Foi
de mãos dadas que percorreram a praia. O mar subia par lhe acariciar os pés, o
vento soprava uma música que lhe perturbava os sentidos.
Foram
horas, quase em silêncio, que percorreram a areia da praia deserta. Sentia-se
nascer e crescer uma cumplicidade uma ternura e o desejo de partilha. Porém em alguns momentos sentiam a angústia duma vida sofrida.
Quando
regressaram a casa deixaram perder o encantamento daquele dia junto ao mar.
Afinal,
o medo venceu.
Luís
procurou na bagagem o livro que, tinham quase a certeza havia escolhido para a
viajem. E encontrou-o. “Vinte poemas de amor e uma cancão desesperada” de Pablo
Neruda. Naquele momento queria reler e reviver o poema vinte. Era a poesia que,
naquele momento, mais prazer lhe daria ler em voz alta. Ah se eu pudesse voltar
a viver um grande amor, exclamou com um suspiro. E a imagem que lhe ocupava a
cabeça era a de Joana, com os seus olhos tristes e os seus silêncios.
Sabia e sentia que podia dar todo o amor do
mundo, mas porquanto tempo?
Durante
alguns dias o relacionamento entre os dois passou a ser menos envolvente. Era
uma situação confusa, parece que ninguém queria dar o passo em frente.
Luís
começou a caminhar pelos campos, seguindo os carreiros que Joana lhe tinha
ensinado. O livro que sempre o acompanhava ficava por abrir, o caminho por entre
as árvores passou a ser o lenitivo para as suas mágoas. Abraçava as árvores,
acariciava as flores campestres que encontrava no caminho, num momento de
libertação e reconhecimento pela natureza.
Ficava fascinado com o intenso trabalho das
abelhas, e passava horas olhando e admirando o seu intenso labor, carregando o
pólen para a colmeia. Sabia pelos livros a importância que as abelhas têm sobre
a natureza, sobre o futuro do homem. Mas nunca imaginara estar horas a
testemunhar a organização da sociedade perfeita.
Voltou
à sombra que escolhera, sentou-se encostado ao velho tronco, e foi assaltado
pela dúvida. Afinal o que se estaria a passar na sua vida, perguntava-se:
-
Como é que tudo começara, e porque se encontrava, agora, só e perdido?
-
Afinal ele queria encontrar um local, para viver só, com os seus medos e angústias.
Mas o destino, quando nada esperava, levou-lhe ao encontro, uma mulher,
ainda jovem mas com uma forma de estar na vida tão diferente, que o perturbava.
Sentia que Joana escondia sentimentos e a sua solidão teria alguma coisa a ver
com um desgosto de amor. Porque percebera que ela era uma mulher que se dava e se escondia
dum momento para o outro. Como se a paixão fosse qualquer coisa que lhe
despertasse sensações, que queria esquecer. Joana vivera um sonho de amor, só podia
ser, e algo correra mal e a fizera descrer. De repente deixava o sonho de amor
e ficava com medo.
Ele
estava perdido num labirinto de paixões. Desejava Joana com todas as forças de
que ainda era capaz e estava disposto a enfrentar o futuro.
Mas
seria justo prometer algo que não se tem a certeza de cumprir?
Um
dia igual a tantos outros encontrou o paraíso na beira de uma pequena represa,
coberta de flores, estendida sobre uma pedra, oferecendo o corpo despido ao
calor do sol, encontrou a deusa dos seus sonhos. Joana estava ali, e pronta
para se entregar.
Sem
palavras… para quê? Luís tirou a roupa, nadou na lagoa e foi anichar-se junto
ao corpo que se lhe oferecia.
E
foi com a força da paixão quase esquecida, que se entregaram, gemendo de dor e
de prazer, juntos num momento sem fim, um momento em que repartiram o corpo e a
alma.
Joana
levantou-se, murmurou até amanhã, e desapareceu.
Luís ficou mais um pouco, reviveu o
momento em que, sem uma palavra se haviam juntado dois corações e dois corpos sedentos de carícias. Reganhou o
equilíbrio emocional, desceu a escada e deitou-se na cama. Teve alguma dificuldade
em adormecer. Tinha sido um dia cheio de sensações e de recordações. Tão
diferente do habitual que não conseguiu dar descanso à memória.
Apesar
da noite mal dormida, acordou bastante cedo, barbeou-se, tomou um duche rápido,
a água estava mesmo fria, limpou-se com energia e sentiu de novo o calor.
Vestiu uns calções e uma camisola leve, calçou ténis e desceu.
Joana
não estava na sala, mas tinha deixado uma chávena, pão e manteiga e no fogão a
cafeteira que ainda fumegava. Serviu-se, generosamente de café, comeu uma fatia
de pão com manteiga, e sentiu que a felicidade chegara.
Sentia-se
leve e sedento de companhia. A noite, aquela primeira noite, seria o prenúncio
do verão escaldante e sentiu voltar a energia e o vigor que julgara ter
perdido.
Ouviu
o ruído da motoreta, saiu à rua e Joana já o esperava sentada ao volante.
Esta
arrancou por uma rua, atravessou a praça vazia, avisando:
-
Hoje está um dia de sol que me despertou a vontade para me espreguiçar na areia
da praia. Há muito tempo que não faço embora o mar ser uma das minhas paixões. Não
é longe, vai ver como em pouco mais de uma hora chegamos a uma praia deserta.
Entretanto
vamos passando pelos meus refúgios campesinos. Espero que não se canse da
viajem.
Com
os solavancos a cumplicidade entre o corpo de Joana, e as mãos de Luís passou a
ser mais natural. Ele bem sentia a pele macia da companheira, por baixo dos
seios soltos. Isso excitou-o como há muito tempo se não sentia, e fazia-o
desejar que a viajem fosse até ao fim do mundo.
