segunda-feira, 30 de julho de 2012

SALDOS DE VERÃO


Depois de ter escrito uma história longa, criada a partir do nada e sem nada para dizer, decidi fazer uma paragem.
Em plena época dos saldos, onde todo o comércio faz campanha para escoar os monos, eu segui a tendência.
Será um interregno tão breve quanto possível, o meu stock não é assim tão grande.
Voltarei quando as ideias velhas tiverem rejuvenescido e possa seguir o caminho que, por mais de uma vez, perdi.
Mesmo nos momentos de solidão e desesperança, escrever tem sido a minha pobre arma.
E será com ela que conto para manter vivos os sonhos.
Voltarei. perdoem.

quinta-feira, 26 de julho de 2012

SIMÃO & COMPANHIA


Vieira da Silva
Bataille des Couteaux
Manufactura Tapeçarias de Portalegre
Portalegre/Portugal


 FINAL
Alguns  dias passados depois do reencontro, o ambiente que começara por ser agradável,  com as pessoas a conviverem entre si, contando aspectos da sua vida privada e profissional, começou a notar-se alguma ansiedade, que podia representar o desejo que o tempo se escoasse e a semana de férias terminasse.
Essa ansiedade era mais visível na Leonor, ela sentia que seria a chave para um final descontraído ou, o que receava, acabar por ser interpelada sobre um assunto que não queria discutir, mesmo entre amigos. A sua ligação com Frederico, o personagem ausente, era algo que guardava para si. Sabia que apesar de alguns mexericos que já ouvira, segredados em voz baixa, apenas Luís conhecera a sua efectiva ligação e fora testemunha do amor e do carinho com que durante três anos ela e Frederico partilharam cada momento da vida.
Leonor conhecia a grande amizade que unia Luís e Frederico, e sentia que só ele poderia falar com propriedade do estranho caso da ausência de Frederico. Mas, embora desejasse saber notícias, tinha medo e até uma pontada de ciúme.
Tomara que o tempo passasse, pensava nos seus momentos de solidão.
Mas também os restantes membro do grupo pareciam ter esgotado as recordações, as histórias de juventude e agora conversavam sobre assuntos triviais do dia a dia, da política aos costumes e às viagens de negócio e de prazer que todos teriam feito.  
Luís e Sofia falavam com entusiasmo da sua experiência em África e o tempo corria.
Luísa sentia aquele arrastar dos dias, aquele equilíbrio instável que parecia convir a todos. Era tempo de provocar a faísca trazendo para a conversa o assunto que todos pareciam evitar, era evidente o desconforto quando alguém falava, nos nomes de Leonor e de Frederico. Era naqueles nomes que teria de fazer incidir a conversa, sob pena de tudo terminar com um sentimento de alívio para as visitas, mas com a frustração que se sente na conversa inacabada.
Observava cada um, o Simão continuava igual a si mesmo, mas notava uma crescente agitação nos outros, quando alguém falava em surdina com o Luís. Entendeu tal receio, como se fosse ele a pedra central dum jogo, que ninguém parecia querer jogar.
Sabia que podia contar com Carla para fazer estalar o verniz, ela era a mais alegre e comunicativa mas hesitou em recorrer à sua ajuda. Para quê perder tempo, pensou, a questão fulcral vai tocar na Leonor, cada momento mais desligada e fugidia e no Frederico.
Programou um jantar especial,  desta vez numa mesa rectangular, e estudou a distribuição dos lugares, assinalando-os, evitando assim a tentação de se juntarem as pessoas do costume.
Na cabeceira da mesa era o lugar do Simão. Esse lugar não tinha dúvida e para a outra cabeceira reservou o lugar vazio, com o cartão no nome de Frederico. Sorriu, aquele lugar vazio bem visível seria como um desafio incómodo.
Para os outros lugares foi-lhe simples a distribuição. Apenas se preocupou em colocar frente a frente, Leonor e do Luís.
Fora ela própria a coordenar a decoração da mesa.
Escolhera para a mesa uma toalha de linho bordado, um serviço de porcelana antiga, talheres de prata que guardara dos avós, copos de cristal, que reflectiam a luz dos dois candelabros. Era um jantar especial, uma ementa estudada, nada de muito complicado, pois como informou a cozinheira, pretendia que as pessoas conversassem,   enquanto decorresse a refeição. Mesmo se houvesse alguma demora no serviço, não importava.
Tinham acabado de saborear a prato principal, e enquanto aguardavam a sobremesa, Luísa levantou-se, pediu um pouco de atenção e falou:
- Falo-vos na qualidade anfitriã deste reencontro,  que ajudei a preparar, e para vos agradecer a vossa presença. Tê-los aqui, nesta casa que guarda tantas recordações é um momento que guardaremos na nossa memória. Espero que também tenham sido do vosso agrado, estes dias em que nos fizeram companhia.
Confesso que  esperava que este reencontro de amigos tivesse um significado mais marcante, que todas as dúvidas, os ciúmes, os desencontros, os desenganos, que sobraram daquelas férias de fim de curso, fossem hoje esquecidas. E para esquecer é preciso compreender e perdoar.
Afinal foram dez anos que marcaram o vosso futuro.  
Mas a vida é assim, dez anos  podem apagar amizades, fazer esquecer segredos e até alguns mal entendidos que são frequentes naquela idade, em que todos somos capazes de conquistar o mundo, encontrar a felicidade, viver paixões. Naquela idade tudo nos é permitido, o desengano, o desencontro, o fracasso. Só não deve ser esquecida a amizade, quando ela é forte e sincera.
Simão falou-me muitas vezes dos amigos, dos sete cavaleiros e eu aprendi a conhecer-vos mesmo sem nunca vos ter encontrado.
Por isso não acredito que a vossa passagem por esta casa se transforme num simples acto de cortesia e que amanhã fique esquecido.
 Gostaria, portanto, me permitissem  lançar um desafio. Será que cada um dos presentes é capaz de contar, o essencial da sua vida decorridos dez anos e aceitar observações ou comentários?
Ou em alternativa falar dos ausentes?
O silêncio foi a resposta. Então continuou:
- Não vejo voluntários, mas há um lugar que é um desafio. Por aquilo que o Frederico representou para muitos de vocês, e que hoje não está aqui presente, permito-me pedir a alguém que fale deste amigo.
