Antes de abrir
a caixa sentiu que um relâmpago lhe iluminava a memória. Sim, admitia
saber agora quem era, reconhecer o seu passado. Era ainda algo confuso,
nebuloso, vagueando entre amores e traições. Estava cansado, adivinhava que a sua
vida não deveria ter sido fácil, tinha cada vez mais a consciência de que
escolhera o caminho mais arriscado, e pagara por isso. As
cicatrizes no corpo e as marcas na alma eram a prova de que a sua vida não fora
pacífica.
Cerrou os
olhos, pareceu-lhe ouvir gemidos e gritos de terror. Alguém pedira ajuda e no
íntimo desejava ter sido o herói salvador. Mas talvez não tivesse sido assim,
pelo menos algumas vezes sentia que o seu papel fora mais de carrasco. Isso era de arrepiar.
Precisava
abrir a caixa e enfrentar os demónios ou as recordações que ela guardaria.
Admitiu, por momentos, esquecer a caixa com os segredos ali guardados. Sim
pensou, seria como um renascer sem comprometimentos, amizades, amor e ódios, olhar
o futuro começando do zero. No fundo sentia que nada o ligava ao passado. Família,
amigos, amores, tudo fora um equívoco, nada restava.
Hesitou, mas
como sempre fizera, deixou-se encantar pelo canto da sereia que o desafiava a
continuar, e abriu a caixa, convicto que seria capaz de enfrentar os erros, as
mentiras em que a sua vida fora pródiga. A aventura, como todas, teria um fim.
Que estava disposto a enfrentar com o último olhar.
Foi com a mão
firme que abriu a caixa. Pó, muito pó, pedaços de papel escritos numa
caligrafia que, de repente, reconheceu como sua. Eram apontamentos escritos sem
critério e sem regras, aliás como se lembrava, costumava escrever. Só ele seria
capaz de decifrar os textos que traduziriam o caminho percorrido. Algumas
páginas haviam sido arrancadas do caderno e estavam perdidas no meio do pó. Mas
encontrou dinheiro, notas de cem dólares americanos bem distribuídas por maços,
ligados por uma cinta dum Banco. Eram novas e folheando-as calculou que trouxera
com ele uma pequena fortuna. Aquele dinheiro fez-lhe um calafrio. Seria a paga
de algum serviço que prestara ou o sinal para um crime encomendado e que teria
de consumar, ali, in América.
A luz que
lentamente inundara o espaço onde se encontrava, dera-lhe esperança para
encontrar o caminho.
Foi a mudança
que fez com o que tivesse recuperado forças ao mesmo tempo que lhe desanuviava
os temores de uma noite de pesadelo.
Estava agora
mais desperto mas persistia a dúvida principal. Não sabia quem era e porque
estava ali.
Levantou-se e
com um andar ainda pouco seguro caminhou para uma porta envidraçada, escondida
num canto do que, afinal, reconhecia como um pequeno e pobre quarto de hotel.
Era a entrada para uma simples mas limpa, casa de banho. Entrou e a primeira imagem
que viu, foi a refletida no espelho pendurado por cima do lavatório. Ficou de
olhos parados e mais uma vez o único sinal de vida foi-lhe dado por uma lágrima
que lhe escorria pela face, coberta por uma espessa barba, grisalha e descuidada.
E viu o rosto magro e macerado por tanto sofrimento.
Era o retrato
dum desconhecido, que lhe lembrava um sem-abrigo abandonado pela sociedade. Aquele
vagabundo sujo e dorido, não podia ser o que parecia. Não, ele sentia que qualquer
coisa estava errada, que não se enquadrava naquele filme, nem nas difusas memórias
que ainda sonhava ter.
Desviou o olhar, fixou-se no recanto envidraçado do chuveiro.
Abriu a torneira, o som da água a correr deu-lhe alento. Era uma música de que
já nem se lembrava e nem hesitou, deu um passo em frente e deixou que a água
lhe lavasse o corpo e a alma.
Era água fria, mas sentia-a como um bálsamo que pouco a pouco
lhe trazia tranquilidade. Arrancou os trapos com que estava vestido, sentiu o
corpo nu e frágil, cheio de cicatrizes. Os pulsos marcados por sinais de prisão
e o peito com queimaduras feitas com cigarros.
Sentiu um arrepio, não de medo mas de revolta. Fora mantido
preso e torturado, onde e por quem, não sabia, mas perceber a razão seria o objetivo da vida que
agora iria recomeçar.
Com mais energia e com uma centelha de raiva, embrulhou-se numa
toalha e percorreu o quarto. Num recanto encontrou uma mochila, como a que se
recordava de ver nos ombros dos soldados em combate. Era grande, estava cheia.
Quem sabe, estaria ali guardado o segredo da sua vida.
Abriu-a e encontrou uma dádiva. Um pequeno estojo com máquina de
barbear e lâminas, mais um pente e um estojo de tesouras. Também roupa limpa
que retirou e espalhou pela cama. No final foi uma caixa de cartão, amarrotada que
lhe despertou a atenção. Segurou-a com força mas, ao mesmo tempo que sentia um
frémito de emoção. Estariam ali as respostas às suas dúvidas e tantas eram?
Sentiu medo, hesitou sim, como se fosse abrir a caixa de Pandora.
A noite fora um pesadelo, um delírio de formas desconhecidas, rostos
ameaçadores, olhos que brilhavam como num reino de sombras e que o
enlouqueciam.
Tentou abrir os olhos, mas
a escuridão era como se fosse um precipício ameaçador. Não sabia onde estava,
como ali tinha chegado e pior, pior que tudo, nem sequer sabia quem era.