Mas
Joana parou à sombra de uma velha oliveira e explicou:
- Esta oliveira marca a separação de três propriedades.
Naquela encosta que se vê à esquerda, plantei um olival novo. São quatrocentas
oliveiras plantadas há dois anos e que são regadas num sistema gota a gota.
Pertencem-me e eu trato-as como se trata um filho. Dia sim, dia não, faço-lhe
uma visita, falo com elas, limpo algumas ervas e sento-me numa pedra que me
permite espraiar os olhos pelos campos e beber a vertigem dos campos mágicos do
meu Alentejo. E esqueço as desventuras e os desgostos, porque como Luís deve
calcular, também os sofri. Colho desde o primeiro dia o benefício da
tranquilidade e da beleza da natureza e espero e que daqui a dois anos já possa
colher o fruto do investimento, e que foi todo o dinheiro que tinha disponível.
A
seara que se estende daqui até aquele monte, e indicou uma elevação bem
distante é minha e de meu irmão. Foi a herança que recebemos dos nossos Pais.
Cultivamos o trigo ou outro cereal conforme o mercado ou se o ano for seco ou
chuvoso. É o Manuel quem toma as decisões. Este ano, como choveu bastante
semeamos trigo e é de esperar uma boa colheita.
Os
terrenos que não estão cultivados são de pouca qualidade, embora seja neles que
construímos duas pequenas barragens de terra, guardando a água das chuvas e de
um pequeno regato que por ai corre. É uma zona pedregosa, cheia de flores
selvagens, com o cheiro da alfazema e da esteva. Passo muito do meu tempo,
estendida numa rocha, molhando os pés na água, e ouvindo o chilrear da
passarada que aqui faz os seus ninhos.
Mas
hoje sinto o apelo do mar. Preciso de ouvir o murmúrio das ondas que ouço, como
um poema de amor.
Joana não escondeu
o sorriso, há tanto tempo que não ouvia um galanteio e, reconhecia, soube-lhe
bem.
Mas, como quase
tudo na vida o sorriso foi breve, a realidade duma vida que Joana escondia,
depressa a fez esquecer o sorriso. Não era uma jovem ansiando pelo amor, tinha
passado os trinta anos e muitas esperanças perdidas no nevoeiro dos dias. Mas
guardava para ela o passado, refugiando-se na natureza, bebendo o brilho das
flores e o cantar dos pássaros, espalhando o corpo no colorido dos campos, afogando
o desejo mergulhando nas águas frias da ribeira.
Nas noites em que
sentia a solidão, qual ferida que não cicatriza, tentava adivinhar o seu
destino lendo as estrelas do céu.
Agora olhava para
Luís e sentia-se inquieta, e só ao longe, como um murmúrio ouviu que Luís,
olhando no vazio, abria o coração.
- O apelo que me
fez vir para este lugar se foi escrito, não terá sido por mim. Todavia senti-o
à flor da pele, quando num momento de rotura com o passado, me deixei apaixonar
pela imagem da casa da colina. E, acredite, não me arrependo do caminho que
escolhi. Tomara eu ter coragem mas sobretudo talento para escrever uma história
de contornos ainda não claros mas a que já dei o nome. Irá chamar-se “A Casa na
Colina”.
Imagino a sua perplexidade. Então este
desconhecido, vindo sabe-se lá donde e por que razão, quer escrever um livro?
Não se assuste, para já apenas tenho o projeto, o nome para ser mais claro e
tenho dúvidas que passe do primeiro capítulo. Esse será o nosso encontro e as
suas palavras, perante um desconhecido, meio louco, que se encontrou, perdido e
desorientado na serra. Por fim, confesso-lhe, eu fugi do passado que quero
esquecer, lutando por viver na ilusão do futuro.
Vou tentar seguir o caminho que me propôs,
mas lembre-se, que em algum momento, eu poderei vacilar e não ter recuperado a
energia perdida. Nesse momento, esqueça-me.
Vou subir para o terraço para fumar um
cigarro. Já lá estive e pude ver que ele também é um refúgio para a Joana. Se
assim for e quiser partilhar o silêncio da noite, convido-a a subir comigo.
Luís ia a pegar numa cadeira, mas Joana,
disse-lhe:
- Não é preciso. Você senta-se no cadeirão e
eu no tamborete.
Assim fizeram, sem mais palavras e Luís
apenas não resistiu a uma carícia leve nos cabelos que Joana deixara ondular
pela brisa ligeira do entardecer.
Joana aninhou-se nos seus braços e, sem
palavras, deixaram que os corpos se procurassem, e fizeram amor, como se fora a
primeira vez.
Joana ficou serena e olhando para a estrela que
era a sua companheira nas noites de solidão, deixou que uma lágrima furtiva lhe
aflorasse aos olhos e percorresse o rosto afogueado.
Precisava de
tomar a medicamentação, mas ao abrir a caixa parou. Não, não iria disfarçar a doença.
Já chegava de enganos, a vida teria que a viver lúcido e desperto, só assim
conseguiria escrever o livro que acabara de sonhar.
Levantou-se, subiu
as escadas e foi para o terraço.
O cadeirão
parecia chamá-lo, sentou-se, e fixou o olhar no horizonte longínquo.
Uma breve
brisa acompanhava a lua que começara a sua viagem. Sentia qualquer coisa de
mágico naquele lugar. Estava isolado do mundo mas estava bem consigo mesmo. E
pela primeira vez desde há muito tempo sentiu fome.
