quinta-feira, 31 de março de 2011

ENCONTRO COM UMA MULHER SÓ

3 – O sorriso e o silêncio

O silêncio foi interrompido pelo sinal de chamada do telemóvel que se esquecera no salão, foi atender apressadamente, antes que a Mãe o fizesse.
Do outro lado era a D. Natércia, secretária do gabinete de advocacia para onde tinha enviado o trabalho. Por entre as habituais desculpas, a senhora pediu se lhe era possível atender do Dr. Ricardo Reis, que teria algumas dúvidas para esclarecer. Respondeu que sim, e ouviu o pedido.
- O escritório, tinha uma equipe reunida, para fazer a revisão da documentação que serviria de suporte à negociação de segunda-feira em Berlim. Reconheciam que a sua presença era essencial, e apesar de ser um sábado, vinham pedir para se juntar ao grupo.
Maria Fernanda aceitou. O pedido era a oportunidade de sair, fugindo à rotina de um chá, muito cerimonioso, a Mãe fazia disso questão, e onde as senhoras falavam de trivialidades ou de algum escândalo noticiado nas revistas da moda.
Preparou-se para sair, e perante a surpresa da Mãe, disse que não fazia ideia a que hora iria regressar. Tudo vai depender do trabalho, acrescentou.
Chegou ao escritório que já conhecia de anteriores reuniões e o Ricardo Reis apresentou-a aos outros presentes que não conhecia. Apresentou-lhe então uma colega a Dr.ª. Clotilde, mulher ainda jovem mas com ar experiente, o Dr. Rafael, outro colega e um advogado estagiário chamado Dr. Carlos Alberto.
O trabalho foi revisto por cada um dos participantes e, em reunião conjunta, discutido ao pormenor.
Quando o Ricardo deu o seu acordo ao dossier completo, incluindo a minuta do contracto e seus apêndices, redigido em Português e Alemão, respiraram de alívio.
Era já tarde. Ricardo incentivou-os a irem jantar, o escritório pagaria, mas ele não iria pois que ir buscar os filhos. Foi com um sorriso triste que se despediu de Maria Fernanda. Havia qualquer coisa para dizer, mas ficaram em silêncio, mãos entrelaçadas.
Alguém sugeriu um jantar e depois uma bebida para comemorar e todos deram o acordo. É pena que Ricardo, não possa estar presente, ele está mesmo a precisar de desanuviar, mas eu sei que este é o fim de semana que ele tem para ficar com os três filhos. Conheço a ex-mulher, ela nunca aceitaria qualquer mudança do acordo quando à custódia dos filhos, explicou Rafael.
E saíram, Carlos Alberto era o cicerone e quem decidira o restaurante e o bar para fim da noite.
E Maria Fernanda, sempre tão reservada, integrara-se no espírito do grupo, rira, bebera e dançara até de madrugada. O seu par, Carlos Alberto, jovem e atrevido, dançava de forma sensual e Maria Fernanda sentiu o calor do desejo. A noite despertara-lhe os sentimentos adormecidos, e sentira pena. Como sempre, de si.

quarta-feira, 30 de março de 2011

ENCONTRO COM UMA MULHER SÓ

2º. Capítulo – A clareira

Quando aceitara regressar para junto da Mãe, pensara que, passado o período do luto, iria encontrar o seu canto, escolhendo um lugar distante da casa de família.
Todavia, mais uma vez transigiu, cedeu ao choro e às lamentações, esqueceu que nunca teria vida própria enquanto fosse tutelada pela forte personalidade da Mãe.
Maria Fernanda havia perdido as raízes e as amizades da juventude. Nunca fora uma pessoa muito sociável, tivera poucos amigos e os que agora tinha reencontrado, através da página do “ facebook” que criara, mas onde se resguardara, sendo muito exigente na selecção dos contactos propostos. Na realidade apenas cinco ou seis os reconhecera dos tempos do Liceu e dos primeiros anos da Faculdade. Os outros não eram mais de pessoas à procura de aventura.
Como o dia estava desagradável, vento e chuva, a Mãe escolhera ficar em casa, falando ao telefone com as amigas, convidando-as para se reunirem em sua casa para o chá das cinco.
Maria Fernanda ouviu, percebeu a tarefa que lhe incumbiria, fechou-se do escritório do Pai, o único lugar em casa onde lhe era permitido fumar e beber uma bebida, além do chá. Era ali que se recolhia, argumentando que precisava de silêncio para o trabalho.
Enquanto se reclinava na poltrona, abriu um álbum de fotografias que o Pai tinha guardado na secretária. Nele, era ela a personagem principal, desde o nascimento, ao baptismo, à comunhão, ao primeiro ano no Liceu, entrada na faculdade e depois fotos que mandara enquanto estivera no estrangeiro.
Com a letra inconfundível de médico, todas as fotos identificavam a ocasião e o ano correspondente.
Não escondeu uma lágrima de saudade e de gratidão pelo carinho com que o Pai organizara a sua história. Olhando as fotografias, reconheceu-se menina e moça, alegre, olhos vivos, rosto voluntarioso emoldurado por cabelos pretos. O álbum representava mais do que um caminho sinalizado por fotografias, representava o seu crescimento ao longo dos anos, visto pela pessoa mais importante que conhecera na sua vida. E que chorava agora.
Onde estará essa rapariga, hoje feita mulher que esqueceu o que o Pai muitas vezes lhe dissera? “Filha, vive a vida pois só se vive uma vez”.
Esta lembrança abriu uma clareira de luz naquele dia cinzento. Com determinação decidiu que ainda era tempo para recuperar a sua vida. Sentia que, algures, o Pai lhe acenaria que sim.

terça-feira, 29 de março de 2011

ENCONTRO COM UMA MULHER SÓ

1º Capítulo – O Inverno
Era sábado, mas Maria Fernanda acordou cedo. Chegou à janela, era uma manhã de inverno, cinzento e chuvoso, um dia triste como triste era a sua vida.
Tinha trabalho para fazer mas que lhe ocuparia apenas algumas horas. Era a vantagem de ter uma profissão individual, trabalhava normalmente em casa, prestando serviços de consultadoria e tradução. A tarefa que tinha aceite, encomendada por uma firma de Advocacia, estava quase concluída, faltava apenas a revisão e o seu envio em ficheiro. Foi a primeira coisa que fez naquela manhã.
Depois, preparou um banho de imersão, água bem quente, banheira cheia de espuma e com um copo de vodka, a sua bebida favorita, deixou que o ambiente e a bebida lhe dessem mais calor à sua vida.
Enquanto massajava o corpo, acariciando os seios, sentia que tinha completado os trinta e seis anos de idade, mas que o corpo lhe cobrava emoções e desejos que, só ocasionalmente e sem grande intensidade, havia vivido.
Tinha perdido os melhores anos da vida, alimentando a sua necessidade de afectos com alguns encontros descomprometidos. Foram encontros ocasionais e fortuitos, resumindo-se a sexo sem paixão, relações sem futuro e dos quais, nem guardara recordações.
E enquanto tomava o pequeno almoço, sentada no sofá do escritório, recordou o passado e o seu percurso:
Desiludida com o ensino na Universidade que frequentara, faltava algumas cadeiras para concluir Direito, quando decidiu dar um novo rumo à vida. Tinha estudado na Escola Alemã em Lisboa e reconhecia que deveria completar os estudos numa universidade no estrangeiro. Conseguira o apoio do Pai, garantindo o dinheiro necessário para o caminho que pretendia seguir, mas a Mãe, personalidade muito forte, não aceitara de bom grado a decisão. Fizera, contudo uma exigência prévia, que era o seu regresso logo após terminar o curso.
Só que concluído o curso e tendo optado por ficar por lá, foi seleccionada para um estágio numa grande empresa e no fim, contratada.
O tempo ia passando, ano após ano, vinha de férias a casa no Natal e durante uma semana no verão, ouvia as reclamações da Mãe mas, voltava a partir. Era e reconhecia agora, a necessidade de se libertar da influência da Mãe.
A morte do Pai, ocorrida dois anos antes, tinha representado mais do que o seu desaparecimento. Tinha perdido o aliado e confidente, o ombro que sempre a suportara. Ficou fragilizada e não conseguiu resistir aos apelos da Mãe.
E regressara, mais de dez anos após ter partido, profissionalmente realizada mas vazia de emoções. Tinha aprendido muito, trabalhado ainda mais, mas esquecera-se de viver.
Era uma mulher só, triste e tímida. Escondia os sentimentos e vivia na ilusão de encontrar um grande amor. Mas o tempo escoava-se até que, súbitamente, a sua vida ganhou novo sentido.