De olhos teimosamente
cerrados, tentava pôr ordem naquela cabeça que ameaçava estalar. O silêncio era
absoluto, a sua respiração e nada mais. Tentou mover uma mão, depois um braço,
uma perna e parou. As dores eram fortes como se todos os ossos estivessem
partidos. Com todas as forças de que foi capaz, enfrentou as dores e gemendo
teimou em abrir os olhos. E então um pequeno raio de luz, muito ténue, deu- lhe
esperança, deixava adivinhar uma janela.
Esqueceu as dores, o medo
do vazio e levantou-se. Cambaleando ensaiou um pequeno passo, depois outro e
deixou-se cair de joelhos vencido pela dor. E chorou.
Mas não desistiu, rastejou,
procurando a parede e a janela. Demorou uma eternidade, mas conseguiu
levantar-se com o apoio da parede lisa e fria. Ficou exausto, o frio era agora
uma mistura de tremores e de suores. Mas conseguira ficar de pé.
O raio de luz aumentou de
intensidade e foi-lhe mostrando o lugar onde estava. Percebeu a existência de
uma cama pequena, ao lado uma mesa com candeeiro e lentamente, com os braços
estendidos conseguiu caminhar até à cama onde se deixou cair como um farrapo
quase inerte. Foi com mais um tremendo esforço que procurou chegar ao alcance
da pequena mesa e num último esforço encontrou o interruptor e acendeu a luz. E
ao ver dissipadas as sombras no pequeno espaço, sem saber porquê riu ou chorou,
não era importante.
Finalmente podia ver que o
pequeno quarto onde travara uma batalha e conseguira vencer.
A luz trazia-lhe a memória
de outra vida, de outros momentos. Mas estava perdido e receava o futuro.
Melhor seria terminar tudo, dar um grito e partir. A dúvida era uma dor que lhe
corroía o peito. Desejara o fim mas o instinto de sobrevivência fora mais
forte.
Agora, sentado na beira da cama olhava em
redor, vasculhando todos os recantos, como um polícia à procura das provas de
um crime.
Hesitações, desespero, fúria tudo isso sinto cada dia que passa.
- Hesito porque tenho medo de me repetir, de dizer coisa nenhuma, uma consequência óbvia que nasceu do percurso que comecei e tentei seguir, sem estar preparado para a caminhada. - Desespero, porque a mão me treme e as ideias, que na minha solidão, são a razão dum dia que se repete, não as posso alinhavar no caderno que me acompanha, pois o resultado é uma escrita ilegível. Afinal as ideias não resistem à tremura. - Fúria, porque a lentidão com que consigo teclar, me faz cometer erros, apagar o que não quero e deixar-me refém dos humores duma máquina que foge, sempre fugiu, ao meu domínio.
Apesar das dificuldades que cada vez se tornam mais evidentes, preciso de continuar a escrever sob pena de a vida ser, apenas, uma sequência de dias, sempre iguais. Se alguém me ler, não dê importância aos meus tropeções. Eu apenas me tento manter à tona de água, bebendo poesia e aguardando o próximo equinócio.
EQUINÓCIO
Chega-se a este ponto em que se fica a espera Em que apetece um ombro o pano de um teatro um passeio de noite a sós de bicicleta o riso que ninguém reteve num retrato Folheia-se num bar o horário da Morte Encomenda-se um gin enquanto ela não chega Loucura foi não ter incendiado o bosque Já não sei em que mês se deu aquela cena Chega-se a este ponto Arrepiar caminho Soletrar no passado a imagem do futuro Abrir uma janela Acender o cachimbo para deixar no mundo uma herança de fumo Rola mais um trovão Chega-se a este ponto em que apetece um ombro e nos pedem um sabre Em que a rota do Sol é a roda do sono Chega-se a este ponto em que a gente não sabe (David Mourão-Ferreira) Ou em alternativa fazer uma viagem, quem sabe, procurar alguém que, por erro ou esquecimento, se deixou para trás. Eu chorei, aliás choro com facilidade se a história é de crianças ou de velhos, mais ainda porque o filme de que vos deixo algumas cenas, é uma bela poesia de amor, contada pelo talento de David Lynch. E nos revela um enorme ator, que nos deixou pouco tempo depois de completar a sua simples viagem.
Dizem as estatísticas que o País perde mais de dez mil pessoas por mês, que vão em busca do futuro. Serão sobretudo jovens, aqueles que se recusaram a dobrar os joelhos e escolheram partir. " Partir é morrer um pouco", escreveu o Poeta, mas por entre as lágrimas da despedida haverá esperança. Fica a dor da partida, porque partir tem sido o nosso fado. PARTIDA I Como uma flor incerta entre os teus dedos Há harmonia de um bailar sem fim, E tens o silêncio indizível dum jardim Invadido de luar e de segredos.
II Nas tuas mãos trazias o meu mundo, Para mim dos teus gostos escorriam Estrelas infinitas, mar sem fundo E nos teus olhos os mitos principiam.
Em ti eu conheci jardins distantes E disseste-me a vida dos rochedos E juntos penetrámos nos segredos Das vozes dos silêncios dos instantes.
III Os teus olhos são lagos e são fontes, E em todo o teu ser existe O sonho grave, nítido e triste De uma paisagem de pinhais e montes. (Sophia de Mello Breyner Andresen) Nós que que ficamos, de olhos secos e vazios e aguardando a passagem da barca, relembraremos as injustiças de um mundo doente e gritaremos, com a voz sumida pelo desespero, "não voltem", esqueçam este País de servos. O futuro já não mora aqui.
De repente a inquietação voltou a martelar os meus sentidos. Andava perdido nos sonhos, distante do mundo mas hoje acordei. E voltei a sentir o desejo de gritar - BASTA! Se eu pudesse cortar as amarras desta " Jangada de Pedra", como lhe chamou o José Saramago, deixaria que as ondas nos levassem para o mar ao encontro do passado distante. E assim navegando, salgando a ´ água com as lágrimas deste Povo triste, dos dias sem futuro, talvez os deuses nos guiassem para longe do sofrimento e da angústia. Porque fechamos os olhos durante demasiado tempo e deixámos que o país fosse capturado pela mediocridade ao serviço dos interesses escondidos numa qualquer "off-shore". Não custa constatar que este país não é para velhos, os captores se encarregam do o fazer lembrar a cada dia que passa mas, pior ainda, este país sem futuro, também não é para os novos. Ficará um país de gente sem vida, sem orgulho, sem amor, sem esperança.