Parou um momento, percorreu com o olhar todos os presentes que se mantinham em silêncio. Depois parou na Leonor, tensa e de olhos olhando o vazio e desafiou:
- Leonor fala-nos sobre o teu amigo!
Leonor estremeceu, levantou-se e depois de olhar um a um os presentes, respirou fundo e com a voz tremida começou a falar.
- Menti quando me apresentei. Não tenho marido ou companheiro, vivo só com a minha angústia e solidão.
 Há muito tempo, nesta casa, sentados no parapeito do jardim que ainda existe como o relembro, num momento de ternura confessei o meu amor. Ainda recordo, como se fora hoje, as palavras ditas: “ Frederico ao menos tu sabes que eu gosto de ti. Sempre gostei e gostarei. Acalento a esperança que o nosso caminho se cruze. Não te quero perder, tu és meu.”
Não foi uma adolescente que pronunciou estas palavras. Era o coração de uma mulher apaixonada e que nunca as esqueceu.
Foi um sonho em que acreditei, que realizei nos anos, poucos, que partilhei os nossos dias, as nossas alegrias, o nosso amor tão completo que nos devorou os sentidos.
Mas perdi o sonho, perdi o caminho e perdi o amor.
Depois, fui tudo o que ambicionava ser, menos feliz.  
Hoje, voltei a este lugar com uma ténue esperança de encontrar o amor perdido. Irei partir e nem o sonho viajará comigo. Tudo acabou. Só me resta continuar a viver olhando da janela do meu quarto, numa cidade fria lá bem longe, as pessoas que passam e nelas, quem sabe, ver Frederico.
Leonor sentou-se, não tinha lágrimas para chorar.
De repente pareceu que o gelo se quebrou. Afinal Leonor era a protagonista que todos esperavam e ao confessar o seu amor perdido tudo agora parecia simples.
Mas Luís levantou-se e começou a falar:
- Uma noite em que nos perdemos no caminho para esta casa o calor juntou-nos, a mim e a Frederico deitados sob as estrelas.
Não conseguíamos dormir e então falamos, bebemos e fumamos pela noite dentro.
Foi nessa noite que nós realmente nos conhecemos e a amizade se solidificou.
Luís fez uma pausa, como se quisesse parar, mas continuou:
É interessante, lembrei-me agora, que no final daquela noite perdidos no meio da montanha, onde contámos os nossos segredos, os nossos projectos, as nossas dores e as angústias, Frederico disse algo que vou tentar reproduzir:
 “Tenho estado a pensar que não gostaria de perder o contacto com os amigos mas ao mesmo tempo tenho receio que a vida nos pregue alguma partida. E então pensei que podíamos fazer, como se fazia nos tempos antigos, um pacto de sangue, selando um compromisso que nos mantivesse unidos, em qualquer situação da vida, fixando um prazo, dez anos por exemplo, para que os mosqueteiros se reúnam e voltem a relembrar os bons tempos da mocidade.”
A que eu respondi:
“Apesar do teu desejo e conhecendo eu o teu espírito inquieto, que pacto é que achas podia ser aceite por todos, incluindo eu? E pelas miúdas, pelo Carlos tão senhor do seu nariz? Pelo Simão sem dúvida, ele aceitará tudo para manter a união do grupo.  
Pensando bem e tua ideia não me parece tão irrealista como julguei. Mas será arriscada, dez anos são muito tempo, mas eu estou contigo e aceito misturar o meu sangue, num juramento que não poderei quebrar.”
- Mas o que Frederico temia veio a acontecer. Os amigos seguiram cada um o seu caminho e das promessas, apenas restou o fumo.
Ele teve esse pressentimento, quando acrescentou
“Certo é que a vida se encarregará de nos separar. Mas se a minha ideia for amadurecida e representar um compromisso, levando em conta os desejos, a ambição mas salvaguardando a amizade, por cima das vitórias, dos desenganos, dos fracassos, das paixões e da felicidade, saberemos que, no dia, estaremos juntos. Hoje é data da partida, se houver acordo teremos o dia e o ponto de chegada.”
 Luís olhou à sua volta e dirigiu-se a Leonor:
- Minha cara amiga, eu fui testemunha da vossa ligação e do amor que os uniu. Confesso que achei a vossa paixão, a vossa entrega tão forte que corria o risco de, a qualquer momento, poder explodir. Tinha razão, naquele dia em que Frederico, enlouquecido pelo desgosto de se saber indesejado pela Mãe te procurou, tu falhaste. Optaste pelo exame, tão importante na tua carreira profissional, não te condeno, mas não o ouviste o seu grito pedindo ajuda e, nesse mesmo dia, tudo se acabou. Ficou a dor e o desespero de que Frederico nunca se conseguiu curar.
Frederico perdeu-se e sem ninguém em quem confiar, partiu para uma viajem sem destino.
Escreveu-me pequenas cartas, sem remetente, que enviava para a minha Mãe com o pedido de que apenas mas poderia entregar depois de eu ter terminado de realizar a minha dura empreitada.
 Recebi as cartas há alguns meses, lendo-as assisti ao percurso do meu amigo. Como ele escreveu, fugiu do inferno em que a sua dor se transformara, passou pelo purgatório e escolheu morrer às portas do paraíso.
As cartas são algo de muito pessoal que guardarei. Apenas vos apresento Omar, e apontou para o negro calado num canto da mesa, que foi o companheiro de jornada do Frederico. Foi o amigo que lhe restou até ao fim. Frederico entregou por ele a sua última carta. Pedia ao Pai e a mim ajuda para o companheiro que lhe matara a fome, o protegera do frio e o carregara aos ombros até ao cume do monte, onde ele desistiu de viver, olhando a imensidão dos campos verdes e o azul do céu. Chegara no limite das suas forças, e foi contemplando a beleza da natureza que terminou a jornada.
Peço que me acompanhem bebendo com alegria saudando a paz do nosso amigo.E que bebamos o vinho que nos uniu, o vinha da Casa da Ribeira.
Depois olhando para Leonor terminou:
- Não de mortifiques mais, segue a tua vida, guarda de Frederico o seu olhar de visionário. O mundo dele não era o nosso.  
 Faltava Mariana, mas Luísa abraçou o marido dizendo:
- A tua irmã esteve connosco, mandou uma mensagem que depois te darei. Mas Mariana é assunto de família e assim deve ficar.
Hoje fizemos com que os amigos se reencontrassem. Valeu a pena, mas aceita a verdade, a ideia do Simão & Companhia, acabou hoje e aqui.


