quarta-feira, 30 de julho de 2014

O FIM DO CAMINHO



LISBOA  

 Fora no seu País, com a sua gente, que tudo começara.

Filho único de uma família de pequenos agricultores assalariados, nem nos piores momentos, e tinha vivido alguns, sonhara, sequer, que o seu futuro iria ser o caminhar, pedindo, algumas vezes mendigando, aquilo a que ele se julgara com direito, trabalho.

Foi o que aconteceu a Eduardo Silva, um homem ainda jovem, que respondera aos anseios dos Pais, tocado pelo desafio que o seu País lançara, mais e melhor educação, que percebera que ter futuro, sem laços familiares de gente importante, sem a obrigação de escolher um partido do chamado arco da governação e ter de percorrer as ruas batendo palmas e colando cartazes, o diploma universitário seria o único meio de alcançar um lugar ao sol. E desde muito novo estudara e trabalhara para poder entrar no ensino superior.

Deixara a aldeia em que nascera, e com uma média elevada, sem dificuldade matriculou-se no curso para que sempre se julgara destinado. Corria o ano 1987, o País era membro da Comunidade Europeia, havia muito dinheiro a circular pela injeção de fundos comunitários e quase toda a gente entendeu que o passado de pobreza havia terminado.
Os Pais entregaram as suas parcas economias e Eduardo começara a frequentar a Universidade. Fora conseguindo equilibrar as suas contas, partilhando um quarto com outro colega, cozinhando as suas próprias refeições mas o dinheiro ia desaparecendo.
Para continuar a estudar precisava de encontrar um emprego em tempo parcial que lhe pudesse sobreviver. O que conseguiu aceitando um trabalho pouco qualificado mas em que recebia por hora de trabalho. Quando alguns colegas o encontraram a fazer a reposição de produtos dum supermercado numa grande superfície comercial, sentira algum constrangimento, mas depressa esquecera. Afinal ele estava entre os melhores alunos o que lhe dera conforto para enfrentar algumas piadas. de mau gosto.

Sempre julgara que a obtenção do curso justificaria no futuro os sacrifícios  que agora tinha de fazer.  As férias que nunca pudera gozar,  as amizades que não pudera partilhar, os amores que não vivera, tudo ele contabilizara como investimento que iria recuperar no final. Mesmo quando se sentira exausto, depois de serões mergulhado nos livros e aprendendo a utilizar o computador, comprado em segunda mão e pago em prestações, desenhando no excel cenários macroeconómicos, fazendo simulações sobre as curvas de rendibilidade de projetos comerciais, analisando o comportamento dos mercados financeiros, etc. nunca esmorecera. Mas no final  interrogara-se: Teria valido a pena?

Teria valido a pena os beijos que não dera, as carícias de que não sentira, as noites de amor que ambicionara e apenas conseguira ocasionalmente e sem paixão? Em alguns momentos duvidara mas com o diploma na mão, tudo esquecera.
Chegara às portas do futuro, agora era só entrar. E então no silêncio do seu quarto gritara:  Sim valera a pena, teria que valer a pena.Tinha vinte e três anos de idade e uma vida para viver.

Depois foi o começo das dúvidas. Respondera a centenas de anúncios de trabalho para o qual julgava estar preparado e continuara sem resposta. O emprego no supermercado, fora e continuava a ser o seu dia-a-dia.

Então acreditara precisar de mais formação. E foi num mestrado que aplicou mais trabalho.
Enganara-se, o mestrado fora uma desilusão e não lhe acrescentara saber, apenas mais uma adenda ao currículo. Porque as oportunidades de mostrar o resultado do seu estudo foram poucas e para os lugares disponíveis encontrara interesses e valores mais altos do que o mérito académico.

Tinha vergonha de olhar os Pais que tudo lhe haviam dado. E no final restara-lhe a saudade pois que eles velhos e doentes, esquecidos no mundo em que sempre viveram, esmagados pelo trabalho e pelas privações, não resistiram a mais um Outono da vida. E partiram, de mãos vazias como sempre. E Eduardo ficou só. Guardara bem fundo as recordações, e como herança única  os valores da amizade e o respeito pelo trabalho que os Pais sempre lhe tinham ensinado.

Apesar dos momentos difíceis que a vida lhe destinara ainda não perdera a esperança. E continuara a enviar currículos nos quais tentava mostrar o conhecimento duma formação que considerava responder aos desafios do momento. Mas havia qualquer coisa que ele ainda não percebera. Até que um dia, durante uma entrevista para trabalho especializado na sua área, o gestor dos recursos humanos que o recebera, apercebendo-se da sua desesperança, lhe apontara a falha, dizendo-lhe:

- Você preenche todas as condições que o Banco exige para uma carreira normal. Mas tem que olhar mais além, falta-lhe iniciativa e sobretudo ambição. No mundo da finança isso é o mais importante. Ambição é aquilo que terá de mostrar. Não esqueça que no final será avaliado pelos resultados e não pelo seu saber académico. No seu percurso irá encontrar muitos tão preparados como você e para os vencer terá que ousar ir mais além.