De repente
ouviu barulho, desceu as escadas e entrou na sala principal. A mesa estava
posta com dois lugares. Do lado da cozinha ouviu Joana:
-
Estou a acabar o jantar, quase uma ceia, e esperava que acordasse para o
convidar a partilhar comigo. Sente-se à mesa e aguarde só uns minutos.
Assim fez.
Passou pouco tempo quando Joana entrou na sala, carregando uma terrina que
fumegava.
-
Não sei se gosta, mas como cheguei já tarde e os dotes de cozinheira não são
grande coisa, preparei uma açorda de poejos com um ovo para cada um. É uma refeição
típica do Alentejo.
O cheiro do
poejo e do alho eram um chamamento e Luís deliciou-se com a tigela de açorda
que repetiu.
Joana esboçou
um sorriso, chegou-lhe um prato com queijo do ovelha curado, convidando-o a
servir-se.
Luís comeu
com evidente prazer e ia agradecer quando notou que ela o olhava como se
quisesse ler os seus segredos. Sentindo-se objeto de escrutínio disse:-
-
Joana, porque me olha assim? Se quer conhecer-me, pergunte o que quiser e eu
responderei a tudo, com a verdade, prometo.
- Eu não tenho dúvidas de que o
fará, respondeu Joana, mas confesso que a sua decisão de vir habitar uma aldeia
perdida no meio da planície e numa casa em ruínas, me faz pensar que, por
qualquer razão que não conheço, mas pressinto, não gostarei de ouvir a sua
história. Embora eu possa parecer insensível, a verdade é que, ouvir uma
história triste despertará em mim angústia e sofrimento que tento esquecer.
Em
contrapartida proponho que o meu Irmão coordene a recuperação da sua casa e lhe
apresente o orçamento que você terá todo o direito de aceitar, solicitar correções,
enfim, sentir que estará a reconstruir o seu mundo.
Até lá é meu
convidado.
Por si e por
mim, vamos deixar correr o tempo, vamos viver da forma que é possível viver nestes
lugares. Sem compromissos, sem obrigações. Eu tenho as minhas rotinas, que
posso partilhar consigo, desde que esteja interessado em sair cedo, sem destino
e voltar a pôr-do-sol.
Percorro os
campos, paro com alguma frequência para admirar um formigueiro, uma flor.
Nesses momentos encontro-me comigo, relembro o que vivi e como vivi e faço-o em
comunhão com o que de mais belo existe, a natureza.
Quando me
quiser fazer companhia, já sabe é sair pelas sete da manhã e regressar pelas
sete da tarde. O caminho é o que for. Descansaremos quando nos apetecer, refrescar-nos-emos
nalgumas pequenas albufeiras, respiraremos o ar puro e o odor dos campos em
flor.
-
Joana, eu compreendo. A minha vida não será um romance, aliás teria até muito
pouco que contar. De qualquer modo o destino encaminhou-me para um lugar, que
me trouxesse as memórias da infância, o cheiro da terra e o brilho do sol. E
como prémio o poder sentir o fascínio de uns lindos olhos verdes.
Mas
não acredito que o senhor seja homem para desistir. Pelo menos, dê oportunidade
que o ocaso que o fez escolher este lugar, tão belo, tenha algum significado
para si. Não acredito que tenha escolhido esta casa da colina por mero
capricho. O senhor foi atraído por forças que, talvez não tenha ainda
reconhecido, mas que, pode crer existem na natureza e na alma de cada um.
Arrisco-me a prever que esta casa irá ter um papel na sua vida. Será um papel
de felicidade ou de desesperança, isso caberá ao seu coração ir construindo.
Mais
uma vez as palavras de Joana o deixaram indeciso. Tanta poesia, poderia querer
adivinhar uma vida com futuro. E ele precisava dessa convicção para poder
acreditar. Olhou de frente para Joana e, falou:
-
De facto a casa tem alma, tem a sua, Joana. E eu sou tão carente de acreditar
que me rendo. Vou cumprir o destino que aqui me trouxe, nesta colina, nesta
casa, olhando o infinito que adivinho para lá daqueles montes. Já agora não me
chama de senhor, o meu nome é Luís. Digo que já decidi ficar, não conseguirei
viver na casa, preciso de recuperar das emoções e esperar os arranjos que terei
de mandar fazer. Até lá, ficarei debaixo daquela árvore que já me estendeu o
seu braço protetor.
-
Reconheço que a casa terá de ser recuperada e isso demorará algum tempo, por
isso vou-lhe fazer um convite:
-Vivo na aldeia, ocupo o r/c duma casa que os
meus Pais me deixaram, tenho o primeiro andar livre e ainda um pequeno terraço,
que lhe posso alugar por um preço justo. Também tem umas vistas bonitas e o
terraço pode servir para os seus exercícios matinais, já que não há casas mais
altas na cercania. Ninguém irá reparar se está nu ou em cuecas.
O andar tem
casa de banho e águas correntes, mas de um depósito no tecto. Quer dizer se
quiser água quente para o banho, terá de me pedir e eu levo-lhe um balde. Mas
como já o vi banhando-se em água bem mais fria, julgo que isso não vai ser um
problema.
Pode ficar o
tempo que quiser até à conclusão das obras, na sua nova casa.
Quando lhe
falei em aluguer por um preço justo não estou a falar, exatamente, no pagamento
de renda. Para mim o conceito de preço justo não é uma questão de dinheiro. É,
contudo, uma questão de respeito e de independência.
-
Mas o seu irmão e a vizinhança acharão bem que você partilhe uma parte da sua
casa com um homem, para mais desconhecido, retorquiu Luís?