 
FIM

Tentações de Santo Antão Jheronymus Bosch (Hertogenbosch, 1450/60-1516)
Museu Nacional de Arte Antiga
Lisboa/Portugal

segunda-feira, 23 de julho de 2012

SIMÃO & COMPANHIA


Nadir Afonso
Mortes  Même dans le Souvenir
Manufactura de Tapeçarias de Portalegre
Portalegre/Portugal


O REENCONTRO

E o dia chegou.
Simão estava nervoso e nem sabia porquê. Levanta-se manhã cedo, andara pela quinta, sentara-se nos penhascos a admirar o rio que corria entre os socalcos. Estava frio, o céu encoberto era o presságio de que a chuva não tardaria a aparecer. Começou de mansinho, uma chuva leve e fria. Recolheu a casa, aproveitou para acender a lareira dando à sala o ambiente de conforto que esperava.
Sentou-se num cadeirão olhando o fogo. Não se sentia tranquilo, afinal dez anos era muito tempo. Como seriam os amigos dez anos depois? Teriam o mesmo riso, a mesma simplicidade? Seriam ainda capazes de falar dos amigos ou já teriam esquecido e falariam apenas de si, dos seus sucessos, das suas vitórias?
Toda a dúvida o feria, a ponto de lamentar ter tido a ideia do reencontro.
Todavia, tomara uma decisão acertada o que lhe dava tranquilidade. Confiara na mulher Luísa, no seu discernimento, na sua inteligência, na sua força interior e entregara-lhe a responsabilidade pela organização.
O seu pedido, começara por recordar como eram os amigos, dez anos atrás. Lembrou-se de todos. Daqueles que tinham um caminho traçado e do qual não fugiriam, dos que sofriam de ciúmes de jovens ambiciosos, dos olhos verdes que inspiravam paixões, da ingenuidade da irmã e sobretudo dos jovens inquietos e sonhadores, crentes num mundo que já não existia.
Luísa pensou que faria sentido que cada um aceitasse falar sem reservas do seu percurso durante os dez anos passados. Para isso não encontrou melhor do que um encontro informal, numa tarde de chuva sentados numa mesa, recebendo a luz da lareira ou escondendo-se na sombra do entardecer, cada um confessando os sucessos, as vitórias, os fracassos também, os amores e desamores.
No final era como se cada um se sentasse na cadeira do psicólogo e abrisse o coração. Não seria uma terapia mas um acerto com o passado. Espreitaria a oportunidade e quando o ambiente estivesse desanuviado, lançaria a ideia.
E os amigos começaram a chegar. O primeiro foi o Carlos, vinha de perto da cidade do Porto e conhecia o caminho. Chegou só e algo nervoso. Tinha um ar que não enganava. Continuava tímido e como tal defenderia o seu ego. Usava óculos graduados, o cabelo ralo e penteado de modo a tapar a calvície que já era evidente. Sorria quando abraçava Simão e foi depois foi mais formal ao cumprimentar Luísa.   
Depois chegou Carla e o marido. O seu rosto era alegre e os olhos vivos sorriam com verdade. Estava feliz e não o escondia. Não era uma mulher muito bonita, também não o fora enquanto jovem, mas tinha qualquer coisa de atraente e que não passaria despercebido a quem olhasse para além do aspecto exterior. Um homem distraído como Simão, não perceberia que Carla era uma mulher muito interessante e envolvente. Ela teria feito estragos em muitos corações.
O ambiente até ali frio e muito convencional mudara completamente. Carla trouxera a alegria de uma mulher realizada mas sobretudo feliz. Luísa sentiu nela uma aliada para pôr a falar os outros quando a ocasião se proporcionasse.
A Leonor chegou de táxi. A princesa dos sonhos dos rapazes do grupo. Mas como estava mudada, Simão nem a reconhecera no primeiro momento. Estava magra, cabelo grisalho, olhos tristes. Sorriu ao ver Simão, agradeceu-lhe o convite e desculpou-se pelo marido que, por trabalho não pudera aceitar estar presente. Conservava os olhos que tantas paixões haviam despertado, mas eram agora mais escuros e escondidos por óculos de sol. Óculos de sol num dia cinzento? não era um bom augúrio, observava de longe Luísa. E pensava se Leonor criara uma imagem enquanto jovem, que atraía os rapazes, mas  acabara por perder esse fascínio e ficou, dez anos depois uma mulher só, triste e sofrida.  Algo mudara na vida daquela mulher que deixara marcas.
Enquanto cumprimentava os presentes, o olhar vagueava pela sala, desde o centro até a um recanto mais resguardado, como se procurasse outro olhar. Mas a curiosidade desapareceu e lentamente  Leonor regressou ao seu casulo.
A chegada do Luís foi uma lufada de ar fresco. Aquele homem grande fora sempre o amigo de confiança. O rapaz determinado e sempre disponível, transformara-se agora num homem com o charme discreto de quem aprendeu as lições da vida. Luísa olhava para ele e via alguma semelhança com Simão. Mas no marido reconhecia e bondade e a lealdade, que nada escondia. Porém o Luís  que abraçava com força os antigos companheiros,  transmitia uma confiança que, afinal  tanto o ajudara a triunfar na vida, enquanto o seu rosto era uma mistura de alegria e felicidade com dor e sofrimento. Viera acompanhado por uma amiga especial, que apresentou como sendo a sua companheira e por um rapaz negro tímido e nervoso. Luís colocou a mão no ombro do desconhecido, apresentando-o como Omar, um amigo especial que, nos momentos difíceis soubera ser o amigo de que todos precisam.
Luísa teve um pressentimento. Aquele rapaz negro representaria o Frederico, só não sabia o porquê mas não augurava nada de bom.
A velha casa da ribeira era agora um hotel. Simão encomendara a um conhecido arquitecto a recuperação da casa, aumentando o espaço disponível mas preservando a traça original. Tinha orgulho no produto final, um excelente hotel recomendado para os amantes da natureza e das tradições. Tinha uma maior valia, o vinho Casa da Ribeira, que coleccionara prémios em certames internacionais. Era um hotel caro, Simão reconhecia, mas para além do preço ele preocupava-se sobretudo com a qualidade dos hóspedes. Dizia à mulher que um homem rico, mesmo que muito rico, podia ser um péssimo cliente e estragar o que tanto prazer nos deu a construir.
Naquela semana do reencontro o hotel ficara reservado para os convidados e Luísa foi uma anfitriã muito atenta. Todavia não deixou de referir:
- A ideia do reencontro, para além de rever amigos de juventude foi, também, uma homenagem ao vinho, Casa da Ribeira, produzido neste quinta, que corre mundo e acabou por ser o guia para o encontro de muitos dos presentes.
Eu em nome do Simão apenas quero concluir dizendo, são todos bem-vindos.
A sala representa o coração desta velha casa, espero que sintam nela a magia do reencontro dos amigos  reencontrados.
Passada a confusão da chegada Simão aproximou-se de Luísa segredando:
- Não nos esquecemos de ninguém? Então sou eu, o Carlos o Luís a Leonor e a Carla. Somos cinco, faltam a Mariana e o Frederico. Sabes alguma coisa?
- Simão a Mariana não pode vir. Está em digressão com a companhia pelos Estados Unidos e Canadá. Mas quando esteve comigo em Londres, escreveu uma saudação que eu irei ler uma tarde de convívio. Quanto ao Frederico nada sei, mas acredito que o Luís reserva alguma surpresa.
 No momento certo iremos sentar à mesa os membros que vieram, deixaremos em aberto os lugares da tua irmã e do Frederico e celebraremos o reencontro.
E depois assumiremos a alegria, talvez a saudade, porventura dor. Mas mataremos a saudade dos anos passados.