domingo, 27 de março de 2011

"FLASHBACK"

Quando, hoje, me sentei em frente ao ecrã, não sabia sequer, como começar. Porque, acabado de publicar o último de uma série de episódios a que chamei “POR AMOR”, um título tão cor de rosa, que ficaria bem numa telenovela da tarde da TVI, entrei naquele período vazio, em que me apetece parar e desistir. Não foi a primeira vez que passei por esta fase. Aliás, olhando de relance pela estrutura dos meus textos, desde o dia 13 de Outubro de 2010, e foram mais de 130 mensagens, encontrei textos dispersos onde foram evidentes os períodos de desânimo, de desassossego, de angústia, insónias e turbulência que, com alguma frequência, me assaltaram. Consegui resistir porque o meu amigo John Doe esteve sempre a meu lado. Ele sabe, eu sei, que parar e desistir, é morrer um pouco. Então, fui continuando a passar para o texto, as ideias que conseguia isolar, do emaranhado da minha cabeça. Quando comecei este “blog”, que foi o terceiro desde que me aventurei neste mundo de comunicação, estava a dar corpo ao resultado da luta entre eu e o outro. Também e principalmente, porque queria cumprir uma promessa. E foi então que inventei uma história simples, moldando-a de forma a ligar alguns dos poemas que li e continuo a ler. O valor dos textos é, inquestionavelmente, a força dos poemas, o resto é apenas um mero fio de ligação. E assim nasceu a história”O Carteiro que Gostava de Cartas de Amor”. Depois ganhei ânimo e ultrapassado um dos tais buracos negros, idealizei e escrevi “Uma História de Amores”. Senti-me bem, nunca perdendo o fio à meada, mas os episódios finais, passados em Nova Iorque, já foram escritos com muita dificuldade e com uma lágrima de raiva à mistura. Depois mais desânimo, mais textos encontrados em gavetas escondidas, uma tentativa de tentar por de pé um pequeno romance policial, aqui e ali um texto a dar umas bicadas e por fim a telenovela “Por Amor”. Aqui segui o mesmo caminho do primeiro conto. Escolhi canções de que gosto, e a história foi apenas, uma forma de as fazer entender. Nunca liguei muito ao que me diziam, bem algumas vezes, indiferença a maior parte e mal muitas. Mas hoje deu-me para clicar na opção, estatísticas, e fiquei surpreendido ao saber que desde o dia em que comecei, houve mais de mil visualizações de páginas. Descontados os amigos e família, sempre teve ter havido, em qualquer lugar, uma pessoa ou outra, que pelos menos percorreu os textos. Então isso diz que vale a pena continuar? Talvez, irei tentar. Até lá, deixo-vos com mais um vídeo a meu gosto. Espero que também seja do vosso agrado.

Barcelona (live) [Freddie Mercury] por vicken

sexta-feira, 25 de março de 2011

POR AMOR

10 – TEMPO DE CHORAR

Os receios tinham terminado. Com poucas palavras e muitos beijos, o amor tinha vencido.
Naquela noite um e outro tinham renascido. Para o dia de amanhã, para os dias do futuro. O amanhecer não mais seria uma incerteza. Amavam-se e assim, juntos e de mãos dadas, eram capazes de enfrentar o mundo.
Naquela noite não foram só os corações que se abriram ao amor, também se libertaram do domínio dos sentidos, assumindo sem pudor o despertar duma paixão amordaçada.
Fora, mais do que tudo, um acto de libertação.
Ambos sabiam que as suas vidas teriam de mudar. O passado seria esquecido ou ficaria apenas como uma leve recordação.
Mas nada esconderam, contaram o passado e acreditaram no futuro.
Afinal, podiam ser felizes em qualquer lugar, desde que estivessem unidos pelo amor.
O sol tinha despontado, ainda tímido, por entre a névoa da manhã. Para os dois amantes, o sol brilhava só para eles, como se quisesse ser a testemunha daqueles seres sofridos, agora iluminados pela luz.
E uma lágrima de felicidade brilhou nos olhos vivos e despertos.
Era pelas dores que de repente se tinham apagado, pelos sonhos que se tinham tornado realidade e pelas dúvidas agora esperanças. Era tempo de chorar pelos anos perdidos.
E tudo o que naquela noite intemporal, haviam partilhado, vencendo dúvidas e angústias, medos e desesperanças, tudo fora POR AMOR.

quinta-feira, 24 de março de 2011

POR AMOR

9 – A NOITE
O táxi parou junto do terminal de autocarros. Estava prevista uma partida para Lisboa, dali a hora e meia.
Entretanto o sol começara a esconder-se no horizonte. Tinha sido um dia algo nebuloso, mas o brilho dos últimos raios de sol eram o presságio para uma noite serena, atapetada de estrelas.
Luís abandonou o terminal e ao lado, encontrando um café com esplanada, sentou-se e pediu um café. Voltou a acender um cigarro, e esse simples gesto e a prova que estava outra vez, hesitante e perdido.
Quase por instinto abriu o telemóvel. Tinha duas mensagens mas nenhuma era a que ansiava. Todavia ao ler o conteúdo, o remetente era o mesmo, ficou satisfeito. Eram da sua Editora informando que o seu romance, “Perdidos na Vida” tinha sido enviado para publicação com uma tiragem inicial de dois mil exemplares. Informava também que havia interesse de uma Produtora em comprar os direitos para futura adaptação para uma série para Televisão.
Dois mil exemplares já são um número simpático pensou, vamos a ver como vai ser a reacção da crítica e do público leitor. E se confirmar a venda dos direitos, já poderei considerar ter tido um proveito aceitável para um ainda pouco conhecido autor. Era o segundo romance que publicava, o primeiro tinha sido uma agradável surpresa, com críticas favoráveis e bom acolhimento do público leitor. Todavia os proveitos financeiros não tinham tido grande expressão.
A outra mensagem, também da Editora é a reclamar pelo atraso de entrega, já prometida, das provas do terceiro livro.
Tenho tempo pensou, quando chegar a Lisboa resolverei estes assuntos.
Quando chegar a Lisboa? A frase ficara a arrastar-se na memória. Porque, de repente, tomara consciência, que estava simplesmente fugindo. Doía reconhecer que a decisão era apenas uma manifestação de medo. Queria fugir porque se apaixonara à primeira vista e com tanta intensidade que, receava o desfecho. Podia ser mais uma armadilha da vida.
Nem nos livros que escrevera, havia desenhado uma personagem não indecisa e vulnerável como ele.
Precisou de ganhar coragem para reconhecer que não podia virar as costas ao destino. Queria lutar pela mulher que não lhe saía do pensamento. Não queria perder uma oportunidade de ser feliz. Chamou um táxi e regressou à praça donde não deveria ter saído.
Envergonhado, o motorista era o mesmo, pedira que o deixasse junto à porta de casa. Saiu e foi, tremendo, procurar a chave que deixara debaixo do vaso de flores. Procurou bem mas não a encontrou. Ficou paralisado por um suor frio.
Mas, o destino não fora cruel, a porta abriu-se e Joana afastou-se para ele entrar. Sem uma palavra, apenas disse, vem.
A ele nada ocorria para dizer, mas no seu rosto era evidente o alívio e a alegria. Mas continuava sem encontrar palavras.
Nem era preciso, porque Joana guardava junto ao peito a carta de amor que ele tinha deixado.
Já tudo tinha sido dito, nada mais havia que dizer.
Os lábios frementes fundiram num profundo beijo. Era noite, a noite em que se entregaram com amor e paixão.
Joana murmurava ao ouvido: Hoje eu quero a rosa mais linda que houver e a primeira estrela que vier para enfeitar a noite do meu bem…”

