá ser tarde.
Nos momentos de rara e cada vez menos frequente lucidez, maldiz o destino que o fez nascer num País Salazarento, ignorante, do salve-se quem puder, que o levou para uma guerra que, para além dos soldados mortos ou estropiados, não serviu para nada senão para a rápida promoção dos senhores Oficiais do Q.P., que hoje vivem repimpados nas suas mordomias, que sonhou madrugadas felizes em Abril e mais uma vez foi traído.
Agora, descobriu que por favor sabe-se lá de quem, é Europeu. Europeu? A que propósito se ele só queria ser feliz!

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Como eu vi John Doe

Ainda hoje me custa a entender como as coisas acontecem. De um momento para o outro o meu amigo ficou sem saber quem era, como se chamava, o que fazia, etc..
Olhava para mim com os olhos esbugalhados e, apenas pelo movimento dos lábios, percebi que ele tinha qualquer coisa para dizer. No momento pensei estar perante um ataque de amnésia fulminante, mas que mais tarde ou mais cedo o meu amigo tornaria ao mundo real.
Estendi-lhe a mão e ele fez o mesmo mas não houve contacto. Abri-lhe os braços para o receber, ele fez o mesmo, mas havia uma qualquer barreira entre nós.
Fiquei parado sem reacção. Cheguei a pensar que o meu amigo não fosse mais do que uma miragem. Esfreguei os olhos. Continuava a ver a sua cara, envelhecida como já lhe conhcera. Depois a imagem começou a esbater-se a perder os contornos como se uma nuvem o transportasse. Apenas os olhos se mantinham fixos nos meus.
Porém a neblina foi-se acentuando e deixei de ver o meu amigo.
Fiquei perturbado. Saí da casa de banho com o chuveiro ainda a correr, peguei numa toalha, embrulhei-me nela e fugi, pela casa, pela rua olhando em todos os sentidos à procura do meu amigo. Sentia que ele estava perdido e precisava de ajuda. Corri até que o cansaço me venceu. Parei respirando com dificuldade, e olhei as pessoas que passavam na rua. Olhavam, murmuravam qualquer coisa que não percebi, encolheram os ombros e seguiram o seu caminho.
Ninguém vira o meu amigo e eu, também não sabia bem onde o tinha desencontrado.