                                                        CUSTÓDIA DE BELÉM
                           Gil Vicente (ourives com actividade conhecida entre 1503 e 1517)
                                                        Portugal, 1506
                                         Ouro, esmaltes polícromos, vidro
                                           Museu Nacional de Arte Antiga
                                                    Lisboa/Portugal

quinta-feira, 19 de julho de 2012

SIMÃO & COMPANHIA


Danielle Moser
Je m'envole autre
Manufactura de Tapeçarias de Portalegre
Portalegre/Portugal




17 – DEZ ANOS DEPOIS – 10º CAPÍTULO

Luís que era um homem alto e magro, tinha muito cuidado com a escolha do lugar no avião. Era uma viajem longa, o voo estava sempre completo e tantas horas encolhido numa cadeira era um suplício. Desta vez atrasou-se e ao escolher o lugar não encontrou alternativa a um com o lugar da janela e na penúltima fila do avião.
Sabia o tormento que o aguardava e chegou a pensar e alterar o voo ou escolher viajar em classe executiva. Mas era teimoso e nada fez. Embarcou.
Enquanto os passageiros iam entrando, Luís aproveitava para ler a correspondência do amigo. Mas parou porque ficara perturbado e porque começou a sentir a incomodidade do lugar que havia aceite. Tentava estender as pernas para debaixo das cadeiras da frente. Mas não deu certo, o espaço tinha sido ocupado por sacos cheios de compras e por todo o tipo de pequenas malas que não couberam na respectiva bagageira. Luís assistira à luta que as passageiras que ocupavam os lugares da frente haviam travado, para conseguirem encaixar debaixo das cadeiras, toda a bagagem restante. Eram três mulheres fortes e determinadas e empurrão depois de empurrão lá conseguiram construir a muralha que agora lhe limitava o seu espaço, para esticar as pernas.
Com algum cuidado foi empurrando com os pés alguns dos volumes. Fizera força e logo uma das senhoras dos lugares da frente, se virou e com um olhar furibundo e a voz áspera o criticou:
- Com que direito é que o senhor se julga para pisar a nossa bagagem?
 Este espaço é nosso e a bagagem não serve para ser o seu tapete. Tenha lá cuidado onde põe os pés.
Assim dito de forma ameaçadora incomodou Luís que esteve tentado a responder no mesmo tom desabrido mas resolveu calar o seu protesto.
Ao seu lado viajava um casal, também carregado com bagagem de mão e com um berço onde um bebé pequeno choramingava, talvez com fome. A mãe conseguiu ajeitar-se apesar da falta de espaço, ocupava o lugar do meio, e começou a amamentar a criança, mas estava manifestamente desconfortável. Luís aproveitou  a situação e sugeriu que trocassem de lugares. E o casal concordou, fizeram a troca e enquanto os Pais se acomodavam, foi Luís que segurou o bebé.
Sentiu-se bem, ter nos braços uma criança seria o prazer maior que um Pai podia ter. Tenho que pensar nisso, murmurou, enquanto afagava ligeiramente e com um gesto de ternura a face do pequenote.
Conversando com os companheiros de viajem, sorrindo com as gracinhas do bebé, o voo pareceu ser mais rápido.
Foi com alegria que respirou o ar quente daquela África de que se habituara a gostar.
Vivia numa casa recuperada que comprara e que partilhava com o irmão, a cunhada e os sobrinhos.
Reservara para sim o primeiro andar da moradia, que por ter uma entrada separada lhe dava a o conforto da sua intimidade e evitava as perguntas, algumas um pouco embaraçosas quando, recebia a visita da sua namorada. 
E foi mesmo a Sofia, a quem pedira para o esperar e lhe garantir transporte para casa.
Não eram casados mas tinham uma relação sólida mas livre. Cada um tinha o seu espaço, encontravam-se sempre que lhes apetecia e pouco a pouco a frequência dos encontros ia aumentando.
Casar não fora, ainda, uma hipótese a considerar. Estavam bem assim e como Sofia costumava dizer, cada vez que se encontravam no apartamento dela ou na casa dele, era como se vivessem um amor escondido, uma paixão proibida. E o prazer físico e emocional que retiravam dessa situação era avassalador. Estavam bem e por enquanto, assim iriam continuar.
Tinha sido uma ausência curta mas Luís precisava de descansar e fazer alguns telefonemos para se inteirar sobre o andamento das obras em curso. Optou por ficar em casa só. Depois se encontrariam.
Estendeu-se no sofá e dormitou um pouco. Acordou estremunhado e foi abrir o computador e o correio electrónico. Tinha a caixa cheia de mensagens. Foi lendo, apagando as desnecessárias e salvando os relatórios sobre o andamento dos trabalhos e os balancetes que o Director Financeiro tinha o hábito de lhe enviar. De repente tropeçou numa mensagem enviada pelo Simão. Era o convite para um encontro na Casa da Ribeira, comemorando dez anos desde as férias de fim do curso liceal, daquele grupo dos sete magníficos. O convite trazia como anexo um poster. Abriu e encontrou os sete cavaleiros, amigos da adolescência, quando ainda pensavam salvar o mundo.
Cada um era representado por um boneco, desenhado com muita imaginação e cujo rosto queria fazer um retrato de cada um, dez anos atrás. Para não restarem dúvidas, cada um vestia uma camisola colorida e com o nome estampado. Gostou da ideia e mais ainda quando localizou o Frederico sonhador, com os braços sobre os ombros dos seus amigos de eleição. Ele e Leonor. 
Na mensagem era indicada a data o lugar e referia que o convite não era excluía ninguém. Mulheres, maridos, filhos, todos cabiam naqueles sete dias de férias que Simão propunha. Como objectivo, apenas e só um reencontro de amigos, dez anos passados.
Não hesitou, faria tudo para estar presente e tentaria convencer Sofia a que lhe fizesse companhia.
Depois da euforia sentiu alguma preocupação. Simão teria conseguido contactar todos os membros do grupo? Ou alguém faltaria à chamada?
Não acreditara que Simão tivesse conseguido encontrar todos. Ele sabia que Frederico fora um, teria sido o único, perguntou-se?
Abriu a mala de viajem e retirou o sobrescrito com as cartas do amigo. Ainda tinha cartas por ler e talvez nelas encontrasse alguma forma de estabelecer contacto. 
Abriu a terceira carta. Um texto não datado e ainda mais confuso. Frederico seguia uma estrela que lentamente se ia apagando.
Começou como as outras com um título.
( Caçador De Sonhos)
Estou numa cidade fria, olhando com inveja a gente que passa apressada. É o fim do dia de trabalho e todos correm para o remanso dos seus lares. Poderão sofrer de solidão, talvez vidas trocadas, com medos escondidos, mas sabem o endereço.
Pelo contrário eu, caçador de sonhos, ando cada vez mais perdido, mas longe de tudo e de todos. Já não sei o que procuro, o que faço aqui perdido no meio da multidão.
O meu amigo foi procurar um lugar onde nos possamos acolher depois de mais uma longa caminhada. Eu aguardo, ele é a única razão para esperar.
Eu não tenho destino, nem agora nem nunca. O meu sonho desfez-se em fumo e nada mais resta.
Tenho momentos em que penso desistir, falar para casa e pedir ajuda. Mas são rapidamente esquecidos.
A mim já nada me atrai tudo me desespera.
 A vida tem sido um desengano e não guardo recordações felizes.
Agora tenho um amigo e companheiro que no silêncio da noite fria e escura me estende a mão recitando velhas canções da sua terra, perdida no interior da África, onde a fome empurra os jovens para viagens que acabam no fundo do mar ou num campo de refugiados de onde serão repatriados.
Ele ficou só e olha para mim como o último refúgio.
E logo a mim que sinto que o meu sonho está a terminar.
Adeus velho amigo, sê feliz.
Frederico”

