Alguns dias passados depois do reencontro, o ambiente que começara por ser agradável, com as pessoas a conviverem entre si, contando aspectos da sua vida privada e profissional, começou a notar-se alguma ansiedade, que podia representar o desejo que o tempo se escoasse e a semana de férias terminasse.
Essa ansiedade era mais visível na Leonor, ela sentia que seria a chave para um final descontraído ou, o que receava, acabar por ser interpelada sobre um assunto que não queria discutir, mesmo entre amigos. A sua ligação com Frederico, o personagem ausente, era algo que guardava para si. Sabia que apesar de alguns mexericos que já ouvira, segredados em voz baixa, apenas Luís conhecera a sua efectiva ligação e fora testemunha do amor e do carinho com que durante três anos ela e Frederico partilharam cada momento da vida.
Leonor conhecia a grande amizade que unia Luís e Frederico, e sentia que só ele poderia falar com propriedade do estranho caso da ausência de Frederico. Mas, embora desejasse saber notícias, tinha medo e até uma pontada de ciúme.
Tomara que o tempo passasse, pensava nos seus momentos de solidão.
Mas também os restantes membro do grupo pareciam ter esgotado as recordações, as histórias de juventude e agora conversavam sobre assuntos triviais do dia a dia, da política aos costumes e às viagens de negócio e de prazer que todos teriam feito.
Luís e Sofia falavam com entusiasmo da sua experiência em África e o tempo corria.
Luísa sentia aquele arrastar dos dias, aquele equilíbrio instável que parecia convir a todos. Era tempo de provocar a faísca trazendo para a conversa o assunto que todos pareciam evitar, era evidente o desconforto quando alguém falava, nos nomes de Leonor e de Frederico. Era naqueles nomes que teria de fazer incidir a conversa, sob pena de tudo terminar com um sentimento de alívio para as visitas, mas com a frustração que se sente na conversa inacabada.
Observava cada um, o Simão continuava igual a si mesmo, mas notava uma crescente agitação nos outros, quando alguém falava em surdina com o Luís. Entendeu tal receio, como se fosse ele a pedra central dum jogo, que ninguém parecia querer jogar.
Sabia que podia contar com Carla para fazer estalar o verniz, ela era a mais alegre e comunicativa mas hesitou em recorrer à sua ajuda. Para quê perder tempo, pensou, a questão fulcral vai tocar na Leonor, cada momento mais desligada e fugidia e no Frederico.
Programou um jantar especial, desta vez numa mesa rectangular, e estudou a distribuição dos lugares, assinalando-os, evitando assim a tentação de se juntarem as pessoas do costume.
Na cabeceira da mesa era o lugar do Simão. Esse lugar não tinha dúvida e para a outra cabeceira reservou o lugar vazio, com o cartão no nome de Frederico. Sorriu, aquele lugar vazio bem visível seria como um desafio incómodo.
Para os outros lugares foi-lhe simples a distribuição. Apenas se preocupou em colocar frente a frente, Leonor e do Luís.
Fora ela própria a coordenar a decoração da mesa.
Escolhera para a mesa uma toalha de linho bordado, um serviço de porcelana antiga, talheres de prata que guardara dos avós, copos de cristal, que reflectiam a luz dos dois candelabros. Era um jantar especial, uma ementa estudada, nada de muito complicado, pois como informou a cozinheira, pretendia que as pessoas conversassem, enquanto decorresse a refeição. Mesmo se houvesse alguma demora no serviço, não importava.
Tinham acabado de saborear a prato principal, e enquanto aguardavam a sobremesa, Luísa levantou-se, pediu um pouco de atenção e falou:
- Falo-vos na qualidade anfitriã deste reencontro, que ajudei a preparar, e para vos agradecer a vossa presença. Tê-los aqui, nesta casa que guarda tantas recordações é um momento que guardaremos na nossa memória. Espero que também tenham sido do vosso agrado, estes dias em que nos fizeram companhia.