-
Com isso não se importe, sou maior e vacinada e faço a vida de acordo com a
minha maneira de ser e não tenho de prestar contas a ninguém. Sou livre como o
vento. Respeito as pessoas, ajudo os que precisam mas mantenho sempre alguma
distância que não é preconceito, mas apenas a defesa dos sentimentos e emoções
que são apenas meus e não costumo partilhar. O meu irmão, único familiar próximo,
entendeu a minha vontade. Também ele tem casa própria, terá amigas, nunca me
disse que havia assumido algum compromisso duradouro, mas é a vida dele e goza-a
como bem entende.
Quando
temos de trabalhar juntos é na época da sementeira e da colheita. Mas o
trabalho é tanto, que nem dá para conversarmos.
Mas, antes de
se decidir, quero dizer-lhe que o que lhe proponho é apenas espaço físico,
alguma companhia mas a Joana não estará incluída no negócio.
-
Luís surpreendido com a afirmação, respondeu:
-
Faça-me a justiça de acreditar, porque não me conhece, mas também eu sou e
sempre fui muito independente. A Joana foi muito clara no seu convite.
Far-lhe-ei companhia quando sentir necessidade dum ombro amigo e fique ciente
que eu serei incapaz de pensar em qualquer coisa mais. Espero que ao olhar para
mim não me veja como um doido ou um empecilho que, numa manhã encontrou nu e
tremendo de frio, no cimo da encosta. Não me sentiria bem como um mendigo sem
eira nem beira. Embora, afinal seja isso que de facto sou.
Joana
hesitou um breve momento e com determinação começou a carregar o atrelado. Luís
fez da fraqueza força e carregou a bagagem mais pesada.
-
Luís o atrelado não suporta mais peso, avisou Joana. Por isso o seu lugar terá
de ser partilhado comigo, no selim do condutor. Agarre-se bem à minha cintura, pois
não quero perdê-lo, logo a seguir a tê-lo encontrado.
A descida da
encosta feita com razoável velocidade e destreza, obrigou Luís a colar-se ao
corpo da condutora. Sentiu o seu calor, há quanto tempo não sentia o calor do
corpo duma mulher, mergulhou o rosto na cabeleira farta e respirou o cheiro a
alfazema.
A motoreta
parou à porta de casa, mas Luís nem disso se apercebeu. Foi Joana quem com um
sorriso irónico lhe disse:
- Pode largar-me, já chegamos.
Luís
estremeceu, como se acordasse dum sonho, soltou as mãos, desceu da motoreta e
encostou-se à parede, pois com a descida, havia sentido uma tontura inabitual.
-
Olhe, disse Joana, eu tenho de ir à minha vida. Vá levando as suas coisas para
o seu novo alojamento e se quiser arrume a seu gosto. Se quiser preparar alguma
coisa para comer, sirva-se à vontade da cozinha e do que houver no frigorífico.
Faça como se estivesse em sua casa. Só uma observação, dentro de casa não
existem chaves nas portas. A única que existe é a chave da rua que está
pendurada atrás da porta, mas não creio que precise de a utilizar.
Como é
habitual, não sei quando irei voltar. O tempo para mim é marcado pelo sol ou
pelas estrelas, não sou escrava das horas, aliás nem uso relógio. Fique à
vontade, em algum momento regressarei.
Dito isto,
arrancou a toda a velocidade e rapidamente desapareceu.
Luís empurrou
a porta, viu logo em frente uma escadaria e retomou o trabalho já repetido e
cansativo de transportar as malas, os sacos, a roupa e tudo aquilo que
levianamente havia trazido.
No primeiro
andar encontrou um quarto pequeno mas acolhedor. Ao fundo, bem junto da janela,
tinha uma cama de ferro, com uma colcha bem bonita e dois almofadões a
condizer. Aos pés, uma arca de madeira, que calculou servir para guardar a
roupa da cama. Na parede oposta uma pequena cómoda e um guarda fato. Ao fundo,
uma porta de correr separava o quarto duma pequena casa de banho. Ao lado
espreitou uma escada com meia dúzia de degraus, subiu e encontrou o terraço. Era
pequeno, mas tinha uma vista sobranceira a todas as construções em redor. Um
cadeirão de verga virada para o ocidente significava que aquele lugar seria um
refúgio de Joana nas longas noites de verão e, quase por certo, de solidão.
Voltou ao
quarto. Estava cansado duma noite mal dormida, e por isso não tinha vontade de
desfazer malas e arrumar o seu conteúdo. Resolveu descansar um pouco. Descalçou
as botas, tirou o blusão e deitou-se em cima da cama.
Apesar do
cansaço, as emoções daquele encontro, a personalidade e os sentimentos que
Joana revelou, fizeram com que os olhos recusassem o sono e na memória revia os
momentos, as palavras e sentia entranhado o calor do corpo duma mulher. Deu
muitas voltas na cama, suspirou vezes sem conta, sentiu medo que o destino lhe
tivesse reservado alegria ou sofrimento.
Levantou-se,
abriu o computador, verificou que ainda tinha carga e começou a escrever. E
começou pelo título, chamar-se-ia “ A CASA DA COLINA”. Depois delineou a
história. Seria uma história de amor e lágrimas. Os personagens iriam nascer ao
correr da escrita. Finalmente a cabeça descaiu sobre o teclado levou-o ao mundo
que começara a imaginar.
A noite já se
anunciava e, pela primeira vez desde há muito tempo, Luís sentiu que afinal,
mesmo nos confins do mundo, naquela aldeola perdida no Alentejo profundo,
poderia encontrar a razão para continuar vivendo, embora o seu corpo dorido e frágil, lhe
segredasse, o sonho impossível.
Foi uma subida
difícil. Como Manuel previra o caminho estava quase intransitável o que lhe
exigiu perícia, acelerações no motor, em alguns lugares mais íngremes foi
necessário recorrer à força de braços para mover a composição. Manuel era um
homem ainda jovem, criado no campo e, apesar do suor que lhe escorria pelas
fontes não parou de empurrar. Luís também procurou ajudar, mas entre tropeções
e escorregadelas a sua ajuda foi apenas cheia de vontade, porque força não
tinha.