quarta-feira, 23 de março de 2011

POR AMOR

8 – O MEDO DE PERDER

Luís regressou à aldeia sem um rumo definido. As palavras do Manuel, tinham tocado fundo, nos seus sentimentos. Eram mais do que um aviso, muito mais do que um conselho, eram um apelo ao coração. Ele receava que uma aventura pudesse destruir a irmã.
Uma aventura, pensou Luís, o que ele sentira era um fascínio tão grande, que nem saberia como esconder.
Ficara sem nada para dizer ao amigo, mas interiorizara que alguma coisa teria de fazer. E por muito que lhe doesse, compreendia que teria de se afastar de Joana.
Sentiu medo, ele sabia-se tão frágil, que uma simples centelha podia incendiar o peito e a fogueira podia ferir outra pessoa.
Sentou-se no banco da praça, ainda vazia. Pegou no telemóvel e começou a escrever. Era uma mensagem sofrida, de adeus, mas não conseguia encontrar as palavras que precisava. Na sua mente passavam os fugazes momentos que partilhara com Joana. Poucos, mas intensos. E perpassava o receio de uma perda dolorosa.
Viera para aquele lugar à procura de encontrar a paz, a cura para o desânimo, para esquecer as angústias dum viver sem sentido e num breve encontro tudo esquecera.
Apagou a mensagem começada, o que tinha de dizer não cabia num texto limitado.
Voltou a recorrer ao portátil e começou a escrever uma carta de amor, de sofrimento, de desespero, de renúncia. Tantas vezes descrevera nos seus romances um sentimento semelhante,que agora temia repetir frases sem ter em conta que, agora era diferente. As personagens não eram inventadas, eram pessoas, era ele e a mulher que lhe tinha despertado a paixão.
Não queria reler a carta, temia que uma simples correcção lhe roubasse o sentir mais profundo. Ele não lhe importava com o mundo, não invejava os outros. Tinha perdido muito da sua vida, mas agora só a tinha a ela e só ela queria ter.
Foi para casa, a casa vazia, imprimiu a carta e colocou-a na mesa de entrada.
Depois, com a alma em ânsias e com a esperança de ouvir alguém abrir a porta, chamou um táxi, arrumou a bagagem e partiu como havia chegado. Olhou para a casa da colina, sentiu um aperto no peito, mas jurou que haveria de voltar.

terça-feira, 22 de março de 2011

POR AMOR

7 - VIVER É MELHOR QUE SONHAR

Contudo estava inquieto. Havia qualquer coisa que não percebia. Admitia que talvez tivesse aceite o convite, apenas fascinado por Joana. Agora receava que o fascínio fosse o começo de uma relação, que ele na verdade temia.
Levantou-se, mudou de roupa, pegou no computador portável, verificou que a bateria estava ok e saiu para a rua.
Pensava dar um passeio, encontrar um lugar para completar o projecto de um livro que tinha em aberto. Encontrou um lugar apropriado, longe da estrada, sentou-se e começou a escrever o último capítulo. Ainda não tinha escolhido o nome para o livro. Lera e relera, alterara e modificara o texto, mas o nome não lhe havia surgido. Desesperado porque na cabeça, começava a desenrolar-se outro romance, rematou aquele em que escrevia, dando-lhe o nome em que mais vezes pensara. Escreveu o título, “O Capítulo Final”. Guardou as alterações, fechou o portátil olhando para um lado e para o outro, sem saber onde poderia encontrar um lugar para comer. Já não comia há muito tempo e o estômago reclamava.
Voltava apressado para a aldeia, quando ouviu um chiar de pneus. Era Manuel ao volante de uma carrinha de caixa aberta, fazendo-lhe sinal para aproveitar a boleia. Acabava de se sentar e fechar a porta da cabine e já o condutor fazia inversão de marcha, dizendo:
- Meu amigo, nem preciso de lhe perguntar nada, o seu ar é de quem está cheio de fome. E eu também. Vamos ali adiante, há lá um pequeno restaurante de estrada, é alguma coisa há-de haver para comer.
Enquanto aguardavam o pedido, entre um copo de vinho tinto e um pedaço de pão com azeitonas, Manuel confessou:
- Senhor Luís, a minha irmã contou a sua aventura da casa na colina. Pediu para eu mandar fazer a limpeza e as algumas reparações na casa, naturalmente se o meu amigo estiver de acordo. Não se preocupe, a despesa será pequena.
- Claro que lhe agradeço a sua ajuda, pode avançar com o que for preciso, só peço que seja breve, porque não queria estar a ocupar por muito tempo, a casa da sua irmã, respondeu.
- Quanto a isso não esteja preocupado, a minha irmã apenas ocasionalmente habita a casa e quando lhe abriu a porta, deu provas de confiar em si. A Joana não é muito conversadora, tem lá as suas manias, mas quando gosta de uma pessoa, gosta mesmo, sem fingir, que é coisa que ela não sabe fazer. A propósito ela lembrou-me de lhe dar o número de telemóvel, tome nota por favor e já agora também do meu. Já sabe que aqui funcionam, lá no alto do monte é que não.
Permita lhe dê um conselho. A Joana é muito sensível e sonhadora e por isso já sofreu. Pense nisso, eu tenho a certeza que o senhor percebe o que eu quero dizer.


segunda-feira, 21 de março de 2011

POR AMOR

6 – A CASA VAZIA
Luís começou a arrumar a trouxa e a carregar o atrelado. Enquanto fazia o trabalho, olhava com outro modo, a casa que o desencantara. Sob o sol brilhante, já não lhe parecia um lugar tão lúgubre e prometeu a si mesmo que voltaria, até porque pressentia que aquele local, aquele momento, aquele encontro, iriam ter muita influência na sua vida.
Quando acabou a tarefa, procurou Joana, sentada imóvel e ausente, olhando o horizonte que se lhe estendia, talvez, arriscou ele, pensando do sonho de amor. Ficou intrigado, teria sido Joana uma protagonista da história?
Esta, como adivinhando o interesse que suscitara, sugeriu:
- Venha, sente-se a meu lado, olhe os campos, as árvores, as sombras e vai ver que este lugar tem qualquer coisa de mágico.
Luís partilhou a visão mas, sobretudo, fixou-se no perfil da mulher, sentiu a magia do momento, e acrescentou:
- Eu não posso esconder que, este momento belo e mais a sua presença, também me fazem sonhar. É verdade que aceitei a sua proposta, que agradeço, mas espero que não venha a considerar este intruso, um doido que encontrou nu e tremendo de frio, no cimo da encosta e a quem vai ajudar, por caridade.
Joana não respondeu, desviou o olhar, dirigiu-se para a motocicleta, ligou motor e sentou-se ao guiador. Vendo que Luís estava parado, observou-lhe:
- O atrelado não suporta mais peso, por isso o seu lugar terá de ser partilhado comigo, no selim do condutor. Agarre-se bem à minha cintura, pois não quero perdê-lo, logo a seguir a tê-lo encontrado.
A descida da encosta foi feita com razoável velocidade e destreza, e obrigou Luís a colar-se ao corpo da condutora. Sentiu o seu calor, há quanto tempo não sentia o calor do corpo duma mulher, mergulhou o rosto na cabeleira farta e respirou o cheiro a alfazema.
A mota parou à porta da casa, mas Luís nem disso se apercebeu. Foi Joana, quem com um sorriso irónico lhe disse: - Pode largar-me, já chegámos!
Luís estremeceu, como se acordasse dum sonho.
- Esta é a casa que pode ocupar enquanto não fizer a recuperação da casa da colina. É a minha casa, mas eu apenas me sirvo do rés-do-chão, quando estou na aldeia, normalmente dois ou três dias por semana. O primeiro andar fica à sua disposição e se quiser, utilize o terraço para fazer os exercícios do costume. E lá pode correr nu, porque ninguém o vai ver. Considere-se em sua casa, aqui tem a chave. Se quiser sair, pode deixá-la debaixo do vazo de flores que está na janela. Se hoje eu tiver tempo passarei por cá, senão voltarei no fim-de-semana. Gostei de o conhecer e espero que o nosso encontro seja o princípio de uma boa amizade.
Luís entrou na casa, subiu ao primeiro andar, arrumou as suas coisas e estendeu-se na cama. A solidão pesava, mais agora que Joana lhe ocupara o pensamento. E de repente, ele que vivera só, por tanto tempo, olhava para as paredes duma casa que não conhecia mas que, naquele momento, lhe parecia tão só.