Teve um mau pressentimento.
Abriu a penúltima carta, conseguia ler que o carimbo era dos correios italianos.
Começava um título que o fez tremer, como se fora uma premonição.
“ A Divina Comédia)
Estou sentado no alto de um monte. É manhã e o sol começa a despontar. O meu amigo  dorme ainda vencido pelo cansaço. Foi ele que quase me transportou até ao cume.
Lá em baixo vejo os vales e um rio que vai correndo para abraçar o mar.
Eu cheguei ao fim. Passei as fases da Divina Comédia que li quando ainda jovem estudante me sentia atraído pelos grandes poemas.
Este era um deles.
Agora estou lúcido como pode estar alguém que ultrapassou as montanhas. Vivi o Inferno quando me dei conta da inutilidade da minha vida, depois a minha peregrinação que representou a passagem pelo purgatório e hoje, finalmente hoje, consigo vislumbrar o paraíso.
É bonito, o verde do campo, o azul do céu e o doirado do sol nascente.
Vou deixar esta carta para o Omar a colocar no correio. Será a última.
Depois partirei, as portas já terão sido abertas.
Adeus velho amigo, adeus.
Frederico”
Luís não conseguiu esconder a emoção. Frederico, o seu amigo e companheiro o seu cúmplice morrera. Dele ficara apenas os escritos e a amargura de uma vida desperdiçada.
Sofia entrou em casa e percebeu que Luís chorava olhando através da janela. Sobre a mesa estavam as cartas que Frederico enviara no seu percurso alegórico para o Paraíso, como Dante o havia descrito.
Luís apenas tinha na mão a carta que fora depositada na sua caixa de correio.
Finalmente sabia que Frederico não iria estar na reunião dos amigos. O amigo tinha deixado de sonhar.
 Quase nem precisava de abrir o último sobrescrito. O mensageiro fora Omar.
Abriu e encontro uma cópia da carta que Frederico enviara ao Pai, pedindo-lhe ajuda para o companheiro negro, que lhe dera atenção e amizade nos últimos meses da sua peregrinação. E que ficara até ao fim, como devem ficar os amigos.
Sofia estivera a ler a correspondência e alvitrou:
- Sabes o que podes fazer? Podes substituir o Frederico pelo amigo que lhe restou até ao fim dos seus dias. Havemos de encontrar Omar e levá-lo ao encontro. Que melhor homenagem podes prestar ao Frederico?
Deposição de Cristo no TúmuloGiambattista Tiepolo
Museu Nacional de Arte Antiga
Lisboa/Portugal

sábado, 14 de julho de 2012

SIMÃO & COMPANHIA


Almada Negreiros
Partida de Emigrantes
Manufactura de Tapeçarias de Portalegre
Portalegre/Portugal



