segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

O DESPERTAR


A DOR

 

Escrever, ainda que sem grandes cuidados, pode ser um exercício perigoso.

Comecei, tentando ganhar tempo a que uma situação de grande fragilidade física pudesse ser a antecama para a viajem que todos teremos que fazer.

Ganhar tempo porque, lera há muitos anos atrás, e não tinha esquecido, que na vida um homem deveria preencher três desígnios: fazer um filho, plantar uma árvore e escrever um livro. E na verdade ainda me faltava cumprir o último.

Escrever e editar um livro que pudesse ser lido com prazer pelo público, quer fosse um romance, talvez uma peça de teatro ou um livro de poesia. Mas não tinha capacidade para um projecto de tal importância. Fiquei-me por apenas um livro com histórias desligadas, mas que, de alguma forma, representassem o meu eu.

 Escrevi muito, nem sempre bem, mas escrevi e juntando os pedaços mandei editar o livro. Foi um gesto de desespero e respirei de alívio ao ver em letra impressa os textos que escrevera.

Mas reler o livro trouxe-me de novo à realidade. Era apenas um amontado de histórias, nada semelhante ao que gostaria de ter escrito mas não fui capaz.

 Para meu descanso ou como um pedido de perdão, deixo-vos um poema de Bocage, poeta lírico, cuja obra ficou entre as mais importantes da literatura Portuguesa.

 

 

 


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              Nascemos para Amar


 

Nascemos para amar; a Humanidade
Vai, tarde ou cedo, aos laços da ternura.

Tu és doce atractivo, ó Formosura,
Que encanta, que seduz, que persuade.

Enleia-se por gosto a liberdade;
E depois que a paixão na alma se apura,
Alguns então lhe chamam desventura,
Chamam-lhe alguns então felicidade.

Qual se abisma nas lôbregas tristezas,
Qual em suaves júbilos discorre,
Com esperanças mil na ideia acesas.

Amor ou desfalece, ou pára, ou corre:
E, segundo as diversas naturezas,
Um porfia, este esquece, aquele morre.

BOCAGE

 

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quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

PESADELOS

O INVERNO DO NOSSO DESCONTAMENTO

 

Não queria acreditar, mas as memórias mais antigas, surgiram com tantos pormenores que, via o passado com os olhos do presente.

Não era contudo um bom sinal. Porque enquanto me lembrava de factos da minha infância esquecia as notícias dos dias recentes. Seria uma recusa em enfrentar ou sequer tentar compreender, que o tempo mudou. E mudou tanto que dói pensar que 5% da população mundial controla mais de 90% do dinheiro e dos recursos.

Custa-me e crer que o mundo hoje é mais perigoso do que o tempo em que nasci, o verão de 42. Talvez por me recusar a aceitar essa verdade, fujo e regresso ao passado.

O pesadelo nos dias sombrios de miséria e desespero, cheios de raiva, a recusa de ouvir os discursos medíocres e voltar a gritar BASTA de mentiras e de promessas vãs, passaram a ser um suplício de cada dia. Anseia-se pela noite e pelo regresso ao passado. Os sonhos comandam a vida, já dizia o Poeta, pois são a barreira que impede a passagem à loucura.

E por isso o irmão do meio voltou à casa onde nascera e vivera a sua juventude.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

SONHANDO


VOAR NO TEMPO

 

A próxima quarta-feira vai ser mais um dia de consulta no hospital, lembrava sem inquietação, ou assim queria transparecer. Na verdade seria uma viajem igual a tantas que já fizera mas com o aproximar da noite o estado de espírito ia mudando.

E a noite era, normalmente mal dormida. O sono era agitado e partilhado entre dúvidas e certezas, entre coragem e medo.

Nesta noite fria sentiu um desafio, uma voz que lhe martelava o cérebro segredando-lhe:

-Vem, vem voar no tempo.

E para afastar os pesadelos começou a procurar o tempo que quereria recordar. E na sua memória o momento, longínquo, em que escolhera foi o de voar no tempo até à primeira vez em que estivera num hospital. Começou a desembrulhar recordações que a família lhe fizera conhecer.  E sentiu com saudade o carinho das palavras e das carícias, cheias de ternura.

Era o bebé da família, fazia companhia à Mãe, que estava internada, dela bebia o leite da vida.

Tinha meses de vida, nem sempre muito saudável mas, internado no hospital da Misericórdia da sua terra natal, aprendeu o valor das palavras carinhosas.

 E no sonho era tão vivo, que até acabou por lembrar a enfermeira que fora como um anjo para si e para a Mãe doente. Chamava-se Eduarda, mas para a criança ela passou a ser a DADA, e o nome ficou para sempre na memória das pessoas que ela ajudou.

A Mãe recuperou a saúde, regressou a casa onde o Pai, que trabalhava de dia ou de noite, os aguardava acompanhado pela irmã primeira, bonita aos oito anos de idade, como bonita seria sempre.

E depois da tempestade, veio a bonança trazida numa irmã que foi fechar o ciclo da vida, naquela família pobre em termos materiais mas rica em afetos. E ele passara a ser, “o irmão do meio”.

 E o sonho acabou, a ida ao hospital deixara de ser uma preocupação.

Levantou-se feliz, recordara alguns dos ausentes mais queridos e grato pela ventura de continuar a ser “o irmão do meio”.

 

 

 

sábado, 28 de janeiro de 2017

O V ERÃO DE 42


UM SONHO ... CONTADO

Por vezes, agora com mais frequência, sonho o passado longínquo. E revejo-me da personagem duma criança acabada de nascer. Será estranho, sinto isso, por vezes inquietante, mas poderá ser um sinal. Rever momentos duma vida preenchida e reencontrar as pessoas mais importantes poderá significar o princípio e o fim.

Era um ano difícil, duro, como todos eles, naquele tempo.

Deitada na cama de uma casa grande e pobre, perdida nos arredores de uma pequena cidade do Alto Alentejo, uma mulher ainda jovem sofria as dores do parto. Era uma mulher frágil mas determinada e dona de uma personalidade sensível mas lutadora. A seu lado uma vizinha habituada à função de parteira, tantas vezes chamada para aqueles momentos, onde uma vida se ganha ou se perde.

Esta mulher ganhara a experiência por ter assistido a tantos momentos de alegria e, também, alguns momentos de dor. O seu saber de experiência feito permitia-lhe dirigir o trabalho de parto, orientando os esforços da futura mãe e ajudada por outras mulheres mais jovens e da família da parturiente.

Como era afinal naqueles tempos, nascer ou morrer era sobretudo uma força do destino. O recurso ao hospital era um privilégio.

Daquele dia do verão de 1942, enquanto mulheres ajudavam a nascer, por este mundo milhares de pessoas morriam cada dia, vítimas inocentes duma guerra de genocídio e de interesses comerciais e financeiros. Como, aliás, todas as guerras conhecidas. E foi no calor daquele longínquo verão, que a criança nasceu. A parteira cortou o cordão e olhando a mãe dorida, anunciou:

- Vizinha é um menino, frágil mas que irá crescer para sua alegria!

E o sonho acabou.

O despertador tocou, era hora de levantar. A alegria de ter revivido os momentos em que esteve nos braços das pessoas mais importantes da sua vida, e que tantas vezes ouvira contar, tornaram-se uma força que o acompanharia por mais um dia…