Mas
conseguiram chegar ao terreiro em frente da casa. Manuel ajudou a descarregar a
bagagem que ficou junto à entrada da casa. Por perto havia uma azinheira grande
e frondosa e foi à sua sombra que Luís se sentou, arfando e limpando o suor.
- Então
amigo, já chegamos, abra a aporta que eu ajudo a levar as suas coisas, propôs o
motorista!
- Não se
prenda comigo, vou descansar e logo irei levar as coisas com calma. Fico-lhe
muito agradecido, sem a sua ajuda teria desistido pode crer, disse Luís com
algum desalento na voz.
- Pronto eu
não insisto, respondeu Manuel, mas lembre-se que a casa não estará preparada
para o receber. Faça por descansar e amanhã eu ou o meu ajudante passaremos por
aqui para ver o que será preciso.
- Sim
obrigado, para esta noite tenho comigo o indispensável. Tenho roupa, água e comida
e vontade de visitar a casa que me fascinou.
Ajeitou-se no
declive ao lado da azinheira, estendeu as pernas, acendendo um cigarro que
saboreou com prazer e pensou que só aquele momento, admirando os campos que se
estendiam por pequenos montes e vales até onde a vista alcançava, já teria pago
o cansaço da sua aventura. Mas que estava ainda no começo.
Decidiu ir
ver a nova casa. Procurou a chave, abriu a porta e rapidamente voltou para a
sombra da árvore. A casa exalava um cheiro pestilento, pútrido, carregado de
odores de água podre. Ficou verde e as náuseas foram o prenúncio dum vómito
seco, que após muitas convulsões conseguira expelir um líquido amarelo que lhe
feria a garganta. Era o fígado a dar sinais que ele também conhecia e de que se
esquecera. Na verdade, naquele dia ainda não comera nada. Abanou a cabeça, não
conseguia esconder a sensação de desânimo. Aquilo não era uma casa, não podia
ser a sua casa, mas parecia ser um túmulo que já cheirava a morte.
Desistiu. A casa ficou vazia.
Para combater a angústia e o desespero voltou para debaixo da árvore e decidiu que ali ficaria pela noite até o sol raiar e escolher o caminho do regresso. A casa estava só como só e vazio estava o seu coração.
Estava tão
cansado que se deixou adormecer. Quando acordou, noite alta, sentiu frio e teve
de procurar na mala alguma roupa mais quente. Por sorte, encontrou na mala, um
velho blusão de cabedal, com o qual se aconchegou. Voltou a deixar-se dormir e
só acordou ao raiar da aurora.
Inebriado com
a beleza do nascer do dia, resolveu praticar os exercícios aprendidos, quando
praticara artes marciais. Despiu-se e começou por fazer alguns exercícios,
enchendo o peito de ar e tonificando todos os músculos. De seguida lembrou-se
dos movimentos da arte marcial que praticara e exercitou-se até se sentir
cansado. Para um primeiro dia, e para quem já não praticava há tanto tempo, o
esforço tinha sido exagerado e o corpo pedia-lhe descanso.
Olhou em
redor da casa e pareceu-lhe ouvir o correr de um pequeno regato. Foi ver e de
facto, brotando de umas rochas na traseira da casa, corria um fio de água,
depois retida num tanque de pequenas dimensões. Nem hesitou, saltou para dentro
do tanque, esfregando-se com energia, a água ainda estava fria. Só aguentou uns
breves minutos, saiu a correr à procura de uma toalha para se secar, quando
ouviu o ruído da motoreta que acabava de parar mesmo junto da sua bagagem. Não
era o Manuel que a conduzia, mas sim uma mulher, ainda jovem, que se ria da
figura que ele fazia, tapando com as mãos os órgãos genitais, e batendo o dente
com frio.
-
Não fique assim envergonhado, já vi homens nus. Mas para ficar mais à vontade
eu vou dar uma volta e volto já.
Luís vestiu-se,
com a mesma roupa da véspera, sentou-se no lugar de eleição debaixo da árvore, e
quando a mulher voltou já tinha recuperado da situação insólita que acabara de
viver. Todavia havia nos seus olhos sinais evidentes de tristeza e desilusão.
E eram tão
marcados que a mulher parou na sua frente e disse com voz triste:
-
O meu nome é Joana e sou a irmã do Manuel. Ele contou-me que a casa da colina
já tinha um novo proprietário e eu quis ver, com os meus olhos a pessoa que
escolheu aqui viver.
Percebo que o
meu irmão que está sempre muito ocupado, talvez não o tenha avisado do que iria
encontrar, logo que abrisse a porta.
É evidente
que sofreu uma desilusão, certamente não esperava encontrar uma casa em ruínas,
mas acredite que a primeira impressão é para esquecer. A casa
precisa de ser recuperada depois de cinco anos abandonada, mas acredite, se há
casas com história e com alma eu dir-lhe-ei que esta é uma delas.
Um dia alguém
lhe contará que a casa da colina é um exemplo de amor, de amor quase intemporal.
O casal que a construiu e nela viveu não eram camponeses, foi o sonho de amor
que os fez deixar Lisboa, deixar o conforto de uma casa de família da alta
burguesia e terem construído, nesta linda colina, a casa onde viveram o seu
amor.