16 – DEZ ANOS DEPOIS – 9º. CAPÍTULO

Luísa escolhera uma sexta-feira para viajar para Londres. Programara ficar apenas um fim de semana. Escolhera um hotel perto de Victoria Station porque dali lhe seria mais fácil utilizar o autocarro que a levaria ao endereço que Mariana, há muito tempo atrás, lhe dissera.
Tinha também o número de telemóvel, Simão já o havia utilizado para se encontrar com a irmã, mas Luísa decidiu reservar aquele meio de contacto para a eventualidade de não conseguir localizar a residência.
Na verdade queria aparecer de surpresa.
O avião aterrara em Heathrow pelas dez horas da manhã, o aeroporto estava um caos. Gente que se cruzava carregando as malas ao longo dos intermináveis corredores, gritos de Pais porque os filhos teimavam em se afastar do caminho, gente que desembarcara vinda de diversos lugares e se atropelava para levantar a bagagem.
Há muito tempo que não visitava Londres e não se recordava de um trânsito tão intenso. Estava quase a chegar ao controlo da polícia e ficou assustada. Era uma fila enorme e parecia haver muita gente com problemas a ser encaminhada para lugares onde eram sujeita a uma revista e interrogatório mais rigoroso.
Não costumava ser assim quando viajara, mas os tempos eram outros, havia muita emigração clandestina , o flagelo do desemprego impelia as pessoas a fazer opções, largando tudo para encontrar um destino menos cruel. Londres era um mundo de culturas, permeável à realização de atentados. E o medo dum ataque bombista pairava no dia a dia dos Londrinos, especialmente os que utilizavam, regularmente, o metro.
Os jornais tablóides ampliavam os receios e quando alguém responsável recomendava calma, ninguém lhe prestava atenção. O medo viajava mais depressa.
Enquanto esperava na fila que nunca mais avançava, punha em ordem o seu programa e ia interiorizando a possibilidade de não conseguir localizar a cunhada ou de a encontrar e sofrer alguma desilusão.
Era um sexto sentido que a avisava do risco. Por qualquer razão, mas nunca seria uma razão feliz, Mariana quase desaparecera. Talvez não quisesse ser encontrada por razões, que Luísa ,nem queria imaginar.
Mas sabia ser determinada e não se deixaria vencer com facilidade. De Londres só regressaria com a Mariana ou com uma explicação para o seu afastamento da família.
Era consciente dessa força interior que avançara. Chorar era fácil,  mas sabia conter as emoções até que, em solidão  pudesse libertar as lágrimas. Não expunha fragilidades e não seria uma presa fácil para se vergar aos azares e infortúnios.
Estava prestes a chegar à sua vez de se identificar e passar o controlo. Os pensamentos ficaram guardados num recanto do cérebro. Agora sim, iria começar a sua aventura.
Como só transportava bagagem de mão, depressa chegou ao terminal de metro que queria utilizar. Era meio-dia de um dia cinzento e frio, a chuva anunciava-se a todo o instante. O que hei-de fazer, pensou para si, estamos no fim de Setembro e o Outono promete borrasca. Fora o boletim que a tripulação lhe lera antes da aterragem.
Demorou mais de uma hora no trajecto de metro, à saída a chuva começara a cair com intensidade. Deu uma corrida por entre as pessoas que se apressavam a procurar o resguardo e mesmo assim, entrou no hotel completamente encharcada. 
Não tinha tempo a perder. Um duche rápido, mudar de roupa e correr para a paragem do autocarro que iria passar por Croydon.
Ainda estava longe do lugar onde devia descer mas havia muito trânsito e não queria perder tempo. Desceu na paragem próxima e mandou parar um táxi. Indicou-lhe a morada, o motorista olhou para ela com um ar intrigado, mas fez-lhe sinal para subir.
Demorou vinte minutos até o táxi parar numa rua estreita de prédios antigos e escuros. Não era em Croydon como esperava, mas sim num antigo e degradado bairro dos arredores.
Ia pagar quando o motorista lhe perguntou se não seria aconselhável que o táxi a aguardasse, avisando:
- Pense bem, depois vai ser difícil arranjar transporte e estas ruas não são muito apropriadas para passear.
Luísa hesitou agradeceu, pagou comentando que como se ia encontrar com pessoas em quem tinha confiança sentia-se segura.
O táxi arrancou e Luísa caminhou para a porta de um edifício de quatro pisos. A porta estava aberta,sem fechadura e campainhas não funcionavam. Entrou, também não havia elevador. No patamar os contentores do lixo, cheios e espalhando um cheiro nauseabundo, eram a decoração. O apartammento que Mariana lhe dera correspondia ao quarto e último andar.
Respirou fundo, ganhou coragem e subiu as escadas. Bateu à porta, uma, duas e três vezes sem obter resposta. Começou a descer e no terceiro piso numa porta entreaberta uma mulher de idade espreitou e comentou:
- A senhora não me parece ser consumidora de drogas, então o que pensa ir fazer aquele maldito apartamento cheio de drogados e prostitutas?
Siga o meu conselho, vá-se embora ou então espere lá fora, naquele café da esquina. O pessoal quando tiver terminado a sua agonia costuma parar, beber um café antes que a noite os leve, de novo, para o inferno.
Disse isto e fechou a porta com estrondo.
Luísa ficou bloqueada, apesar das suas dúvidas e dos seus receios custava-lhe a acreditar que Mariana, a pobre Mariana vivesse naquele lugar.
Saíu para a rua e respirando o ar fresco, encostou-se à parede, escondeu o rosto e chorou.
Depois seguiu a sugestão da vizinha, foi procurou o café. Era um espaço pequeno, chama-se pomposamente “TERMINAL PUB”, havia um ou dois clientes ao balcão bebendo cerveja. Pediu um café e escolheu para se sentar numa mesa perto da porta de entrada.
Entrara despercebida e assim continuava. Mas estava nervosa com o ouvira e o ambiente soturno não a ajudava. As palavras  duras, droga e prostituição martelhavam-lhe a cabeça.
Voltou para a rua e numa esquina quase deserta recorreu ao velho amigo, o cigarro que retirou dum maço que trazia na mala e que funcionava como um desafio. Desta vez perdera, ia mesmo fumar.
Nervosamente acendeu o cigarro, inspirou o fumo que outrora lhe dera prazer, mas que agora lhe queimava os pulmões. Fez mais uma tentativa, espalhou o fumo em círculos pelo ar e ficou seguindo as figuras que o vento ia desenhando. Perdera o prazer de fumar,  apagou  nervosamente o cigarro que  esmagou no chão, mesmo por baixo do anúncio do café. “Terminal Pub”, que nome tão apropriado, murmurou.
Decidiu que não ia desistir, andava de um lado para o outro sem perder de vista a entrada da casa que pretendera visitar.
Começava a ficar preocupada com o movimento de carros que passavam na rua. A sua presença intrigava os automobilistas que abrandavam, faziam sinais que ela nem queria perceber.
Era já noite quando três vultos saíram do prédio onde procurara Mariana e entraram no café.
Luísa entrou de seguida, já havia mais gente ao balcão mas também ninguém se apercebeu da sua presença. Sentou-se ao balcão e começou a percorrer o rosto das poucas mulheres que lá estavam. Na outro lado do balcão estavam sentados as pessoas que seguira. E como um raio fulminante, viu o rosto magro e macilento, a roupa extravagante e um olhar triste e sofrido de alguém que a fitara e também a reconhecera. Acabava de encontrar Mariana. Mas o choque foi tremendo, a mulher em que Mariana se transformara não era sequer uma sombra da rapariga bonita que conhecera. Era uma mulher coberta de maquilhagem, onde apenas os olhos encovados lhe davam algum sinal de vida.
Não resistiu e saiu para a rua, Mariana foi ao seu encontro:
- Esperei tanto por ajuda, mas nunca fui capaz de a pedir. Agora é tarde minha amiga. Faz um favor ao meu irmão e aos meus Pais, inventa que me encontraste e que eu sou tão feliz e não tenciono voltar. Tu saberás inventar uma história. Ou diz que não me encostraste mas soubeste que eu parti para o outro lado do mundo. Conta como quiseres mas para eles não digas a verdade. Agora mesmo que queira já não posso voltar, o meu tempo está a chegar ao fim.
 Eu estou condenada pelo vício e pela doença que me consome. Nunca voltarei.
 Esquece que me viste, guarda a memória que tinhas de mim. Essa pessoa, a Mariana dos olhos negros,já não existe. Hoje sou Miriam e caminho junto dos meus companheiros de desgraça.
 Vai embora, do fundo do coração só te posso dizer, adeus e obrigada.
Voltou as costas, juntou-se aos companheiros e recomeçaram a sua viajem até ao inferno da noite.
Luísa ficou por momentos a ver o andar cambaleante do grupo. Mariana não se voltou mas ao passar por baixo do anúncio do café, uma chapa pendurada sobre uma porta gradeada, Luísa iria jurar que Mariana soltara um grito de dor e de morte. Afinal, acabava de transpor o Terminal Pub.
Reentrou na rua principal, andou sem saber para onde. Teve sorte, um táxi parava perto e fez sinal que estava livre. Correu com quanta força tinha, abriu a porta sentou-se, colocou as mãos sobre a face e chorou. Conseguiu dizer o o hotel. Depois, por obra do destino ou por vontade do próprio, verificou que  encontrara o mesmo táxi e o mesmo motorista.
A viajem foi ainda longa mas feita sem palavras. O motorista respeitara a dor que vira no rosto da passageira. No final da corrida e à porta do hotel enquanto pagava ouviu o conselho do motorista, um homem de cabelos brancos e olhar bondoso:
- Não se esqueça que por vezes é preciso descer ao mundo dos desgraçados para compreender o valor da vida e dos afectos. Eles são o amparo uns dos outros, a droga levou-lhes tudo, menos o sentimento de partilha. Poucos são os que resistiram à heroína. Naquela rua escondem os últimos dias de uma vida que deixaram fugir por entre os dedos.
Esqueça naquele lugar, ninguém consegue de lá sair. Só morto pelo droga ou pelos traficantes.