domingo, 20 de março de 2011

POR AMOR

5 – SONHO DE AMOR
Acordou ao romper da madrugada. Não se lembrava de há quanto tempo tinha dormido uma noite sem ser assaltado por pesadelos. Sair da cidade, esquecer as rotinas, o ar que agora respirava, a paisagem lunar que se estendia à sua volta naquele nascer do dia, tinham sido a razão do seu sono, calmo.
Estava frio mas pouco o pouco, o despontar do sol por detrás dum pequeno monte, trouxe o calor que precisava.
Acendeu o seu primeiro cigarro, que lhe soube de forma diferente. Já não sentira a dependência do tabaco, e apagou-o.
Finalmente, decidira ir conhecer a casa da colina. Pelo que reparou, o exterior não era bem a imagem que vira da Internet e com base na qual construíra a sua memória. Foi pois, com alguma desconfiança, que abriu a porta. Recebeu de imediato uma lufada de cheiro bafiento, carregado de humidade pútrida, que o envolveu e se entranhou. Sentiu-se indisposto e não evitou o vómito.
Não conseguira entrar, recuara para longe da porta entreaberta, enquanto protestava consigo próprio pela sua imprudência. Quisera tanto ter uma casa na colina e acabara por comprar, o que mais parecia ser um túmulo, impregnado do cheiro a morte.
Olhou em redor da casa e pareceu-lhe ouvir o correr de um pequeno regato. Era água e água era o que ele precisava para se livrar do odor que se colara ao corpo. Foi correndo que encontrou um fio de água, que brotando de um pequeno monte, se ia acumulando num pequeno tanque.
Nem hesitou, arrancou a roupa que vestia, atirou-se para dentro do tanque. A água estava muito fria, esfregou-se com energia mas só conseguiu estar por breves minutos. Saltou para fora e para aquecer, começou a correr à volta da colina. De repente parou. Junto da sua bagagem estava uma motocicleta e um atrelado. Pensava ver o Manuel, mas deu com uma mulher jovem, que se ria, enquanto ele, olhos arregalados pela surpresa e tapando com as mãos os órgãos genitais, batia os dentes com o frio.
-Não fique assim envergonhado, a sua figura é peculiar mas não é surpreendente. Trate lá de encontrar a toalha para se secar, para ficar mais à vontade, enquanto eu vou dar uma volta.
Luís não tinha toalha. Mesmo assim trocou de roupa, sentiu ainda alguns arrepios de frio mas, sentado virado ao sol, foi ficando mais calmo.
A mulher voltou do pequeno passeio, sentou-se ao lado e apresentou-se:
- Não se admire, o meu nome é Joana e sou irmã do Manuel que já é seu conhecido. Pela sua cara vejo que já foi visitar a sua casa e não gostou. O meu irmão deveria tê-lo avisado que a casa esteve fechada durante muito tempo, creio há mais de oito anos, e como calcula, precisará de uma limpeza profunda e alguns pequenos arranjos.
- Sim de facto a casa foi uma surpresa que me deixou agoniado. Ali, tão depressa não volto a entrar, respondeu com desgosto.
- Não diga isso. Siga o meu conselho, volte para a aldeia, eu levou-o no atrelado, e lá arranjaremos lugar para se acomodar, enquanto não tiver sido feita e recuperação da sua casa. Mas desde já lhe recomendo que não desista, a casa da colina é um lugar especial, pois ela foi testemunha de um lindo sonho de amor. Um dia ouvirá contar a história.

sábado, 19 de março de 2011

POR AMOR

4 – UM DIA PERFEITO

Luís encheu o atrelado só com a mala, a mochila e o saco de viajem. Dirigiu-se ao Manuel disse-lhe para ir andando que ele subiria a pé. Precisava de exercitar as pernas.
- Como queira, respondeu o Manuel com um encolher de ombros, acelerando a motoreta para iniciar a subida do caminho.
Luís foi-o seguindo, mas depressa o perdeu de vista. As pernas já não respondiam como antes, e a respiração estava a ficar a cada passo, mais ofegante. Ainda por cima os sacos de plástico não eram assim tão leves. Sentou-se na beira do carreiro a recuperar forças, e passados alguns minutos, recomeçou a caminhada. Teve de repetir as paragens por mais duas vezes e quando, finalmente chegou perto da casa onde o Manuel o aguardava, viu uma árvore frondosa, que já nas fotografias, o havia impressionado, andou mais uns metros e sentou-se à sua sombra. Estava esgotado, ajeitou a bagagem, pensando para si, daqui já não saio. Para hoje chega.
- Bem, tenho de voltar à loja, diz Manuel. Veja lá o que precisa para amanhã, pois já viu que a subida não é fácil.
-Obrigada sr. Manuel, mas hoje vou tentar arrumar mas minhas coisas e quanto a comida trago qualquer coisa para enganar o estômago.
-O senhor é que sabe, mas amanhã tentarei passar por aqui, só para ver se ficou bem instalado.
Luís recostou-se melhor, espraiou o olhar pela planície onde o verde das culturas tinha um tom que combinava com o brilho do sol. O horizonte longínquo recortava algumas pequenas elevações, criando a ilusão de um espaço contínuo, até não ter fim. Só por isto valeu a pena esta aventura, murmurou.
Lembrou o Ti Zé da Eira e a mulher, tanta ternura, a ajuda do Manuel, tudo boa gente. Tinha perdido algumas reservas sobre a sua decisão mas, agora tinha a certeza, de que aquele era o caminho e o seu lugar.
Estava tão entusiasmado, que nem deu pelo pôr-do-sol. Cansado, tirou da mochila um blusão de cabedal, estava a sentir o fresco da noite, aconchegou-se, até ver as primeiras estrelas. O céu estava lindo e apesar de só, estava tranquilo e feliz.
Hoje fora o primeiro dia, mas sentia ter sido um dia perfeito. E foi com essa imagem que adormeceu, tendo a noite como companheira.