Passaram mais uns minutos, ouviu o
abrir duma porta, mesmo ao seu lado. Um homem saiu, pendurou uma proteção de fitas
coloridas contra as moscas e virando-se para o desconhecido disse:
-Vossemecê quer alguma
coisa do meu estabelecimento? São horas de abertura, é só entrar e escolher,
porque aqui não falta nada, e o que não houver hoje, posso garantir que será
entregue amanhã à tarde, disse-lhe um homem ainda novo, e que pelos vistos, era
o dono da mercearia.
Aliviado por encontrar alguém, Luís esboçou
um sorriso e respondeu:
- Sabe, eu estava era
admirado por não ver ninguém. Até pensava que me tinha enganado no destino. Eu
ainda não sei do que vou precisar. Primeiro terei de chegar a casa, arrumar as
minhas coisas ver então o que me faz falta.
-Então é o senhor o novo
dono da casa da colina?
- Sim sou. Queria um
lugar isolado, onde pudesse encher os pulmões de ar puro e beber a paisagem. Não
encontrei nada melhor e por isso aqui estou, contente, mas embaraçado com tanta
bagagem que não sei como transportar.
- Lá isolada a sua casa
é. Respirar ar puro e admirar a paisagem também lhe vai ser fácil, mas a casa
está desabitada há muito tempo, poderá encontrar algumas limitações ao conforto
em que terá vivido. Nada, porém, que não possa ser resolvido. Mas, acredite o
que lhe digo, os primeiros tempos não serão fáceis. O acesso também não o será, pois
se bem me recordo, existe apenas um carreiro, que deve estar em mau estado, e
que era utilizado, por uma carrocita pequena, puxada por um burro, quase tão
velho como o casal que lá habitava, e lá morreu. Não o quero desmoralizar, o
sítio é muito bonito, de verdade, mas também vai encontrar dificuldade, que não
previu. Por exemplo o abastecimento. Aqui não há rede de telemóvel. A energia elétrica
está desligada à tanto tempo, mais de cinco anos, que terá que ser feita a sua
revisão. O abastecimento de água é feito de um reservatório no telhado e, naturalmente deverá se limpo e testado.Terá a solidão como
companheira. Para qualquer coisa que precisar terá que contar comigo. E apenas
lhe posso garantir que, pela manhã eu ou o meu ajudante, passaremos pela sua
nova casa. Pode contar com a ajuda possível. Mesmo hoje, para o ajudar a
transportar as suas coisas, irei precisar da minha motoreta e do atrelado, pois
não me atrevo a utilizar a carrinha de caixa fechada com que me desloco.
Mas espere mais um pouco, logo que o
rapaz que me ajuda na loja se digne aparecer, faremos a mudança.
- Oh meu amigo, nem
imagina o meu alívio. Por isso esperarei o tempo que for preciso. Na verdade,
talvez eu tenha sido imprudente ao escolher a casa, como o refúgio que
precisava para descansar, mas agora não me resta outra alternativa que não seja
a de contar com a sua amabilidade e simpatia. Por isso lhe agradeço e esperarei
o tempo que for necessário.
- Então eu já volto. Já
agora apresento-me:
O meu nome é Manuel
Carvalho e aqui nas redondezas toda a gente me conhece pois, além de
comerciante, sou também o Presidente da Junta da Freguesia em que esta pequena
e quase esquecida aldeia está incluída.
Luís respirou fundo e recostou-se no assento. Finalmente a
aventura estaria a ter sentido numa altura em que ele já sentia alguma desalento.
Entretanto, começou a notar algum
movimento na praça, meia dúzia de pessoas que regressavam a casa depois de um
dia de trabalho no campo e dois homens, já trôpegos que aparando-se aos
cajados, caminhavam na direção do banco que ele ocupava. Luís apressou-se a
afastar a bagagem para libertar lugar para os seus novos companheiros.
Perante o olhar intrigado dos
velhotes, Luís feliz por ter encontrado companhia saúda-os com um sorriso,
desejando-lhe uma boa tarde.
Os velhotes olharam com desconfiança para
o forasteiro, e Luís apresentou-se:
- Não se admirem, sou o
vosso novo vizinho, e vou morar na casa na colina.
Os seus novos companheiros não
mostraram qualquer emoção, murmurando apenas um cumprimento que Luís nem
percebeu. Coitados, pensou enquanto os olhava com mais atenção. Viu homens
cansados, de olhos mortiços e faces descarnadas, como se aguardassem o fim.
Ficou impressionado, não deixou de pensar se
aquele retrato seria o seu espelho no futuro não muito distante. E tremeu.
Salvou-o dos pensamentos, o ruído
estridente de um motor. Era o amigo Manuel Carvalho que se aproximava, montado
na motocicleta, ligada a um pequeno atrelado, dizendo:
- Vamos embora amigo, vamos lá subir a
encosta. A casa na colina espera por si.
Enquanto o seu recente e prestável amigo
enchia o atrelado com a bagagem Luís olhou de novo para os velhos habitantes
que já conhecera, começou a recear que, para além da saudade que não morrera. A
aventura que ia iniciar lhe poderia trazer mais dor e sofrimento. A solidão
mata e ele já fizera uma parte do caminho.
Ainda estava
a viver a sentir o poema do fado da saudade, quando ao aproximar-se da cidade de Beja se lembrou
a história singular de um povo que cantava, sem música nem instrumentos e com vozes masculinas, melodias e poemas tradicionais, herança dos seus
antepassados, cuja memória se perdia no tempo.
O seu sangue
alentejano lembrou-lhe a nostalgia dos que sempre permaneceram nas suas aldeias
vilas e cidades sem nunca terem esquecido serem um Povo diferente, triste e
solidário, rebelde e imune aos atropelos que os senhores feudais os haviam
sempre praticado. Era um Povo que não se revia das doutrinas da Igreja, que noutros tempos, fora sempre uma aliada, de peso, dos donos da terra. Enquanto que a eles apenas era reconhecido o direito de a trabalhar até morrer.