Confesso que esperava que este reencontro de amigos tivesse um significado mais marcante, que todas as dúvidas, os ciúmes, os desencontros, os desenganos, que sobraram daquelas férias de fim de curso, fossem hoje esquecidas. E para esquecer é preciso compreender e perdoar.
Afinal foram dez anos que marcaram o vosso futuro.
Mas a vida é assim, dez anos podem apagar amizades, fazer esquecer segredos e até alguns mal entendidos que são frequentes naquela idade, em que todos somos capazes de conquistar o mundo, encontrar a felicidade, viver paixões. Naquela idade tudo nos é permitido, o desengano, o desencontro, o fracasso. Só não deve ser esquecida a amizade, quando ela é forte e sincera.
Simão falou-me muitas vezes dos amigos, dos sete cavaleiros e eu aprendi a conhecer-vos mesmo sem nunca vos ter encontrado.
Por isso não acredito que a vossa passagem por esta casa se transforme num simples acto de cortesia e que amanhã fique esquecido.
Gostaria, portanto, me permitissem lançar um desafio. Será que cada um dos presentes é capaz de contar, o essencial da sua vida decorridos dez anos e aceitar observações ou comentários?
Ou em alternativa falar dos ausentes?
O silêncio foi a resposta. Então continuou:
- Não vejo voluntários, mas há um lugar que é um desafio. Por aquilo que o Frederico representou para muitos de vocês, e que hoje não está aqui presente, permito-me pedir a alguém que fale deste amigo.
Parou um momento, percorreu com o olhar todos os presentes que se mantinham em silêncio. Depois parou na Leonor, tensa e de olhos olhando o vazio e desafiou:
- Leonor fala-nos sobre o teu amigo!
Leonor estremeceu, levantou-se e depois de olhar um a um os presentes, respirou fundo e com a voz tremida começou a falar.
- Menti quando me apresentei. Não tenho marido ou companheiro, vivo só com a minha angústia e solidão.
Há muito tempo, nesta casa, sentados no parapeito do jardim que ainda existe como o relembro, num momento de ternura confessei o meu amor. Ainda recordo, como se fora hoje, as palavras ditas: “ Frederico ao menos tu sabes que eu gosto de ti. Sempre gostei e gostarei. Acalento a esperança que o nosso caminho se cruze. Não te quero perder, tu és meu.”
Não foi uma adolescente que pronunciou estas palavras. Era o coração de uma mulher apaixonada e que nunca as esqueceu.
Foi um sonho em que acreditei, que realizei nos anos, poucos, que partilhei os nossos dias, as nossas alegrias, o nosso amor tão completo que nos devorou os sentidos.
Mas perdi o sonho, perdi o caminho e perdi o amor.
Depois, fui tudo o que ambicionava ser, menos feliz.
Hoje, voltei a este lugar com uma ténue esperança de encontrar o amor perdido. Irei partir e nem o sonho viajará comigo. Tudo acabou. Só me resta continuar a viver olhando da janela do meu quarto, numa cidade fria lá bem longe, as pessoas que passam e nelas, quem sabe, ver Frederico.
Leonor sentou-se, não tinha lágrimas para chorar.
De repente pareceu que o gelo se quebrou. Afinal Leonor era a protagonista que todos esperavam e ao confessar o seu amor perdido tudo agora parecia simples.
Mas Luís levantou-se e começou a falar:
- Uma noite em que nos perdemos no caminho para esta casa o calor juntou-nos, a mim e a Frederico deitados sob as estrelas.
Não conseguíamos dormir e então falamos, bebemos e fumamos pela noite dentro.
Foi nessa noite que nós realmente nos conhecemos e a amizade se solidificou.
Luís fez uma pausa, como se quisesse parar, mas continuou:
É interessante, lembrei-me agora, que no final daquela noite perdidos no meio da montanha, onde contámos os nossos segredos, os nossos projectos, as nossas dores e as angústias, Frederico disse algo que vou tentar reproduzir:
“Tenho estado a pensar que não gostaria de perder o contacto com os amigos mas ao mesmo tempo tenho receio que a vida nos pregue alguma partida. E então pensei que podíamos fazer, como se fazia nos tempos antigos, um pacto de sangue, selando um compromisso que nos mantivesse unidos, em qualquer situação da vida, fixando um prazo, dez anos por exemplo, para que os mosqueteiros se reúnam e voltem a relembrar os bons tempos da mocidade.”