sexta-feira, 18 de março de 2011

POR AMOR

3 - PALAVRAS

Luís voltou ia sentar-se junto do velhote de quem recebera a informação.
Mas a seu lado, já entretanto se tinha sentado uma mulher, de cabelos brancos, rosto rosado e bondoso. O homem tinha o braço à volta dos ombros da companheira, mostrando naquele gesto muito mais que mil palavras.
Os olhos vivos e curiosos daquele par enamorado desmentiam a idade, e despertavam um desejo forte de comunicação.
- Se me permite, pergunta o velhote, diga-me lá o que traz aqui um homem novo, vindo da cidade para este sítio esquecido por Deus? O senhor não é um caixeiro-viajante, pois eles já há muito deixaram de por aqui passar. Sabe, aqui somos apenas algumas centenas de habitantes, na maioria da nossa idade e não somos objectivo de negócio. Por isso me interrogo da sua mudança. Não é por desconfiança, a vida já me ensinou a identificar os que se movem apenas por desígnios menos claros, pergunto porque qualquer coisa me diz, que o senhor é capaz de precisar mais da nossa ajuda do que imagina. Não se iluda, nem todos estão tão ausentes como os que viu sentados naquele banco.
Luís olhou com mais atenção para o casal.
As palavras que ouvira e o tinham surpreendido, eram fruto de vivência e sabedoria, mas a ternura daquele casal de cabelos brancos, ficara gravada para sempre. Como ele gostaria de ter vivido um amor assim.
-Gostei muito de o ouvir, admira-me a sua perspicácia porque numa coisa o senhor tem razão, eu vim de um mundo do qual pretendi fugir. Não fiz mal a ninguém, só a mim próprio. Tem razão, eu não lhes trago nada, quero antes perceber como se pode ser feliz e viver com o carinho que demonstraram um pelo outro. O senhor e a sua companheira, já me começaram a ajudar.
- Olhe o meu nome é José Maria Valente, mas aqui todos me tratam por Ti Zé da Eira. A minha mulher chama-se Catarina, criamos filhos que estão longe e nós ficamos vivendo um pelo outro. Quando quiser olhe para nós como amigos. Repare, o Manuel já abriu o estabelecimento, já lá falar pois ele é a pessoa indicada para o ajudar a ir para a sua nova casa.
Luís confirmou que a porta, protegida com uma rede colorida, já estava aberta e para lá se dirigiu.
-Vossemecê quer alguma coisa do meu estabelecimento? É só entrar e pedir, porque aqui não falta nada, e o que não houver hoje, posso garantir que será entregue amanhã à tarde, disse-lhe um homem ainda novo, e que pelos vistos era o dono da mercearia.
- Eu ainda não sei do que vou precisar. Primeiro tenho de chegar a casa, e depois de arrumar as minhas coisas ver então o que me faz falta. Mas não sei o caminho e por isso lhe venho pedir a sua ajuda.
- Então o senhor é que comprou a casa da colina, perguntou o merceeiro?
- Sim fui eu. Queria um lugar isolado, onde pudesse encher os pulmões de ar puro e contemplar a paisagem. E não encontrei nada melhor.
- Lá isolada a sua casa é. Respirar ar puro e admirar a paisagem também lhe vai ser fácil, mas ela já está desabitada há muito tempo, e poucas condições lhe poderá oferecer, em termos de conforto. A não ser que esteja nos seus projectos refazer a casa, o que irá ser caro e demorado. O acesso também não é nada fácil. Se bem me recordo, existe apenas um carreiro, que deve estar em mau estado, e que era utilizado, por uma carrocita pequena, puxada por um burro, quase tão velho como o casal que lá habitava, e lá morreu. Não o quero desmoralizar, o sítio é muito bonito, de verdade, mas também vai encontrar problemas que não previu, como por exemplo o abastecimento. Aqui não há rede de telemóvel, e para encomendar o que precisar, tem de o fazer com antecedência, para que eu lho possa fazer chegar. Digo eu, porque sou o dono do único minimercado existente na povoação.
Se quiser esperar mais um tempinho, logo que chegue o rapaz que habitualmente me ajuda a tomar conta da loja, eu levo-o lá, no reboque da motocicleta, porque carregado como está, não vai conseguir fazer a subida de uma só vez.
Oh meu amigo, se me puder fazer esse favor, eu espero o tempo que for preciso. Aliás tempo é coisa que não me falta.
Então eu já volto. O meu nome é Manuel Azinheira, se precisar de alguma coisa é só falar comigo.
Muito obrigado, não me irei esquecer.
Esperou um momento e deu pela chegada do Manuel montado na motocicleta, puxando um pequeno atrelado.
- Vamos embora amigo, vamos lá encontrar a sua nova casa.

quinta-feira, 17 de março de 2011

POR AMOR

2 – Praça Grande

Como opção lembrou-se de procurar no Alentejo interior, longe e perdido em plena planície, um lugar onde pudesse afogar as mágoas, olhando a paisagem sem fim, acompanhar o pôr do sol, respirar as brisas da madrugada, e porque não, escrever a história daquele tresloucado amor.
Através da Internet, encontrara uma casa velha, isolada no alto de um monte e decidiu comprá-la, sem ter tido a preocupação de ver o estado em que a mesma se encontrava. Ficou apaixonado pela localização e esqueceu o resto.
Na realidade apenas sabia que o lugar que escolhera ficava a alguns quilómetros de Beja, rodeado de campos abandonados e aqui e ali por searas de trigo ondulando ao vento. Era a descrição que o funcionário da agência imobiliária lhe tinha vendido.
E ali estava, no meio de nenhures. Olhou à volta, ganhou forças e lentamente refez o caminho descendo a ruela deserta e sem saída, até à praça onde o autocarro o tinha deixado.
Teve sorte, pois reparou que a praça não era assim tão insignificante quanto lhe parecera. Escolheu abrigar-se do sol, debaixo de uma frondosa árvore, rodeada de bancos de maneira. É aqui, pensou, que as pessoas se devem reunir e é aqui que terei de esperar por alguém que me saiba indicar o caminho, para a casa na colina.
Sentado no banco que escolhera, espraiou a vista pelos montes que avistava. Num deles estará a minha futura casa, murmurava. Sabia que não iria habitar um palácio, tampouco uma casa tipo novo-rico, apenas uma casa onde tivesse a quietude de que precisava para iniciar a sua nova vida.
Entretido a olhar o horizonte, não se tinha apercebido que três homens, já tinham ocupado um outro banco e que o olhavam com indisfarçável curiosidade.
Levantou-se e notou também que, arrastando os pés, mais um grupo de homens curvados e amparados em bengalas, se dirigiam para os bancos. Afinal, não era uma praça pequena, toda a experiência de vida daqueles homens,concerteza iria transformar o lugar numa Praça Grande. E ficou feliz.
Dirigiu-se aos novos companheiros:
– Os senhores desculpem eu sou um novo vizinho e vou morar na Casal do Fonte, na Casa da Colina. Chamo-me Luís Freitas. É a primeira vez que aqui estou e peço o favor de me indicarem, o caminho que devo tomar, para chegar a casa.
Dos velhotes uma grande parte nem o devia ter ouvido ou percebido o que dissera. Eram velhos, de olhar ausente, ombros caídos, cansados de viver. Luís sentiu um arrepio, não era nada do que esperava encontrar. Todavia, um outro sorriu, cumprimentou o novo vizinho, dizendo-lhe com voz rouca mas segura, que devia procurar o Senhor Manuel da loja, que não tarda vai abrir a porta, e com a mão nodosa e trémula, de quem tanto trabalhou, indicou-lhe uma casa caiada de branco e debruada a azul. Sobre a porta escrito, Supermercado.

quarta-feira, 16 de março de 2011

POR AMOR

1 – O desconhecido

A camioneta da carreira, embora com significativo atraso, acabava de estacionar no largo da povoação.
Saíram dois miúdos, que vinham da escola que frequentavam noutra freguesia, mais dois casais de velhotes, ajoujados pelas compras que carregavam, e por fim o passageiro desconhecido, a quem o motorista abriu a bagageira, para que ele retirasse os seus pertences.
Num instante o largo ficou vazio. No meio, sem saber bem o que fazer, ficou o passageiro puxando uma grande mala e carregando uma mochila, um saco de viajem e mais o inevitável saco de plástico, dum conhecido supermercado. Na realidade transportava, apenas o que lhe tinha sobrado de uma vida, bruscamente interrompida. Para trás deixara os amigos, poucos, os sonhos perdidos e um olhar de melancolia que não conseguira disfarçar.
O largo, não mais de meia dúzias de casas em redor, estava vazio e estranhamente silencioso. Encolhendo os ombros e arrastando como podia a sua bagagem, o desconhecido seguiu por uma ruela escolhida ao acaso. Não teve sorte, a ruela acabava num descampado. Parou, sentou-se na mala e começou a fumar.
Quando, com prazer, inspirou o fumo, lembrou-se da recomendação do médico:
- Abandone o tabaco, lembre-se que cada maço de cigarros que consumir representa perder anos de vida.
- Mas Doutor valerá a pena roubar-me o único prazer que me resta, argumentou? E o Médico olhou e não deu resposta.
Na quietude daquele ermo, perguntou-se porque estava ali? E, com a dor estampada no rosto, lembrou-se que estava só, sem objectivos, sem trabalho, vivendo das economias que fizera numa vida, agora sem sabor, com a alma ferida e o coração sangrando por um amor traído, que não conseguia esquecer. As noites eram um pesadelo. Procurava no seu conturbado sono, a mulher que partira e escolhera um outro amor, deixando-lhe, apenas, a sensação de vazio e sobretudo o medo de a continuar amando.
Aquele amor em que tudo dera roubara-lhe a auto-estima, a confiança e a alegria. Tudo o resto esquecera.
Tinha abandonado o trabalho para alimentar a sua desenfreada paixão. Agora era hora de pagar. Vendera o apartamento para ajudar as suas pobres economias, alugou um pequeno espaço para guardar alguns móveis de família e outras recordações, fez a mala para partir.
Para esquecer aquele amor tão sofrido, precisava de distância, de encontrar um lugar sereno e calmo. Queria encontrar-se de novo, sentir de novo os sentimentos que perdera, acreditar que, longe do objecto da sua paixão, era possível viver e recuperar tudo o que aquele amor lhe levara.
Partiria à procura dum raio de sol.