A camioneta
de passageiros, velha e gasta, continuava a rolar por estradas que mais
pareciam veredas, atravessando a planície indiferente à luz do sol que crestava
o rosto dos trabalhadores.
Luís ansiava
por chegar à aldeia que havia escolhido e já se imaginava a ouvir o cantar do
Alentejo.
Como
companheiros de viajem apenas um casal de velhotes, que dormitava, e um jovem
que de sacola ao ombro regressava da escola.
Foram duas
horas de solavancos, de silêncios até que a pobre camioneta parou numa pequena
praça, que circundava um pequeno canteiro, com uma oliveira de tronco gasto
pelos anos.
Nem uma pessoa
conseguiu ver, apenas casas, poucas e pequenas, caiadas de branco e rodapés de azul
vivo. O sonho de ouvir o cantar do seu Alentejo iria morrer por ali.
Enquanto o
motorista o ajudou a retirar a sua bagagem, malas e sacos onde guardara a sua
riqueza, o casal de velhos e o jovem estudante, companheiros de viajem
meteram-se ao caminho por uma ruela próxima e, num segundo ,desapareceram.
Ficou sentado
numa parede do canteiro e à sombra da oliveira fechou os olhos e por breves
instantes, dormiu.
E foi ali,
naquela praça vazia, duma aldeia perdida, que esbarrara com o destino. Olhou
para o monte na sua frente, viu no seu alto a casa da colina. Estava no sítio
certo, aquela casa seria o seu refúgio. Só não sabia como lá chegar, nem via
caminho e, na verdade, não teria já forças para carregar a bagagem.
Estava tão
perto e ao mesmo tempo tão longe.
Desistiu de
começar a caminhada, não seria capaz de a fazer, olhou em busca de auxílio e o
melhor que encontrou foi um banco de pedra, acostado à parede de uma casa da
esquina, lugar que lhe pareceu o paraíso. O sol ainda queimava, eram duas horas
da tarde, mas o banco estava protegido por videiras suspensas que lhe davam a
sombra. Fez dois ou três transportes das malas e do resto dos sacos que
trouxera, ficou alagado em suor e deixou-se cair no banco de pedra,
aproveitando para fumar um cigarro. Tempo, era tudo o que tinha de esperar até
a aldeia dar sinais de vida.
Foi através
de uma Agência de Beja, via internet, que encontrou uma casa velha, isolada no
alto de um monte. Deixou-se contagiar com as imagens da planície alentejana,
banhada pelo sol que se estendia até onde o céu tocava a terra, naquele
horizonte feito de cor e luz e decidiu comprar a casa da colina. E até o nome
lhe trazia a paz que precisava. Quem sabe, pensou, “casa da colina” até poderia
ser o título do livro que iria escrever.
Nada mais o preocupou, nem se inteirou do
estado em que a casa se encontrava. Ficara apaixonado pela localização e tudo o
mais esqueceu. O pessoal da agência, ainda lhe dissera que a casa precisaria de
pequenas reparações, mas que seria fácil e económico encontrar quem as fizesse.
Assinou o contrato, pagou e deixou a questão
da reparação para decidir à vista da casa.
Era pouco
exigente, não queria uma mansão, uma casa de novo-rico, com uma arquitetura que
até ofenderia o lugar. Para ele, a casa seria sempre e só a casa da colina, o
espaço para aguardar com tranquilidade o fim do caminho.
Na
publicidade, e nos contactos com o vendedor, foi sabendo que a casa se
encontrava a uma distância não superior a um quilómetro de uma pequena aldeia,
onde iria encontrar mercearia, padaria, uma taberna para afogar em vinho as
suas mágoas. Aos sábados a povoação animava-se com uma feira onde poderia
conhecer pessoas simples, camponeses que aproveitavam para o seu comércio e até
alguma distração com os desafios lançados pelos habituais vendedores,
apregoando a excelência dos produtos e o seu preço de saldo. Eram feirantes
habituais em todas as aldeias, vilas e até cidades do interior cada vez mais
deserto do País e faziam parte do colorido que ainda restava no interior do
País, cada vez mais esquecido.
O entusiasmo
do vendedor apregoando a oportunidade de um bom negócio, deu para o convencer.
Um sítio calmo, onde poderia isolar-se quando lhe apetecesse, ou encontrar
alguma convivência, quando para isso estivesse disposto.
Emalou as
coisas indispensáveis, carregou-se de livros, principalmente de poesia, um saco
com os medicamentos, toda a roupa que encontrou, os sapatos que utilizava,
roupa de cama e pretendeu encheu uma mala de viagem de bom tamanho.
Enganara-se, nem metade cabia, teve que juntar mais um saco, uma mochila dos
tempos em que fizera campismo e mais dois ou três sacos com compras de
supermercado, que admitia iria precisar nos primeiros dias.
O transporte
seria um autocarro expresso que o levaria até Beja. Depois uma única ligação diária
até ao destino. Partiu de táxi até ao terminal dos autocarros e teria que
utilizar idêntico transporte da povoação até à casa da colina.
Estava tudo
em ordem, confirmou, agora era apenas o primeiro passo e o desafio de enfrentar
o cansaço dum dia de viagem.
Mas, apesar
da esperança de uns dias diferentes, havia sempre o medo da saudade. Já sentira
um frémito quando do barco em que atravessou o rio Tejo, olhou para a cidade
que iria deixar. Lisboa era a sua cidade, sê-la-ia sempre, com o rio, a luz, e
as suas colinas. Dizia adeus a Lisboa e essa seria sempre mais uma dor que o acompanharia na partida.