Paula Rêgo
Agonia no Horto
 Casa das Histórias de Paula Rêgo
Cascais/Portugal

quarta-feira, 11 de julho de 2012

SIMÃO & COMPANHIA


Manuel Gargaleiro
Cidade dos mastros e caravelas
Manufactura de Tapeçarias de Portalegre
Portalegre/Portugal

15 – DEZ ANOS DEPOIS – 8º CAPÍTULO

A viajem para Maputo, era desesperadamente longa e cansativa.
Luís tentava dormir mas não conseguia mais do que fechar os olhos por breves instantes.
 Ler?
Bem que tentava, folheava o livro, e ao fim de algumas páginas já esquecera o início.
Não resistiu à curiosidade e do sobrescrito que a Mãe lhe tinha entregue, retirou mais uma carta do Frederico. Tinha o número dois. Abriu e como a outra continha apenas uma página escrita a lápis com uma letra tremida como se fosse o retrato de alguém sem força ou vontade de viver.
Luís acreditava que Frederico começara uma caminhada pela vida, como se fizesse uma peregrinação.
E o título que ele dera à carta era sinal do desespero.  
“O náufrago” fora o título escolhido.
Luís não tinha dúvidas. Frederico optara por enfrentar os seus medos, as suas angústias o seu desespero, a sua solidão, caminhando por um rio sem margens e cada vez mais perto de naufragar. Luís tremia a cada frase que lia, sentira o desespero de alguém que se abeirava do fim.
E o texto confirmava os seus receios.

“É noite escura e fria. Caminho por entre as sombras ao longo das ruas e dos becos duma cidade que nem sei como se chama.
Sou um náufrago que sobreviveu à tempestade, despido de memórias e órfão de afectos.
Da hecatombe em que me deixei envolver apenas sobrou a tua amizade. Assim espero.
O mundo em que vivo é um deserto, onde as pessoas passam correndo. São apenas vultos, sombras. Nem um olhar os transforma em seres humanos.
Vou percorrendo as ruas de dia e de noite e acabo no meio dos desesperados e deserdados da vida, sem esperança, sem futuro. Como eles procuro nos recantos das vielas um lugar para descansar o corpo.
Como eu gostava de repousar a cabeça num ombro amigo e ter um pouco de calor.
O frio da noite transformou-me num vagabundo partilhando os caixotes, os jornais e os vãos das portas.
A alvorada é o sinal que todos esperam para saírem dos buracos e famintos mendigarem uma moeda para comprar um pão.
Também eu, sentado no portal de uma casa recebi moedas que não pedi mas que os transeuntes me lançam como quem compra um lugar no céu ou talvez para acalmarem a consciência.
Encontrei um amigo negro como a noite, vagabundo como eu. Fala uma língua que não entendo, não importa sequer, ele sabe os lugares onde pessoas de boa vontade matam a fome a tantos desgraçados. Segui a seu lado, não pela comida, mas porque não queria perder o amigo que acabara de encontrar.
Andamos juntos sem destino, como dois náufragos numa jangada que se move ao sabor dos ventos e das marés.
Passou tanto tempo desde que parti. E tanto caminhei.
Saí ferido como um caçador de sonhos que despertou mas que precisava de acreditar que o sonho podia ser realidade. Mas tenho aprendido. Não há lugar para os sonhadores. Tudo o que pensei conseguir, falhou.
Sonhei com uma família que não existia, uma Mãe que não me reconhecia e um Pai que me tentou comprar. E eu vendi-me para viver um grande amor. Um grande amor, como se isso existisse!
A realidade foi uma ilusão, não foi mais do que um fugaz momento, que uma brisa ligeira depressa afastou.
Estou no meio do caminho para não sei onde; Mas sinto que o meu novo amigo me guiará nas noites escuras, duma cidade triste.
Estou cansado, anseio por esquecer a vida que não vivi, os sonhos que me perderam e num dia que antevejo mais perto o meu amigo continuará, mas só, a sua busca do país do sol e do mel. Eu, esgotado, ficarei na beira do caminho. Já falta pouco. Só mais um esforço.
Frederico. “
Luís ouviu aquele grito do amigo. Deixou que uma lágrima se escorresse pela face.
Voltou a procurar nas cartas algum sinal que o ajudasse a seguir o caminho onde Frederico se perdera.Mas nada encontrou. Lembrou-se que os selos das cartas o poderiam ajudar a ter uma ideia do local onde, admitia pudesse tentar localizar Frederico. Concluiu que os selos e o carimbo das cartas seguiam um determinado rumo, cada vez mais longe de casa. A primeira carta tinha um selo de Espanha e parecia entender no carimbo que fora expedida de Madrid, outra fora de Paris. Cheio de esperança retirou as outras e seguiu a marcha. A terceira carta tinha um selo Alemão, outras tinham selos da Itália, Turim e da Suíça, Genebra.
A última carta reservou-lhe uma surpresa. Não tinha selo ou carimbo. Fora, por isso depositada em mão na caixa do correio. Fora Frederico que por qualquer razão voltara, ou fora um amigo a servir de correio?
Não teve coragem para abrir as cartas restantes. Fê-lo por medo, por amizade. Tanto que ele queria ajudar Frederico, mas teve medo da última carta. Vou continuar em casa, lendo e relendo com mais atenção os gritos do meu amigo.
Talvez o vento me traga notícias. A viagem não terminava e ele já lhe apetecia voltar. Talvez Frederico o procurasse.

Entretanto Simão exultava com a opinião do empresário russo. Assinaram o contrato de fornecimento do vinho tinto da colheita mais premiada. Não aceitara a exclusividade no fornecimento do vinho mais premiado. Não aceitara ficar nas mãos de um só comprador. Tinha clientes cuja fidelidade tinha que respeitar. Todavia fizera um bom negócio e a margem era excelente. Valera a pena o investimento na produção e no marketing.
Estava tão feliz que se esquecera que o vinho, por ironia do destino, lhe dera mais um contacto do grupo. E logo o da bela Leonor, a musa das paixões, que sempre soubera representar o seu papel mas que, provavelmente acabara só na frígida Dinamarca.
Regressou a casa e decidiu que, era tempo de comunicar o programa para a festa do reencontro.
Pediu a Luísa para o ajudar a redigir o convite.
Estavam a escrever o programa para envio utilizando os endereços electrónicos já conhecidos. No final, Simão confirmou que apenas faltava um, o de Frederico. Mas algo lhe dizia que só Luís o conseguiria encontrar.
A mulher olhou para ele abanou a cabeça e chamou-lhe a atenção para outro ausente.
- Qual perguntou Simão?
- Creio que te esqueceste da tua irmã. A Mariana não voltou a casa desde que se mudou para Londres e alguma razão terá. Acho que é tempo de conversar com ela antes de dar como adquirida a sua presença. Oxalá me engane, mas Mariana terá um segredo que não quis revelar e tem evitado falar contigo.
Se o teu tempo não te permita uma deslocação a Londres, deixa que seja eu a ir ao seu encontro. Quem sabe entre mulheres ela se sinta mais à vontade.
Simão ficou perplexo e agitado. Não compreendia nem queria acreditar que Mariana pudesse viver momentos menos bons, a precisar de ajuda e de amparo e ele não estivera a seu lado. Todavia nunca lhe conhecera razão para viver infeliz. Pensando bem, tremeu, quando se deu conta que, afinal ele sempre vira na irmã, uma garota ajuizada, um pouco triste, pouco expansiva, mas ela era na altura uma jovem de dezasseis anos. Agora, tantos anos decorridos Mariana seria uma mulher independente e que se resguardara. Sentiu-se culpado, talvez a irmã tivesse pedido ajuda por actos ou palavras a que ele não dera atenção. Ela e com razão, perdera a confiança no irmão.
Teve medo e reconheceu que a mulher tinha razão ao propor ser ela a viajar para Londres.
Esperava que Mariana aceitasse falar abertamente com uma mulher que sabia ouvir. E essa mulher era sem dúvida,  Luísa.