E este grito, esta agonia é a revolta que encontrei num poema, dum Poeta esquecido, como tantos mais.
De Sebastião da Gama
Meu país desgraçado!...
E no entanto há Sol a cada canto
e não há Mar tão lindo noutro lado.
Nem há Céu mais alegre do que o nosso,
nem pássaros, nem águas...
Meu país desgraçado!...
Porque fatal engano?
Que malévolos crimes
teus direitos de berço violaram?
Meu Povo
de cabeça pendida, mãos caídas,
de olhos sem fé
-busca, dentro de ti, fora de ti, aonde
a causa da miséria se te esconde.
E em nome dos direitos
que te deram a terra, o Sol, o Mar,
fere-a sem dó
com o lume do teu antigo olhar.
Alevanta-te. Povo!
Ah!, visses tu, nos olhos das mulheres,
a calada censura
que te reclama filhos mais robustos!
Povo anémico e triste,
meu Povo sem forças, sem haveres!
-olha a censura muda das mulheres!
Vai-te de novo ao Mar!
Reganha tuas barcas, tuas forças
e o direito de amar e fecundar
as que só por Amor te não desprezam!
Porque nos queixamos, porque me queixo, se afinal somos apenas vítimas da nossa própria cobardia? E a minha geração é a responsável! Por isso, viver amarrado é o nosso calvário. Temos que pagar a conta.
Hoje dia 20 de Agosto,
vou falar de pessoas. De uma pessoa que convive comigo todos os dias e as noites, que chora e ri, que sonha e não se esquece da vida.
Certo que não tenho a certeza de a conhecer em
toda a sua dimensão, pois muitas vezes o seu pensamento até a mim me surpreende.
É uma pessoa singular,
aquela que naquele dia, muitos anos atrás, abriu os olhos e chorou.
Bom sinal, disse a
velhota que se encarregava de assistir aos partos, logo após ter cortado o
cordão umbilical.
Talvez à experiente
parteira tivessem tremido as mãos, reumático certamente, pois para que a
criança que naquele dia, pelas nove horas da manhã, se amamentou do leite da
sua mãe, ficou de tal maneira ligada que sofreu na vida as dores e as alegrias
da Mãe, como se o cordão umbilical os tivesse mantido unidos pela vida fora,
enquanto a partilharam.
E a criança que nasceu
naquele verão do ano de 1942, é hoje um velho que vive dos sonhos. Mas que hoje é um homem feliz, recebe com emoção o
amor da mulher e companheira de uma vida e do filho que é o seu orgulho.
Porque hoje é dia de festa!
Ele o irmão do meio,
ouvirá as palavras bonitas das Irmãs, das afilhadas, sobrinhos e seus
descendentes, porque aquele dia, aquele verão de 42 foi o início da viagem. E beberá o vinho saudando ao outros familiares que vivem no outro lado do mundo;
E lembrará os amigos que resistem, tanto tempo passado. Mas a amizade não tem tempo.
Para recordar, dará um pequeno
(?) salto para o ano de 1971, em que foi produzido o filme “ O Verão de 42”.
Sim aquele verão foi o argumento de Herman Raucher, para a realização de Robert
Mulligan e com a bela música de Michel Legrand.
O suor escorria pelo corpo deitado
na cama. Era um suor frio que gelava o corpo e a que não conseguia resistir.
Sentiu um leve ruído de passos de alguém que se aproximava e tentou abrir os
olhos e encarar a figura que adivinhava, se estava a inclinar sobre o seu
corpo. Mas os olhos ficaram cerrados. Queria afastar a sombra que pressentia,
mas ficara imóvel, as mãos não respondiam ao apelo do cérebro e as pernas
estavam paralisadas. Deixou de lutar e aguardou o seu destino.
Até que a campainha do despertador
soou no silêncio do quarto, e lhe afastou as nuvens em que sentira perdido.
Respirou fundo, afinal fora apenas um pesadelo.
Mas já não conseguiu voltar a
dormir. Não era habitual sofrer aquele tipo de sonhos e acreditava que aquele
teria de ter alguma razão. Precisava aclarar as ideias e descobrir a anatomia
do pesadelo que lhe roubara uma noite tranquila.
E de repente foi-se lembrando.
Tudo começara, acreditava agora,
quando na noite anterior estivera algum tempo no computador pesquisando o que a
internet lhe oferecia sobre um dos seus ídolos de juventude. Procurara Charlie
Chaplin e o filme “Luzes da Ribalta”. Vira algumas imagens, deliciou-se com o
tema musical e, depois viu algo que não gostou. Tinha uma admiração enorme pelo
grande Chaplin, que tantas vezes o fizera rir e chorar e sofreu ao ver a
apresentação de um velho já senil, agradecendo uma homenagem da Academia de
Hollywood. Não aquele ator que fora proscrito durante o período negro do
senador Mccarthy, não podia ser o seu ídolo.
Mas para reforçar a raiva lembrou-se
de tantos escritores, realizadores e atores que também tiveram que depor
perante a famigerada Comissão do Senado, forçados a denunciar amigos ou apenas conhecidos,
que tivessem em algum momento expressado atitudes o tivessem assistido, a uma
que fosse, reunião do Partido Comunista Americano.