segunda-feira, 14 de março de 2011

NOSTALGIA


Quando já começamos a folhear o caderno das recordações, é impossível esconder a nostalgia.
Nem tudo foi bom, houve mesmo momentos de dor, mas quando olhamos para eles, mesmo assim, sentimos saudade e alegria porque sempre os sentimos perto de nós. Ali mesmo ao pé, como sempre estiveram e hão-se estar. Queiramos ou não, a dor e a saudade, também têm uma quota-parte, importante, nas nossas vidas.
Durante o nosso caminho, ganhamos amigos, perdemos amigos.
Quando, como é o meu caso, sempre vivi nas estrelas, criei e copiei ídolos que foram, em dado momento o espelho em que me inspirava.
Hoje a imagem já não nos mostra os nossos ídolos. Alguns porque nunca deixaram de ser jovens, outros porque apenas nos deixaram recordações.
No fim, guardo os poemas que li, os filmes que me encantaram, os actores que imitei e também as músicas que ensaiava frente ao espelho.
Dos filmes já falei num outro texto, o actor que representou o símbolo da minha geração, lembro, jovem como jovem morreu.
E a canção que tantas vezes cantei e desafinei. Da canção não me esqueci. Nem da letra, podem crer.

domingo, 13 de março de 2011

AS REDES SOCIAIS

Deixem-me sonhar e recordar o tempo em que não havia internet nem o flagelo das redes sociais. A comunicação fazia-se olhos nos olhos, partilhando os segredos, fazendo com que a amizade fosse um bem intocável. Deixem que me lembre o hábito de discutir a vida, fazendo as interrogações sobre o nosso futuro, enquanto se bebia um café na esplanada do costume.
Os mais afortunados tinham acesso ao único meio que nos ligava ao mundo.
A RÁDIO.
A rádio foi para a minha geração como a internet de hoje e garanto que tinha uma vantagem. Era a proximidade, a voz dos locutores, dos actores e actrizes que, no meu caso, me ajudaram a ler e a gostar de poesia e de teatro.
Ouvir as peças de teatro que a rádio transmitia era um momento de silêncio, de partilha, de companhia. E passei muitos desses momentos, na companhia de uma familiar que já nos deixou e da minha Irmã mais nova e cúmplice, que estou certo também guarda essas recordações, ouvindo a peças de teatro adaptadas para a rádio, algumas das quais tenho presente.”O Moinho à Beira do Rio”, adaptação do romance da escritora George Eliot, ou “ O Monte dos Vendavais” extraído do romance de Emily Bronte.
Também a literatura nos ocupava os tempos livres. Quantas vezes não li o “ Filho Pródigo” ou “O Filho de Agar” do escritor Hall Caine ou as “ As Três Filhas da Senhora Liang” da Pearl. S. Buck?
Alguns anos mais tarde tive acesso a um móvel bem bonito e moderno pois tinha para além do rádio, um gira discos.
Já estava no início dos anos sessenta, e recordo de alguns discos de 48 rotações, com o Paul Anka e as suas primeiras e mais conhecidas canções, “Diana”e You are My Destiny” e o “Oh! Carol” do Neil Sedaka e até dum álbum de 33 rotações da orquestra e coros sob a direcção do Ray Connif que, embora fosse considerado o “Easy Listening”, interpretava músicas bem bonitas.
O que eu não me lembrava, e lá tive de recorrer a internet era que Paul Anka, que terá hoje a minha idade e se nunca foi um cantor de top, foi, todavia um excelente compositor.
E talvez da mais emblemática canção, inspirando-se da música "Comme d'habitude" do cantor francês Claude François.
É para mim um prazer enorme,fechar os olhos enquanto vou ouvir esta canção na voz Frank Sinatra. MY WAY.

sábado, 12 de março de 2011

O Dia Seguinte

Tinham começado a delinear uma pequena história e estava quase decidido a iniciar a publicação.
Os traços gerais estavam anotados, deste vez num caderno, o que não me ajudou, já que fui emendando, alterando, corrigindo e acabei por ficar sem nada.
É, reconheço, uma característica da minha personalidade, que já é tarde para mudar e nem sequer sei se o resultado seria diferente. Eu troco de ideias, sempre que me apercebo de que poderei estar a jogar, com cartas marcadas.
Então escondo-me de mim mesmo e fabrico imagens como disfarce.
Porque, quero ser eu, apenas eu, com todos os defeitos, mesmo o de parecer uma ovelha tresmalhada e muitas vezes perdida.
Estava eu a deambular, por um caminho sem saber onde queria chegar, quando a Televisão aberta mas sem som, o que recomendo vivamente, me deixou pregado às imagens do sismo no Japão.
Fiquei em silêncio, por muito tempo, olhando a fúria da Natureza e pensando que os meus dramas existenciais eram, afinal, tão insignificantes.
Vejam que até me esqueci, que tencionava ler a opinião dos entendidos do costume, sobre o teor do discurso, discurso? Eu disse discurso? Peço perdão, da comunicação, também não era, porque não comunicou nada, enfim a opinião sobre um pobre texto escrito para alguém que pouco tem a dizer, e cujos dotes oratórios, não destoam da pobreza Franciscana das intervenções na casa da Democracia. Esta imagem, Casa da Democracia, que já ouvi alguém pronunciar, caiu como mosca no mel.
Eu não vos disse que tudo o que havia ensaiado e anotado estava truncado? Aqui está a prova, já me perdi mas, teimoso como sou, não vou voltar atrás para rever.
No meio da mediocridade deste amontoado de lugares comuns, prefiro acabar, não deixando imagens do tsunami, por que já as viram, pelo menos, umas quarenta vezes, e sim a beleza do que a Natureza ainda nos vai oferecendo. Por enquanto