António Soares
Terrasse du café des Plaires
Museu do Chiado
Lisboa/Portugal

terça-feira, 3 de julho de 2012

SIMÃO & COMPANHIA


                                                              Marcello Moraes
                                                                   New York
                                                  Manufactura de Tapeçarias de Portalegre
                                                               Portalegre/Portugal


14 – DEZ ANOS DEPOIS – 7º. CAPÍTULO

Logo que o avião estabilizou Luís abriu a pasta e retirou o sobrescrito com as cartas do amigo. Eram apenas seis pequenas cartas, e para cada Frederico escolhera um título.
Nem uma data, um local um endereço, apenas um título.
Na primeira: “O ano do tsunami”.
Luís fechou os olhos, imaginava o período em que Frederico teria escrito aquela primeira carta. Tsunami seria apenas uma figura de estilo, conhecendo Frederico, foi-lhe fácil concluir que aquela carta fora um grito de dor, num momento de desilusão, de ilusões perdidas. Certamente no fim da felicidade quase perfeita com o que o havia encontrado com Leonor. Lembrou-se que Frederico vivera durante quatro anos uma aventura sentimental com o amor de infância, havia-os encontrado nesse período, felizes, tranquilos como um mar manso e cúmplice. Aquele amor era etéreo, assim julgavam, mas num qualquer momento tudo se desfizera e como um tsunami a vida daqueles dois amantes ficara despedaçada e perdida no fundo do mar.
Ele conhecia Frederico e iria jurar que o título da primeira carta seria o fim dum amor tão perfeito que nunca poderia resultar.
Começou a ler e tinha razão. A carta começava assim:
“ Ingénuo que eu fui, andei passeando na praia, ouvindo a música das ondas e não prestei atenção aos sinais de tempestade. E certo dia, o mar galgou a terra. Gritei por ajuda mas não fui ouvido. Era época de exames e para alguém isso foi a prioridade. E eu perdi-me.
O vento e as marés levaram-me a outro porto. Despido dos sonhos.
E comecei a minha caminhada. Só como sempre vivi.
Sigo guiado pelo vento, sem destino e sem abrigo. A vida não é, meu amigo, apenas uma questão de escolha. Eu não escolhi, mas o meu destino estava escrito desde o dia em que nasci. Eu fui um acidente na vida de outras pessoas e assim continuo a ser.
E pobre de mim, cheguei a acreditar que também eu merecia ser feliz.
A desilusão dói.

Adeus meu amigo, outro dia, de outra parte, irei escrevendo. Até ao fim.
Frederico”
Luís acabou de ler aquelas palavras escritas numa letra trémula e numa simples folha de papel de bloco de apontamentos. Como esperava, o amor por Leonor desaparecera à mais pequena contrariedade. E assim teria de que ser. Frederico era um sonhador que agora se transformara num peregrino e Leonor optara por ser uma pessoa normal. Com uma vida comum. E merecia ser feliz.
Guardou a carta, fechou a pasta, não quis ler as restantes. Fá-lo-ei em casa, em silêncio, lendo mais uma carta e olhando as estrelas.
Entretanto, Simão foi surpreendido quando recebeu a confirmação que o empresário russo já estava instalado no hotel Sheraton da cidade do Porto. Ele tratara de toda a logística mas com a cabeça ocupada com as histórias dos amigos, esquecera-se da data da chegada.
Foi a correr para casa, a mulher já lhe tinha preparado a mala de roupa, chegou e partiu de imediato para o aeroporto. Como passageiro frequente tinha prerrogativas que, desta vez não hesitou em reclamar. Um passageiro que se preparava para embarcar, foi educadamente retirado da lista de embarque e Simão ocupou o seu lugar.
Não se sentia bem com o que acabara de fazer mas, é bom para o País, vou conseguir contribuir para o aumento das exportações, desculpou-se para si mesmo.
Tinha quarto alugado no mesmo hotel e foi fácil encontrar o empresário que o aguardava. Nunca o havia visto, mas reconhecera o director de compras que encontrara em Moscovo. Caminhou apressadamente na sua direcção quando foi barrado por dois seguranças. Ficou sem saber o que fazer, os seguranças não sendo funcionários do hotel teriam que ser guarda-costas do empresário russo. Por sorte o seu conhecido apercebeu-se da situação, dirigiu-se a ele com um sorriso aberto e de mão estendida, resolvendo a questão.
Acompanhou Simão e fez as apresentações. O empresário russo, pareceu-lhe simpático, era um homem de meia idade, magro mas de elevada estatura, e começou a falar num excelente inglês mostrando o seu gosto por estar em Portugal pela primeira vez e o agrado com que havia recebido o dossier sobre o vinho que Simão deixara em Moscovo.
Foi ainda mais conclusivo afirmando ter apreciado o vinho, oferecera até uma garrafa a um Ministro seu amigo.
Estou aqui para auscultar as suas disponibilidades em termos de entrega da quantidade de garrafas da colheita que eu já escolhi. O meu secretário acertará consigo os detalhes. Vai-me desculpar, eu preciso de descansar algumas horas para que amanhã o possa acompanhar para ver as vinhas e a adega.
Depois assinaremos, como espero, o contrato.
O empresário levantou-se e começou a andar, acompanhado pelos dois seguranças. De repente parou, voltou atrás e disse:
“ Meu caro amigo. Já me esquecia de lhe dizer que antes da minha vinda ao seu belo País, passei pela Dinamarca, onde no Hospital Universitário tive que de fazer alguns tratamentos periódicos. E sabe que mais, a minha médica assistente é sua conhecida, ela viu o dossier de apresentação do vinho e reconheceu o rótulo. Disse-me que conhecia a casa da ribeira e o seu proprietário. E deu-me um cartão para lhe entregar. Vassily o cartão está na minha pasta, encontrei-o e faça a sua entrega.
Simão estremeceu ao receber o cartão. Como previa era um cartão escrito em Português. Dizia simplesmente:
“Duma velha amiga do grupo da casa da ribeira. Espero que o senhor Orlov, meu doente, goste do teu vinho como eu gostei da amizade daquele grupo que se perdeu. Mas eu estou aqui e tenho saudades. Um beijo da Leonor”

Amadeo de Souza-Cardoso
D. Quixote
Museu da Fundação Calouste Gulbenkian
Lisboa/Portugal