E um dos nomes que lhe veio à
lembrança foi o do escritor e realizador Dalton Trumbo, uma das personalidades
mais citadas quando se analisa o período negro da História dos EUA. E lembrou,
sobretudo, o filme que uma vez vira e jurara não voltar a ver. O livro, o filme
de Dalton Trumbo “Johnny Got His Gun”, apesar
do esforço que fizera para esquecer, ficara guardado algures num recanto do
cérebro e fora por isso, o catalisador do pesadelo.
Bem, mas hoje esquecido os maus
momentos da noite, havia que encontrar um filme protagonizado por um ator que
também tivesse tido os seus problemas com a referida comissão de caça às
bruxas. O ator escolhido foi Sterling Hayden e o filme, um clássico dirigido
por Nicholas Ray. Escolhi “Johnny Guitar”. Fico tranquilo e certo que,
esquecendo os parágrafos anteriores irão apreciar, como eu, as imagens e a
canção tema do filme, vivida na bonita voz da Peggy Lee.
Quando no silêncio da noite, os
sonhos e as recordações se acotovelam tentando ocupar o primeiro lugar,
torna-se difícil escolher um tema. As recordações da infância, criança de pé
descalço, correndo por entre as pedras do campo onde nasci, ou as memórias da
adolescência despertando para o mundo, lendo e ouvindo histórias fascinantes,
são momentos que não se esquecem.
Neles enriqueci as minhas memórias,
neles construí os meus sonhos.
Todavia, por vezes basta um pequeno
episódio, por vezes quase sem relevância, para ganhar o espaço para uma pequena
história.
Foi já no decorrer do final dos anos
noventa, que esse episódio teve lugar.
Por razões profissionais,
desembarquei com outros colegas, na Sicília, a ilha abandonada entre os três
mares, berço de civilizações, tema de tantos poetas e romancistas e sinónimo de
família dedicadas ao crime. E a cidade era a mártir Messina, vítima da guerra e
do terramoto que ainda deixara marcas.
No final das reuniões, o Advogado
que nos dava assessoria, um velho professor Universitário, acompanhou-nos ao
aeroporto, utilizando caminhos secundários para nos mostrar a dureza dos
montes, os rios de lava negra que a última erupção do Etna havia semeado, e ao
longe o vulcão, que como ele nos dizia, parecia estar de mau humor.
Os Sicilianos, acrescentou o
Professor, embora habituados à rudeza da paisagem, não resistiram ao apelo da
emigração, partindo aos milhares, vendendo tudo o que possuíam, até a alma.
Esta pequena conversa seria para
esquecer. Mas por ironia do destino, na noite em que regressei a casa, passou
na Televisão um filme que me deixou atento. Era um filme dirigido pelo Giuseppe
Tornatore, ele mesmo um realizador siciliano, que já havia surpreendido com um
filme tão belo, que era um hino ao amor, à amizade e ao cinema. Claro, falo do ”
Cinema Paradiso”.
E foi com esperança que assisti,
vencendo o sono, ao filme “ L’Uomo Delle Stelle.
E este é o filme que vos deixo. É um
filme onde até os risos sabem a fel, onde a pobreza iguala a rude paisagem das
montanhas. É um filme que faz doer.
O tremor das pernas adormecidas, por
horas sentado no sofá, revivendo os sonhos de juventude, fez com que chocasse
com uma mesa de apoio derrubando um livro.
Era um livro que começara a ler,
mais um livro sobre a segunda guerra mundial de um autor que não conhecia,
Antony Beevor.
Começara a ler e parara na introdução.
Porque escrevia o autor:
” Em Junho de 1944, um jovem soldado
asiático rendeu-se ao exército dos EUA, durante o desembarque na praia de Utah
na Normandia.
Era coreano, chamava-se Yang
Kyoungjong e atravessara meio mundo combatendo uma guerra que não escolhera.
Recrutado à força pelo exército
Japonês aquando da invasão da Manchúria, fora depois feito prisioneiro pelo
exército vermelho, combatera contra as forças do III Reich durante a sua
campanha pelo domínio da Rússia Soviética, perdera mais uma vez, foi incorporado
da Wehrmacht e para final de odisseia fora feito prisioneiro numa praia do mar
do norte e mais tarde libertado pelo exército americano. Terá morrido, algures
nos Estados Unidos.
Numa guerra que matou tantos milhões
de pessoas, um pobre Coreano foi apenas um exemplo dos horrores, podendo ser a
ilustração mais dramática da impotência da maior parte dos vulgares mortais
face àquilo que pareciam ser forças avassaladoras.”
Releu o parágrafo e não pôde deixar
escapar uma lágrima. Tantos livros que lera, tantos filmes que vira sobra a II
guerra e afinal uma pequena história lembrara-o que as guerras vitimam pessoas,
a maior parte nem o nome se conhece, pois a memória guarda e conta sobretudo as
batalhas, os momentos de heroísmo, os feitos dos grande chefes. Teve sorte o
soldado Coreano. Vindo de uma guerra quase esquecida, através meio mundo e
sobreviveu.
E recordou que vinte anos após a
captura do soldado coreano, estava ele a cumprir o seu destino, chegara o seu
tempo de enfrentar a guerra colonial.
Era um jovem de 22 anos, que sempre
sonhara com a guerra e teria agora oportunidade de a viver, com a
responsabilidade de comandar um pelotão de atiradores que treinara no campo
militar de Santa Margarida. Mas a guerra não era um desfile de vaidades. Pouco
a pouco percebeu que a guerra é sobretudo uma questão de relações humanas, de
resistência e sobretudo de sobrevivência. E os sonhos foram transformados no
compromisso de voltar com todos soldados que com ele embarcaram, o que
aconteceu.
Um dia, um amigo emprestou-lhe um
livro cuja leitura recomendou. Era um livro sobre a guerra, escrito por Norman
Mailer que também vivera a guerra do Pacífico, mas que optou por dar ênfase aos
conflitos entre soldados, crueldade com o inimigo indefeso, o desejo de
prestígio de um General precisava ganhar para pôr mais uma estrela sobre os
ombros. E o amigo concluiu: Lê, vais ver que não há muitas diferenças entre as
guerras.