quinta-feira, 10 de março de 2011

CORAÇÃO ATEU

Ontem ao arrumar algumas caixas esquecidas, foi encontrar muito filmes, em Super 8, nos quais o meu falecido sogro gravou,o momentos mais importantes que se seguiram à Revolução dos Cravos.
Muitos dos filmes precisam de ser objecto de uma nova montagem, pois há partes estragadas que é preciso eliminar. A mesa de montagem para visionar e assim poder fazer o corte e cola das películas, também existe.
Na realidade apenas fica a faltar paciência e algum jeito para a tarefa, mas também uma dor e uma saudade pelos anos loucos, vividos na primeira metade dos anos 70.
E tanto se viveu, tantas alegrias, tantos sonhos, tantos desenganos!
Relembro, 11 de Março de 1973 e o sangrento golpe de Pinochet e assassínio de Salvador Allende; E quantas vezes fiz coro, gritando “ El pueblo Unido Jamas será vencido”;
Lembro também a renuncia como chefe de governo, do ditador Francisco Franco, e em 1973 o atentado que vitimou o seu sucessor “Carrero Blanco”.
Em Abril de 1974 quando o povo de Lisboa saiu à rua e transformou um golpe militar, numa revolução popular, é o zénite daqueles tempos.
E depois abriram-se as prisões e o Povo quis tomar nas suas mãos o seu destino.
Ingénuo que eles foram, ingénuo que eu fui. Ninguém sabia qual era o caminho, cada um tomou o seu e por isso, depressa se chegou ao beco sem saída.
O 11 de Março de 1975 foi um aviso, mas a euforia de uma vitória fácil, tudo fez esquecer.
As manifestações a favor disto e contra aquilo e vice-versa, ocupavam o espaço informativo. Na Assembleia da Republica a luta e cedências para a elaboração de uma Constituição eram importantes. Mas algo aconteceu, que resistiu ao fervor das manifestações, deu descanso aos Deputados e deu muito prazer ao povo, do mais iletrado ao mais conhecedor.
Esse fenómeno, foi a transmissão de uma telenovela, realizada pela Globo, que passava em horário nobre da Televisão, desde o dia 14 de Abril a 24 de Outubro de 1975. O seu nome é, claro quem não se lembra? «Gabriela Cravo e Canela”.
O pouco que se disse e o muito que ficou por dizer, cabe à história escrever daqui por muitos anos, quando as ideias preconcebidas tiverem amainado, os ódios e paixões enterrados. Então só nessa altura será verdade.
Mas hoje o que eu retenho e quero partilhar é a mais bonita canção, da trilha musical da telenovela. CORAÇÃO ATEU.

quarta-feira, 9 de março de 2011

ANTE MEMÓRIAS

site: bonsinvestimentos.economico.sapo.pt



Dia 9 de Março, o ano de todos os perigos.
Hoje é um dia que não posso deixar em claro. Tenho de escrevinhar qualquer coisa, pois o Homem que tudo sabe e raramente se engana, (recordo ter ouvido este auto elogio já há muitos anos, mas são sei de quem), pode sentir-se discriminado. E quando ele se sente assim é capaz de encomendar a um dos seus escritores fantasmas, (agora está na moda este trabalho), uma intervenção a publicar no sítio, (não sei sequer o nome e o endereço), só para me desdizer. Por isso não digo nada e assim o Homem fica baralhado. O escritor fantasma de serviço, vai sugerir um texto a contradizer o meu não texto, numa linguagem cifrada, como é habitual, não vá alguém ter a veleidade de perder tempo a ler. E perder tempo é mau com tanto que há para fazer. O quê, não se sabe, mas alguma coisa haverá, nem que seja partir, mas por mar, como nos recomenda o Grande Timoneiro.
Bem, ou isto está muito confuso ou eu já me esqueci do que ia dizer. Também não faz mal, não devia ser nada de importante.
Bem vistas as coisas, dizer ou escrever coisas que não são importantes é o passatempo favorito dos meus concidadãos, pelo que mais um na lista, não vai fazer diferença.
Já sei, de repente lembrei-me. Eu só queria alertar que hoje há futebol de primeira e que devemos todos parar e torcer pelo Mourinho, pois que eu conheça, é um único Português, que malha nos Espanhóis, que ainda por cima lhe pagam para isso.
Que não lhe doam as mãos.

segunda-feira, 7 de março de 2011

DESASSOSSEGO

Como percebi que as histórias que ia inventando estava cada vez mais iguais, optei por parar, repensar e aguardar uma ideia que valesse a pena trabalhar. A ideia chegou, mas apenas o título.
Depois foi um contínuo remendo de frases, tentando não perder de vista o tema. Como era previsível, o que nasce mal, tarde ou nunca se endireita. E degrau a degrau a história baralhou-se, transformou-se numa conversa chata e desinteressante e escrever, acabou por ser um martírio.
Perdi o rumo, perdi o caminho e fiquei parado na estrada sem saber que fazer. A ideia inicial, se alguma vez me apareceu pela cabeça, sem nem sei a que seria.
Há dias assim, ou melhor, há alturas é que nos apetece parar, rasgar, esquecer. E devia-o tê-lo feito logo no segundo episódio, mas não consegui arranjar sequer, um final por mais simples que pudesse ter sido. Só no último capítulo tive coragem para acabar a história e obviamente matar o protagonista
O sentimento de desengano, leva à desistência, quando damos conta de que se perdeu a fluidez das palavras e que as ideias, antes claras e cristalinas se transformaram em nada, exceptuando um ou outro raio de luz que dura uns instantes e logo se apaga.
Que fazer? Lutar é um caminho, mas cada batalha, é dia após dia mais difícil e no fim ficarão apenas as marcas das feridas que não sararam.
É a síndrome do desassossego, esta angústia vivida entre o desejo de resistir e a vontade de parar.
Pode ser que os laços que estrangulam os sentidos, se desatem para que se volte a sentir o prazer da escrita e se acalme este vício que nos tortura.
Então voltamos atrás, relembramos o que tempo é que éramos jovens, capazes de mudar o mundo, quando hoje nem a nós nos conseguimos mudar. E vem-me à memória, uma canção de Charles Aznavour, “Hier Encore”, celebrizada na versão em Inglês pelo próprio autor e por tantos dos mais admirados interpretes.
É do próprio autor que vos deixo a versão “Yesterday When I Was Young”.
Ao menos espero, que ao ouvirem esta linda canção, me perdoem pela sensaboria destes textos.
Porque é verdade, “ontem quando eu era jovem” … era diferente.

domingo, 6 de março de 2011

À BEIRA DO ABISMO





A Partida

Mas o homem que começara a ter consciência, que adormeceu sonhando com o amanhã, não acordou.
Afinal, o seu amanhã tinha sido ontem. Tinha relembrado os rostos familiares que havia esquecido e com aquelas imagens tinha partido, com um sorriso de tranquilidade a bailar-lhe nos lábios.
Estava no outro lugar, cheio de luz e livre do pesadelo. Não tinha mais dúvidas angústias nem dor.
Mas num canto pequeno do seu cérebro ainda havia um vislumbre de vida, mas que escondia. Nele guardava os segredos, as carícias, o amor, o riso de crianças, o rumor do mar, o brilho do sol a alegria da madrugada. Apagara a mágoa e a desilusão, a injustiça e a traição, o choro e os gritos, a noite sem estrelas.
À sua volta sentia murmúrios sussurrados. No seu subconsciente, naquele pedacinho que ainda sobrevivia, tentava encontrar e dizer uma palavra. Mas ninguém ouvia, estava só naquele mundo em que mergulhara. E era só que queria ficar, em paz.
Finalmente, alguém desligou uma máquina e o Engenheiro que havia sofrido a humilhação do despedimento e constatado a traição da pessoa em que sempre confiara, partiu. Sem censuras, apenas com o desgosto de uma vida perdida.
Em vão, tinha lutado consigo próprio. Á beira do abismo ainda encontrara um rasgo de vida e de esperança. Mas tinha sido apenas um lampejo. O destino fora mais forte.