 Eduardo aprendera a lição e logo vira o resultado. Corria o ano 2003 e foi selecionado para trabalhar num Banco de pequena dimensão, mas que ambicionava crescer, inovando nos produtos com que  apostava  para conquistar quota de mercado.
E o jovem sabedor mas cauteloso, arriscou a transformação. E teve sucesso. Passou a integrar uma pequena equipa de jovens ambiciosos, dirigida por uma mulher bonita e insinuante. E durante dois anos a equipa fez progredir o negócio, com operações cada dia mais sofisticadas.

 Eduardo entregou-se ao trabalho e deixou-se enfeitiçar pelos olhos de Beatriz, a chefe de equipa. A sua juventude era um valor que Beatriz, mais madura e experiente iria capturar.

E os dias foram rosas. Eduardo estava feliz numa união que lhe dava prazer. Beatriz sabia ser terna quando ele a procurava e ele entregava-se com paixão.  

Tudo se combinava para a tempestade perfeita.

 



 

domingo, 27 de julho de 2014

O FIM DO CAMINHO



 REQUIEM

Deitado na soleira duma porta, de um edifício decorado por desenhos e cartazes apelando à revolta, insultando os políticos e os governantes, emblema característico daqueles bairros sociais, todos iguais, todos colmeias com famílias empacotadas, projetados e construídos para afastar das zonas nobres da cidade, todos aqueles que representam, aos olhos da classe mais requintada, a pobreza que se não quer ver.

O personagem que chegara pela noite, deixara-se cair naquele lugar sem força para seguir caminho. Abandonado ao seu destino, percorrera quase todos os bairros dos subúrbios de Paris. Os bairros eram sobretudo um microcosmo, onde se vivia em conformidade com as raízes culturais das raças que haviam feito deles o seu mundo. Nalguns os habitantes eram sobretudo negros, emigrantes legais ou clandestinos, fugidos da pobreza e da guerra do seu País natal, antigas colónias da áfrica francesa, outras eram magrebinos mais inconformados e mais permeáveis ao fundamentalismo do Islão. Em algumas ilhas começaram a surgir emigrantes dos Países mais pobres da Europa, que haviam chegado cheios de sonhos e vivendo esperanças, que na realidade eram utopias, e agora sentiam serem também um abcesso incómodo. A miopia dos Europeus que constituíam a classe dominante, Alemães e alguns satélites, estava pouco a pouco a alimentar dor, sofrimento e revolta. Faltaria apenas acender um fósforo para que tudo a que a Europa havia representado se transformasse numa fogueira sem controlo.

 Aqueles bairros representavam um perigo, mas era assim que a Europa, mãe da civilização moderna, tratava os que nela procuravam o pão de cada dia.

O personagem, um vencido pela vida, que jazia numa soleira de uma porta de um bairro da periferia de Paris, sofria duplamente. Europeu por nascimento e cultura, havia mergulhado na realidade. E como ela o tinha destruído.

Estava no fim do caminho e logo na cidade que para ele representara o seu sonho. Sim porque Paris, a cidade da cultura, dos museus, dos palácios, dos monumentos, das avenidas com lojas de luxo, era reservada para os turistas. Os Parisienses da classe média e da alta burguesia tinham os seus bairros com condomínios de acesso reservado.

E Eduardo, que via a França com os olhos de um poeta apaixonado, chegou ao centro da cidade feito um mendigo. Já percorrera quase meia Europa e passo a passo foi ficando mais pobre, mais desiludido. Circulara por algumas Avenidas da cidade rica, estendera a mão a pedir ajuda mas pouco ou quase nada recebeu, nem uma palavra. Apenas sentiu a desconfiança e indiferença, e ouviu comentários que não pensara ouvir.

Decididamente o seu lugar não era ali. Sentiu-se escorraçado, escondeu-se para dormir num qualquer beco mal-afamado e dia após dia, noite após noite, cheio de frio e de fome, foi abandonando a cidade e entrando nos bairros periféricos.

E por ironia, ou talvez não, fora no meio daquela gente pobre e negligenciada que afinal encontrara uma mão amiga que lhe estendera um pão, uma sopa, algumas moedas e roupas velhas com que se protegia do frio da noite.

E ele já não estendia a mão pedindo ajuda. Para ele tudo iria terminar, naquela noite fria em que desistira de viver. Cerrou os olhos e aguardou a chegada do último suspiro. Nada mais podia fazer do que deixar-se levar na barca de Caronte, ou na camioneta de recolho de lixo. Pouco lhe importava. A morte não seria pior do que o inferno e esse, ele já o havia experimentado em vida.

Como uma folha que cai, levemente suspensa no ar, assim sentiu que a paz ia chegar. Agora que tudo morrera,  até as memórias que teimosamente haviam resistido, estavam cada vez mais distantes perdidas num recanto de um cérebro esgotado. Os olhos teimaram em ficar abertos e assim ficariam até que alguém tivesse compaixão e os fechasse. Para ele tudo acabara. Era o fim, foi o fim da viagem.