O livro, “The Naked and the dead”
perdeu-se nas mudanças de aquartelamento e não o lera.
Hoje, tantos anos passados,
procurara um filme do Raoul Walsh, para ilustrar este texto mal-amanhado. Sim,
dirigido por Walsh, o diretor que só usava apàla porque tinha deficiências de visão.
E então encontrei o filme “ The
Naked and the dead” e em homenagem aos jovens do site “à Pala do Walsh” deixo
ficar o trailer do filme.
E respirando com alívio, vou
publicar, a banda sonora
Do lugar da sala, onde agora de
acoitara, tinha mais tempo para relembrar coisas que com o tempo acabara por
esquecer. A aparelhagem de som, com leitores de cassetes áudio, de CD, rádio e
sobretudo leitor de discos de vinil, sobressaía, desligada a um canto da sala.
Perdera para as modernas tecnologias mas nem sempre fora uma luta justa. Lembrava
o prazer que lhe dera ouvir com o som mais puro do vinil, as canções de Cat
Stevens, Lou Reed, Neil Diamond, Chico Buarque e Maria Bethânia, Leo Ferré, e
tantos mais discos que agora repousam ao lado da aparelhagem.
Vinte anos passados desde que escolheram
viverem na casa que os enfeitiçara.
Mas como é que tudo começara?
Uma casa grande e diferente fora a
razão principal. Da janela podiam avistar uma paisagem que por entre campos
terminava no lugar onde a margem esquerda do Tejo abraçava o mar.
Pura ilusão. As promessas dos
construtores as garantias da Câmara sobre a urbanização do espaço que estava
livre depressa se alteraram. Da construção de três ou quatro lotes, com dois
pisos acima do solo, para uma revisão para quatro e acabando em sete, sete pisos,
que foram construídos a todo o vapor não fosse algum dos inquilinos entaipados
pelos monstros, recorrer à Justiça.
Mas como ele sabia, a Justiça não
era credível, não era o caminho. E sabia bem que uma doença endémica, um vírus
que se propagava através de envelopes e malas com dinheiro acabado de lavar,
havia contaminado um País em que tudo era possível desde que se pagasse a quem
tinha poder.
Burro murmurava para si, enquanto se
aproximava da janela e olhou mais uma vez para as promessas em que acreditara.
Ali estava o resultado, e a revolta, a dor era maior pois ele sabia que a tal
doença larvar, havia crescido nos departamentos das Câmaras e se havia
propagado aos grandes negócios, aos grandes contratos. E o Povo limitou-se a
assistir ao enriquecimento de tantos.
Mas na verdade não existe corrupção
neste País. Que se saiba apenas o Vale e Azevedo foi criminalizado enquanto o
perseguido Isaltino acabou por ter que passar alguns meses na prisão mais
confortável, enquanto aguarda a oportunidade de voltar à Câmara, apenas para trabalhar
a favor do bem comum.
Mas favores pagam favores, em
dinheiro, em autorizações partilhadas, em votos, tudo é transacionável. E
olhando para a minha rua essa pequena troca é evidente.
Numa nesga de terreno que sobrava do terreno
inicialmente livre, apareceu mais um lote, tipo caixote, candidato a um
merecido prémio de arquitetura saloia, com autorização para a construção com
dois andares acima do solo. Mas, com jeito e como um favor que tereia que ser
pago, alguém autorizou a habilidade. Sim, os dois pisos aprovados mas com a
altura de três. O terceiro passou a ser interior, disfarçado por paredes de
vidro à prova de luz exterior e que servem para enganar o mais distraído.
Um dos espaços do novo caixote é sede de um
movimento, dito independente, constituído por autarcas da mesma Câmara, que não
tendo sido escolhidos pela agência de emprego, vulgarmente chamada de Partido
ou PSD, tentam voltar ao lugar que por direito lhes pertenceria. Afinal para
quem servem os amigos?
Voltou ao sofá e deixou-se invadir
por um estranho torpor. Despertou com a sensação de que alguém ligara o projetor
imaginário e que na janela mágica via cenas de um filme que recordava ter visto
nos finais dos anos cinquenta. Filme a preto e branco, o título escolhido pela
distribuidora em Portugal fora Corrupção. Do filme guardara o tema, a direção
de um dos seus realizadores preferidos, Fritz Lang, e os socos tão cheios de
raiva que o Actor Glenn Ford, fez ficar na história do cinema como um dos
momentos mais altos da sua vasta carreira.
E foi como se o som do soco do Glenn
Ford o despertasse da letargia em que mergulhara. Nos anos cinquenta não havia
corrupção em Portugal, era assunto proibido pelo fascismo, e para compreender a
doença era preciso que o cinema nos informasse. E ele começara a lição vendo “The
Big Heat”.
Entretanto mais desperto ouviu na
Televisão alguém falar sobre o assunto da moda. Já não era o BPN, isto está
esquecido, nem o BPP, pouco importante, nem as comissões com as PPP que tocaram
a toda a gente. Não agora falava-se de “swaps”.
Teve um momento de esperança. Quem sabe podia
contratar um produto derivado no género e passar a viver longe, noutro País
livre do vírus que o atormentava. Um País em que a corrupção fosse um crime e
os corruptos e corruptores estivessem na prisão. Difícil? Só se for um “swap”
tóxico.
Ai, eu que comecei nas recordações e
acabei falando de política. Sai um soco para mim.
Foi um gesto sem explicação que ao
entrar na sala grande, o levara a escolher outro lugar. Deixara o cadeirão do
costume, onde se habituara a ler o jornal, olhar a televisão e esquecer os
sonhos. Era o seu lugar de conforto, protegido por livros que queria reler e
DVD de séries de culto que revia uma e outra vez.