O FIM

sexta-feira, 4 de março de 2011

À BEIRA DO ABISMO

(Julio Pomar)



Insónia
O porquê da sua ausência, o receio de que o conhecimento da verdade lhe fosse doloroso não lhe saía da cabeça. Andava pela sala, em círculos cada vez mais apertados. Sentia como num carrocel. As tonturas eram fortes, foi obrigado a deixar-se cair no sofá e levando as mãos à cabeça, começou a bater com os punhos, em sinal de raiva e desespero. Nada parecia dar certo, nem conseguia articular uma ideia, gritava com amargura o desencanto.
Apeteceu-lhe sair, pegar no carro, passar pelo endereço que havia encontrado no BI, tinha a esperança de que o lugar, a casa, as pessoas, lhe desbloqueassem as memórias perdidas.
Mas qualquer lhe dizia para não o fazer, talvez porque ele no seu íntimo reconhecesse que não estaria ainda preparado para um despertar, eventualmente, doloroso. Seria um pressentimento, mas a dor que sentia e lhe esmagava o peito era um aviso.
Voltava a sentir o desejo de pôr fim a tudo. Qualquer coisa seria melhor do que aquela agonia que o golpeava.
O sono não ajudava e voltava a ver sombras, pareciam de um rio de lama viscosa a deslizar lentamente, engolindo tudo e todos e se aproximava de si. E ele esperava como se fosse a libertação.
Levantou-se, fez mais um esforço para afastar os pensamentos negros. Acendeu a luz, pegou nas fotografias que encontrara na carteira e esteve a olhar para elas, desejando que um raio de razão lhe explicasse o seu martírio.
Demorou horas, tantas, que já nem sabia se era dia ou ainda noite.
Saiu para a rua, precisava de encontrar alívio para calmar o fogo que o destruía. Cambaleando rua a baixo, noite escura, ouviu um automóvel accionando os travões com estrondo e de lá saírem dois homens que o pegaram por um braço, arrancando a toda a velocidade ao som estridente de uma sirene.
E depois a calma. A dor que lhe esmaga o peito atenuou-se e até as lembranças, pareciam ter voltado. Olhava a sua volta, agora procurava os rostos conhecidos, o da mulher Ana, da filha Carolina e do filho André. Eram as imagens que esquecera, por isso sentia que estava a recuperar. Amanhã vou acordar deste pesadelo, e perceberei tudo. Finalmente, amanhã, …. adormeceu.

quinta-feira, 3 de março de 2011

À BEIRA DO ABISMO

(Amadeu de Sousa Cardoso)



O mistério

Gostou da refeição, o peixe era mesmo fresco e bem grelhado e o vinho branco seco estava delicioso. Declinou a sobremesa, pedindo o café.
O empregado que, pelos vistos o conhecia, levou o café, uma garrafa de whisky e o copo adequado. Posso servir o whisky, perguntou?
-Não obrigado, deixe que eu mesmo me sirvo, respondeu.
Bebeu, lentamente, enquanto a cabeça não parava. As pessoas conhecem-me, bom princípio.
Sem dar conta e de forma mecânica, levou a mão ao bolso do casaco, tirou a carteira e dela o dinheiro para pagar a conta. Antes de a guardar, olhou espantado ao ver fotografias, cartões de crédito, cartões de apresentação profissional, e mais documentos em que não mexeu. Afinal, tinha no bolso tudo o que o identificava.
Andou um pouco, cruzou-se com pessoas que lhe eram indiferentes, reconheceu o automóvel estacionado perto, pegou nas chaves, abriu a porta do prédio, subiu ao sexto andar e sem hesitar, abriu a porta do apartamento A e entrou.
Suava como se tivesse feito uma longa caminhada e, de certo modo, fizera. Tinha percorrido o caminho da escuridão, até à luz que vislumbrara ao abrir a carteira.
Sentou-se num sofá, olhou em redor e deu-se conta de estar numa sala aparentemente confortável, mas sem sinais de vida.
Apenas reparou numa mala de viajem, aberta sobre uma pequena mesa. Nas paredes apenas quadros tendo o mar como tema principal.
Mesmo para uma mente perturbada, conseguiu entender que estava a viver num aparthotel. Não sabiam era desde quando e porquê.
Abriu a carteira e espalhou o seu conteúdo sobre a mesa. Uma foto de uma mulher sorridente, duas crianças. Será a minha mulher e os meus filhos, adquiriu como tal. E ficou feliz. O BI e a carta de condução identificaram-no como Fernando Manuel Gomes de Castro, nascido em Lisboa a 15 de Abril de 1966, filho de Albano Freitas Castro e de Maria Aldina Gomes, residente na Avenida das Forças Armadas, nº. 36 –4º. Esquerdo, Nova Oeiras.
Nos cartões de apresentação da Empresa, indicava ser Engenheiro Electrotécnico, Chefe Das Operações Internacionais, de uma Empresa de Telecomunicações.No verso do cartão fazia a apresentação em Inglês e em outro em Francês.
Tinha o endereço completo, número de telefones e e-mail.
Telemóvel, lembrou-se de repente que o teria visto na mala de viagem. E estava, mas sem carga, não encontrou o carregador e também não sabia o código. Não lhe ia servir de muito. Amanhã é segunda-feira, isso sabia, e poderia esclarecer tudo ligando ou indo ao escritório da Empresa.
Ao fechar a mala fez uma descoberta que o encheu de júbilo. Descobriu o computador portátil. Finalmente iria esclarecer tudo. Mais uma vez sem resultado,o computador estava desligado e nem sabia a palavra-chave.
Ficou absorto a olhar tudo o que o podia ter ajudado mas nada dera certo. Guardou o computador na mala e da bolsa, retirou com espanto, cartões de embarque aéreo, mas com as viagens realizadas. Teria voado de Lisboa para São Paulo e regressado a Lisboa uma semana depois. A surpresa maior, era que a viagem de retorno teria acontecido há mais de dois meses. Dois meses, como pode ser, eu estou aqui há tanto tempo, porquê?

quarta-feira, 2 de março de 2011

À BEIRA DO ABISMO

(M.H.Vieira da Siva)




O Despertar

As imagens que o subconsciente projectava no tecto, eram sombras, figuras de contornos difusos, mar revolto e ondas ameaçadoras. Cerrou os olhos, não queria ver.
Esteve assim calmo e a respirar compassadamente, até se deixar cair num estado de semi-torpor, todavia mais perto do sono. E sonhou.
As sombras e figuras que vira, começaram a assumir rostos que, todavia não reconhecia. Viu uma mulher num dos momentos mais felizes da vida. Estava deitada, sorria de felicidade e estendia nos braços uma criança acabada de nascer.
Alguém, que não viu o rosto, recebeu com as mãos trémulas, o recém-nascido, acariciou-o e chorou de alegria.
Aquele momento trouxe-lhe a paz que precisava. E com um sorriso nos lábios, deixou-se adormecer.
Acordou sem sobressalto. A tempestade já partira. Levantou-se, fez correr o estore da janela do quarto e espreitou a rua. O sol mergulhava no oceano, envolto em nuvens coloridas. Tinha perdido a noção do tempo em que estivera a dormir, mas o estômago funcionou como relógio, reclamando o alimento que há bastante tempo lhe tinha sido negado. Tomou um banho de chuveiro rápido, a água estava fria tinha-se esquecido de ligar o esquentador. Ao trocar de roupa, olhou-se no espelho e ainda viu marcas dos maus momentos.
Não pode ser, disse para si ao ver a barba crescida de dois dias. Dois dias, como é que ele, sempre tão cuidadoso com a aparência, deixara que tal acontecesse? Mesmo com fome e sendo quase noite, não vou sair neste estado. Desfez a barba, vestiu uma roupa confortável e foi jantar.
Na rua que percorrera, encontrou o restaurante e entrou. Pareceu-lhe algo familiar mas não tinha a certeza. Já havia pessoas a jantar, um empregado mais idoso chamou dizendo:
- Senhor Engenheiro a sua mesa está reservada, apontando uma mesa perto da vitrina.
O empregado conheceu-me, mas eu nem de lembro de algum vez aqui ter comido, pensou para consigo. Esboçou um sorriso de agradecimento, ocupou a cadeira que lhe indicaram e estudou a ementa. Não sabia o que escolher, olhou para o empregado pedindo ajuda. Foi aconselhado a comer um robalo grelado, robalo do mar, como o senhor Engenheiro tanto aprecia.
Enquanto aguardava a refeição, reconheceu que, para além das imagens duma mulher e duma criança acabada de nascer, a sua memória perdera, nalgum canto, a suas referências. Aquelas imagens, podiam ser, tinham de ser, o começo do caminho que teria de percorrer até se encontrar. Mas teria de começar devagar. Primeiro sabendo quem era, para depois poder entender o que se passou, que quase o levara ao fim.