A camioneta
da carreira, embora com significativo atraso, acabara de estacionar no largo da
pequena povoação, algures perdida no Baixo Alentejo.
Saíram dois
miúdos, com as sacolas ao ombro, viriam da escola que frequentariam na cidade, presumiu
o desconhecido e mais dois casais curvados pelo peso da idade e pelo trabalho
de uma vida.
Ele foi o
último a abandonar o transporte, ajudando o motorista a retirar as suas coisas,
bastantes, que quase enchiam o porta-bagagens da pequena e já cansada,
camioneta.
O motorista
esboçou um sorriso, arrancou e num instante o largo ficou vazio.
No meio, sem
saber bem o que fazer, ficara o passageiro desconhecido, um homem da cidade,
que se sentia perdido, rodeado por malas e sacos que nem sabia como e para onde
transportar.
Sentou-se na
mala, puxou dum cigarro e deleitou-se com o fumo que inspirava. Estava só e
cansado. Apesar de ter tentado deixar o vício do tabaco, voltara a ele, pois
reconhecera que deixar de fumar seria abandonar um dos últimos prazeres que lhe
restariam até ao fim da vida.
Olhou para todos os lados, não viu ninguém.
Mas acabou por reparar que, não muito longe do sítio onde se encontrava, havia
uma casa com um banco corrido ao longo da parede, protegido do sol pela sombra
de algumas videiras que se estendiam por sobre uma armação feita de madeira.
Ali estava a primeira coisa boa que aquele dia lhe trouxera, um lugar à sombra.
Começou a
carregar as suas coisas e depois de três ou quatro idas conseguiu terminar a
tarefa e sentar-se no banco, encerrar os olhos e recuperar do cansaço. Já o
sabia, mas aquele pequeno esforço mostrara a sua debilidade. O corpo já não lhe
respondia como antigamente, mais o pior cansaço era a sua luta entre a mente
que resistia e a desesperança que pouco a pouco ia vencendo.
Estava um dia quente, nem uma leve aragem lhe
trazia algum descanso.
Talvez
tivesse subestimado o calor da planície alentejana quando decidira procurar um
lugar isolado e calmo, onde pudesse fazer uma vida tranquila, e eventualmente,
acabar o livro que havia recomeçado a escrever sem nunca chegar conseguir dar
corpo à história que havia imaginado. Acabar de escrever um livro, sorriu,
aquele fora o pretexto para explicar aos amigos a sua decisão de mudar de vida.
Porém a
realidade era muito diferente. Bem que gostaria de ser capaz de escrever um
livro, ou dois ou três, mais teria tempo ou talento para tal empreitada?
É que o
diagnóstico, feito após uma série de exames, confirmava que ele sofria de uma
doença incurável e já em estado avançado, pelo que a esperança de vida não
seria muito longa. O médico que lhe deu a notícia fora muito direto.
Dissera-lhe, palavras que nunca mais esqueceria:
- Meu caro,
podia arranjar promessas de que a sua doença poderá ter cura. Mas eu não
acredito em milagres embora já tenha sido surpreendido com situações
inexplicáveis. Os cuidados que o hospital lhe poderá assegurar serão, apenas,
cuidados paliativos. Pense se opta por alimentar uma ilusão ou se prefere
enfrentar o caminho, vivendo cada dia como sendo o último e aproveitar para
fazer alguma coisa que lhe dê prazer. Eu já lhe disse que devia deixar de
fumar, é verdade o fumo faz-lhe mal, mas não será também importante o alívio
que sente quando inspira o fumo do cigarro?
Mas deixo à
sua vontade. Marco-lhe uma consulta para dois meses e leva medicamentação que
deverá tomar diariamente e alguns para enfrentar dias mais difíceis. Tem o meu
telefone, utilize-o sempre que precisar de mim.
E foi assim
que Luís Freitas, quarenta e oito anos de idade, divorciado sem filhos, se
encontrou naquela praça vazia.
Cansado da
profissão que escolhera, trabalhava num serviço público sem prazer e sem
esperança de futuro, não demorou muito a escolher. O passado ficaria esquecido
na vida sem grandes memórias, o presente seria o caminho do regresso ao
Alentejo onde nascera e o futuro, bem o futuro seria o que vivido dia a dia.
Sem preocupações, sem esperanças, mas com a convicção de que seria ele a mandar
no resto da sua vida.
Com base no
relatório médico conseguira a reforma antecipada, vendeu o seu ativo, apenas um
apartamento na periferia da grande cidade, encontrou uma garagem que alugou
para guardar os livros, mais algumas recordações de família, móveis que herdara
dos Pais e só por isso lhe eram importantes e preparou a bagagem para a viagem
que tinha decidido fazer.
Guardara para
si o seu estado de saúde e mentiu para que não pudesse ver no rosto dos poucos
amigos, a surpresa e as manifestações de pesar, acompanhadas pelas palavras de
circunstância e os olhares que não gostaria de enfrentar. O pretexto era o
cansaço, a solidão e o apelo que confessara sentir para escrever um livro e foi
com a frieza de que se revestiu que se separou dos vizinhos e dos colegas.
A ideia de
escrever um livro até a ele lhe pareceu boa, por isso na bagagem juntara o
pequeno computador portátil onde iria escrevia, de vez em quando, pensamentos,
angústias e o medo de não conseguir resistir à ruína de um corpo já doente e
cansado. Mas precisava de mudar de vida. Esquecer a televisão, a leitura dos
jornais, os comentários políticos e do futebol, as intrigas entre colegas, as
traições, a eterna disputa entre os condóminos e procurar um lugar onde pudesse
conviver com o sol, ouvir o vento e o canto dos pássaros, a água das fontes e
regressar às origens. No Alentejo nascera e lá procuraria as memórias perdidas.