Mas foi naquele dia de um princípio
de verão algo tímido, onde o sol teimava em se esconder nas nuvens que passavam
no horizonte, um dia sombrio e triste, que trocara de lugar e, sem saber
porquê, se sentara num sofá virado para a janela.
Estava cansado, desanimado e vencido.
Fechou os olhos, e sentiu que a aquela sala mudara. Ou fora ele que pela
primeira vez a olhara com outros olhos? Algo o havia conduzido àquele sofá onde
se sentou pela primeira vez depois de tantos anos.
De repente reabriu os olhos e ficou
com eles fixados na janela. Afinal, apenas conseguia ver a copa de algumas
árvores que baloiçavam ao sabor do vento, as nuvens que se dirigiam, apressadas
para sul. Pouca coisa afinal, mas voltou a olhar mais longe, e esbarrou com os
blocos de apartamentos do outro lado da avenida, belos exemplares da
arquitetura nacional, idealizada por construtores civis e aprovada pelos
técnicos Camarários a troco dos envelopes do costume, e que conseguiram
destruir uma parte da cidade e dar corpo às cidades dormitórios da periferia,
onde tudo ficara igualmente feio.
Fixou-se com mais atenção dos
estendais de roupa que adornavam os apartamentos. Sim nas janelas e varandas
não vira flores, apenas roupa estendida secando ao sol. Era um espetáculo pouco
atraente que não justificava, sequer, um olhar. Todavia, naquele dia, por entre
as nuvens fixou-se num estendal quase vazio. Nele só viu uma peça de roupa
feminina, um vestido vermelho, assim lhe parecia, e que esvoaçava ao vento
desafiando na outra extremidade umas calças de homem que lutavam para se
libertarem e irem ao encontro do desafio mas, de tal modo estavam presas que se
não conseguiam soltar.
De olhos fechados imaginou aquele
bailado feito de promessas e de desejo que o vento dirigia. Era como se visse
num espelho mágico um momento de paixão. Uma mulher atraente que com o seu
vestido vermelho, prometia amor e logo fugia para desespero do homem que se não
conseguia libertar.
Fora um momento belo que o abrir dos
olhos depressa destruiria. Afinal fora apenas um breve sonho que se
desvanecera.
Talvez sem a força de que em alguns momentos mostrara mas com
uma sensibilidade mais apurada. Coisas que a vida nos ensina.
Fiz algumas alterações, designadamente quando aos blogues
que vou seguindo. E falando de sensibilidade e de sonhos
nada mais me ocorreu que procurar na sétima arte a inspiração que me faltava.
Fui atraído pelo “site” que recomendo: À Pala de Walsh. Um grupo de jovens entusiastas, cultos e
sabedoresque me ensinaram a rever cinema.
E o cinema, a arte que tem andado tão
perdida nas salas de espetáculo foi o tema que escolhi para procurar contar as
histórias que, olhando o mundo através de uma janela e a mim mesmo através do
espelho, fui escrevendo e guardando na memória.
A meio de uma história que começou mal e ameaçava
terminar sem graça ou interesse, o seu fim é previsível, decidi suspender
temporariamente a publicação neste blog.
Quando em Outubro de 2010 comecei a dar corpo ao projeto,
que com altos e baixos, mais baixos do que altos para ser franco, inspirei-me
numa imagem refletida num espelho e que escolhi como o outro eu, aquele sonhador
que sempre escondera no caminho da vida.
Estava velho o meu outro eu, quase não o reconheci, e
esse facto inspirou-me o título do blog. Afinal o meu outro eu não era mais do
que um qualquer John Doe.
Mas este encontro deu-me forças para criar algumas dos melhores
historias de que fui capaz. Escrevi sem rascunhos, com erros inaceitáveis mas
com muita paixão. Percebera que tinha pressa em escrever aproveitando o impulso
tão forte que me roubava até o discernimento.
Foram mais de quatrocentos escritos e pude contabilizar
mais de dez mil visualizações de páginas. A esses leitores interessados ou simplesmente
forçados, mais de cinquenta por cento Portugueses, mas por surpresa, um quarto
deles visualizaram dos Estados Unidos e os outros de países, tão distantes que
não vou referir, a todos quero agradecer.
Mas, a vida reserva-nos surpresas. Um dia perdi-me e procurei apoio no meu
amigo John Doe. Voltei ao espelho cheio de esperança mas a imagem que encontrei não era mais a daquele sonhador. Encontrei um velho de olhar triste, sem chama. Reconheci
com pena que o espelho me mostrava a realidade.
Mas luto para que talvez este velho reganhe o prazer de
escrever, de contar histórias. E por isso desejo que a pausa não seja mais do
que um intervalo!
Espero que breve.
Porque apesar das penas e de uma lágrima que não escondo, não quero desistir
And I wish “never say goodbye”
O vosso e meu amigo John Doe, aliás J. Barreto Lameira.
Perdera-se nos corredores do Aeroporto, escala no seu
regresso a casa. Regresso a casa, que ironia, casa ele nunca tivera. Na
realidade ter casa ignificava ter um espaço onde sentisse o carinho de uma
família com amor abençoado com risos de criança. Nada disso tivera. Apesar do
dinheiro, dos frequentes encontros amorosos, das promessas de amor que duravam
apenas alguns meses, nunca sentira estar em casa, na sua casa. E não poderia
ser de outra forma porque sempre esquecera os compromissos. Outros valores
tinham sido sempre prioritários e o principal fora a sua ascensão no mercado
financeiro.
Encontrou a sala vip, serviu-se de mais uma bebida, olhou
para o relógio. Nem queria acreditar, depois de mais de doze horas de viajem
tinha agora pela frente uma espera de oito horas. Perguntava-se como havia
programado um itinerário tão apertado e que o estava a consumir mas a resposta
ele receava. Fora um pressentimento de que o mundo das finanças estaria à beira
de um colapso, tantos erros que a ganância e o desregulamento do mercado
bancário haviam propiciado.