A que eu respondi:
“Apesar do teu desejo e conhecendo eu o teu espírito inquieto, que pacto é que achas podia ser aceite por todos, incluindo eu? E pelas miúdas, pelo Carlos tão senhor do seu nariz? Pelo Simão sem dúvida, ele aceitará tudo para manter a união do grupo.
Pensando bem e tua ideia não me parece tão irrealista como julguei. Mas será arriscada, dez anos são muito tempo, mas eu estou contigo e aceito misturar o meu sangue, num juramento que não poderei quebrar.”
- Mas o que Frederico temia veio a acontecer. Os amigos seguiram cada um o seu caminho e das promessas, apenas restou o fumo.
Ele teve esse pressentimento, quando acrescentou
“Certo é que a vida se encarregará de nos separar. Mas se a minha ideia for amadurecida e representar um compromisso, levando em conta os desejos, a ambição mas salvaguardando a amizade, por cima das vitórias, dos desenganos, dos fracassos, das paixões e da felicidade, saberemos que, no dia, estaremos juntos. Hoje é data da partida, se houver acordo teremos o dia e o ponto de chegada.”
Luís olhou à sua volta e dirigiu-se a Leonor:
- Minha cara amiga, eu fui testemunha da vossa ligação e do amor que os uniu. Confesso que achei a vossa paixão, a vossa entrega tão forte que corria o risco de, a qualquer momento, poder explodir. Tinha razão, naquele dia em que Frederico, enlouquecido pelo desgosto de se saber indesejado pela Mãe te procurou, tu falhaste. Optaste pelo exame, tão importante na tua carreira profissional, não te condeno, mas não o ouviste o seu grito pedindo ajuda e, nesse mesmo dia, tudo se acabou. Ficou a dor e o desespero de que Frederico nunca se conseguiu curar.
Frederico perdeu-se e sem ninguém em quem confiar, partiu para uma viajem sem destino.
Escreveu-me pequenas cartas, sem remetente, que enviava para a minha Mãe com o pedido de que apenas mas poderia entregar depois de eu ter terminado de realizar a minha dura empreitada.
Recebi as cartas há alguns meses, lendo-as assisti ao percurso do meu amigo. Como ele escreveu, fugiu do inferno em que a sua dor se transformara, passou pelo purgatório e escolheu morrer às portas do paraíso.
As cartas são algo de muito pessoal que guardarei. Apenas vos apresento Omar, e apontou para o negro calado num canto da mesa, que foi o companheiro de jornada do Frederico. Foi o amigo que lhe restou até ao fim. Frederico entregou por ele a sua última carta. Pedia ao Pai e a mim ajuda para o companheiro que lhe matara a fome, o protegera do frio e o carregara aos ombros até ao cume do monte, onde ele desistiu de viver, olhando a imensidão dos campos verdes e o azul do céu. Chegara no limite das suas forças, e foi contemplando a beleza da natureza que terminou a jornada.
Peço que me acompanhem bebendo com alegria saudando a paz do nosso amigo.E que bebamos o vinho que nos uniu, o vinha da Casa da Ribeira.
Depois olhando para Leonor terminou:
- Não de mortifiques mais, segue a tua vida, guarda de Frederico o seu olhar de visionário. O mundo dele não era o nosso.
Faltava Mariana, mas Luísa abraçou o marido dizendo:
- A tua irmã esteve connosco, mandou uma mensagem que depois te darei. Mas Mariana é assunto de família e assim deve ficar.
Hoje fizemos com que os amigos se reencontrassem. Valeu a pena, mas aceita a verdade, a ideia do Simão & Companhia, acabou hoje e aqui.