No vasto salão, cheio de passageiros em espera, conseguiu
encontrar um espaço para descansar e delinear uma estratégia de modo a prevenir
uma temida derrocada dos mercados, que adivinhava próxima, muito dolorosa e
difícil de controlar. Não arriscou esperar mais tempo. Ligou o laptop, começou
a percorrer os ativos que o seu fundo geria e foi transmitindo ordens de venda,
sem agressividade mas dando prioridade à venda de contratos derivados baseados
em fundos imobiliários. Tinha seis corretores a trabalhar na sua Empresa mas a
gestão do risco ficara sempre a seu cargo. Os corredores receberam instruções
para vender os produtos em carteira que indicou, mas não a qualquer preço pois
o mercado estaria atento e a bolha especulativa poderia rebentar.
Esteve mais de duas horas a acompanhar a abertura da
bolsa em Wall Street, apercebeu-se de alguma oscilação nas cotações dos títulos
mais expostos, mas nada que não fosse previsível. O seu Fundo estava a vender
sem grandes efeito nas cotações, sinal que o trabalho estava a ser feito como
ele ordenara. Esteve atento até ao encerramento da bolsa em Nova Iorque.
Descansou e olhando para o placard reparou que o próximo
voo tinha como destino Lisboa. Aqui tão perto, porque não aproveitar e
relembrar a Lisboa a cidade que tanta influência tivera na sua vida?
Já não visitava o País há mais de dez anos, fora umas
viajem dolorosa e que procurara esquecer. Viera para o funeral do Pai mas
encontrou a Mãe que o recebeu como um desconhecido. Nem um sorriso, um beijo ou
abraço sequer. Apenas um aperto de mão cerimonioso com que recebia todos os
amigos.
Ficou dois dias em Lisboa, instalado num hotel, já que a
Mãe lhe deu a entender que ele, o filho ingrato, não tinha lugar no apartamento
de Lisboa.
Ferido com a indiferença, que aliás já esperava, foi
surpreendido com um contacto de um escritório de advocacia, sugerindo uma
reunião para tomar conhecimento dos termos do testamento do Pai e decidir sobre
a sua parte. Não respondeu e antes de regressar a Nova Iorque, procurou a Mãe
apenas para lhe dizer que ele, Ricardo, prescindia dos seus direitos e assinou
em termo de renúncia á sua parte da herança. Deixou o documento das mãos da
Tia, a Mãe mandara dizer que estava indisposta e cumprida esta formalidade
embarcou de regresso à América.
A tia continuava a ser a sua única ligação à família.
Escreviam-se e foi por ela que soube que a Mãe havia constituído uma sociedade
para exploração do negócio, de cuja direção se afastara, reservando apenas uma
quota-parte de 10%.
Ricardo tomou a decisão de relembrar a velha cidade. Era
um pequeno desvio mas sentia a nostalgia que tinha perdido quando se aventurou
em outros destinos, onde não havia espaço para a saudade e para a nostalgia.
Tivera sucesso e as memórias perdidas fizeram parte do preço que pagara.
E de repente lembrou aquele dia triste dum manhã de
Dezembro em que percorreu o Aeroporto de Lisboa aguardando a hora de embarcar
para o seu destino. Estava só, nem um amigo lhe fizera companhia. Lembrou o
medo que sentira, era uma aventura o que o esperava, mais medo porque sentia que
só com ele poderia contar. Na mão o bilhete e o passaporte com o visto e a certidão
de que fora admitido a uma pós graduação na Universidade de Columbia. Eram o
seu tesouro, a porta que se abria para um futuro que idealizara mas que agora,
da solidão do Aeroporto também temia.
Talvez se tivesse precipitado. A recusa da Mãe até a
compreendia mas o aperto que sentia no peito tinha um nome, Mariana.
E como naquela manhã
chuvosa e fria do mês de Dezembro, também hoje, tanto tempo decorrido, deixou
que uma lágrima se soltasse.
Ricardo desembarcara em Lisboa cheio de esperança.
Acreditava que o conhecimento seria uma partilha entre os livros, tantos eram,
e as opiniões e o saber dos professores. E teve uma primeira desilusão.
O curso era fundamentalmente ou quase exclusivamente alicerçado
em muitas horas de estudo, lendo e relendo os livros que já haviam ensinado
gerações.
E para sua grande
surpresa aprendeu que o curso era uma tremenda competição. Sinal dos tempos,
recordava agora Ricardo, a camaradagem era um luxo que nem todos praticavam, pois
quase todos olhavam para o curso como a porta de entrada de um Banco, uma
seguradora, talvez uma grande Empresa e viam em cada colega um possível
concorrente.
Ricardo lembrava os trabalhadores estudantes, aqueles mais
fechados e isolados do mundo. O curso era para eles era um degrau no caminho
profissional que havia escolhido. Sem paixão, raramente tinham dúvidas, a
palavra do professor e as teorias económicas aprendidas nos livros eram
sagradas. Nunca se atreveriam a por em causa os ensinamentos mesmo aqueles sem
grande ligação à realidade.
Havia os outros, meia dúzia de colegas que frequentavam o
curso ou por engano ou por imposição da família. Foi com eles que Ricardo
conseguiu estabelecer alguns laços de amizade. Afinal também ele frequentava o
curso escolhido pela Mãe mas, na realidade ambicionava ir mais longe. A
Economia não o atraía, mas por influência de um professor desalinhado, começou
a olhar para o mundo do dinheiro. A parte financeira, com os sucessos
reconhecidos e alguns erros nascidos pela imprudência, ganância e impreparação,
eram o seu fascínio. Seria nesse meio que Ricardo almejava alcançar a glória, a
riqueza o poder.
Entretanto e enquanto o curso ia decorrendo sem
dificuldades, Ricardo ouvia com interesse os sonhos dos colegas com quem
partilhava os momentos vividos fora da Faculdade. E lembrava-se do Alberto, o
filósofo, do Luís Manuel apaixonado pela arquitetura, do Bernardo que vivia
obcecado pela música e o José Maria cuja obsessão era um olhar, uma aventura,
um sonho de amor com colegas que procurava em outras Faculdades.
Ele, porém era tímido e não conseguia entender os sorrisos,
os olhares, os gestos das raparigas com que o grupo costumava conviver.
E foi o José Maria que o convidou para uma saída noturna
para dançarem e beberem um copo. Ele tinha conhecido uma rapariga por quem se
apaixonara mas ela, insistia que só aceitaria se uma amiga lhe fizesse
companhia. Ricardo foi assim o pau-de-cabeleira a que o amigo recorreu.
E Ricardo perdeu-se de amores. Ele já tinha tido alguns
namoros mais ou menos sérios mas conheceu Mariana e a todos esqueceu.
Mariana dos olhos negros, num rosto belo enfeitiçara Ricardo.
Era finalista do curso de direito. Confessara que aquele era o caminho que
sempre ambicionara e para o qual se havia sacrificado, trabalhando em parte
time, num escritório de Advocacia. Os Pais deram-lhe a ajuda possível, eram
camponeses do Alentejo profundo, sem meios de fortuna mas sempre dispostos a
compartilhar o pouco que lhe restava. Mariana era filha única e o orgulho duma
família unida.
As circunstâncias obrigaram Mariana a trabalhar e a estudar.
Pouco tempo tinha para namorar. Aquela saída com a Odete, namorada do José
Maria e a companhia de Ricardo fora uma partida que o destino lhe pregou. Ricardo
fora o seu primeiro romance e Mariana acreditou no amor. E o amor cresceu e a
paixão entre os dois jovens foi o caminho natural. Sem preconceitos,
entregaram-se em longas noites de amor.
E num desses momentos, com a respiração ainda ofegante,
Mariana segredou ao ouvido do seu companheiro que estaria grávida. Teriam assim
o fruto do seu amor.
Ricardo estremeceu fitando os olhos de Mariana perguntou:
E agora o que vamos
fazer? Posso pedir à minha Mãe ajuda para um aborto. Concordas?
Mariana escondeu o rosto e ficou em silêncio sofrendo a
desilusão que as palavras de Ricardo lhe haviam causado. Nunca imaginara tal
frieza e ganhando forças respondeu:
- Ricardo esquece o que eu e disse. Foi apenas um atraso do
meu ciclo e amanhã farei um teste que certamente dará negativo. Mas hoje estou
cansada e peço-te para te ires embora. Tenho que terminar um trabalho.
Ricardo respirou fundo, de alívio e completou a rotura:
- Nem imaginas o susto que me pregaste. Eu gosto muito de
ti, és a mulher da minha vida, mas ter um filho seria o fim dos meus sonhos. Eu
nunca te disse, mas vou para Nova Iorque fazer uma pós graduação, assim
convença a minha Mãe a dar-me o dinheiro. Não te esqueças de mim, eu vou voltar
para ti, acredita.
Mariana não respondeu. Ricardo viu aberta a porta da rua,
saiu e regressou ao quarto que a Mãe lhe havia alugado. Fez a mala e regressou
a casa.
Foi uma viajem que o marcou para sempre. Contou à Mãe o seu
desejo de estudar em Nova Iorque e a Mãe recusou, dizendo-lhe:
- Ricardo, fui clara quando te dei a oportunidade de ires
estudar para Lisboa. Nunca te escondi que precisava que os teus conhecimentos
me ajudassem a desenvolver os negócios da firma, que um dia será tua. Confesso estar
cansada e nada mais fazer para ajudar o teu Pai, que continua a viver na lua, a
terminar o seu sofrimento interior. Por isso volta, tira umas férias e depois
de diplomado começas a trabalhar. Esta é a minha única proposta e nem aceito
outra alternativa.
Ricardo ouviu a recusa sem pestanejar. De certa maneira já a
temia. E ficou numa encruzilhada na vida. Hesitava em voltar aos braços de
Mariana e seguir o caminho que a Mãe lhe tinha traçado ou esquecer tudo e
arranjar dinheiro para custear os estudos em Nova Iorque.
Mas o destino escolheu por ele. Regressou em Lisboa,
procurou Mariana e não a encontrou. No escritório onde ela trabalhava apenas
lhe disseram que ela teria partido e não sabiam vivia ou não quiseram dar-lhe o
endereço. Tentou a Faculdade mas sem sucesso. Reconheceu que das longas noites
de amor, da paixão vivida nos seus limites apenas lhe restava um nome, Mariana.
Ficou aturdido sem saber o que fazer. Sabia que tinha
dinheiro no Banco, doado pela Tia. Talvez fosse o suficiente para os Eua e, sem
sequer pensar duas vezes apagou o nome da mulher que prometera amar para sempre.
Estava no início da década de noventa. Portugal vivia uma ilusão
do ideal Europeu mas Ricardo bebia todos os ensinamentos que vinham da Améria
das “Junks Bonds” e a saga do Michael Milken, seu fundador, e do aluno e cliente Ivan Boesky,
e imaginava-se a viver rodeado de oportunidades de enriquecer manuseando a arma
mais poderosa, o dinheiro. Qual economia, o que vai contar é o poder do
dinheiro, murmurava no seu subconsciente.
Finalmente conseguira adormecer. Acordou com o anúncio que o
avião iria aterrar em Londres, escala do destino Nova Iorque.
Estava exausto. Nada comera durante as longas horas de voo,
revivera emoções e desenganos mas no seu percurso pela vida faltavam ainda
quase vinte anos e muitas feridas por sarar.