quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

PALAVRAS

ILUSÃO
Abro a mão vazia, estendo-a ao meu amigo e dou o que já perdi. A ilusão.
Nada mais me resta senão alguns assomos de revolta, angústia e de dor.
O tempo não esperou que a construção do Portugal sonhado numa manhã de Abril ganhasse forma e resistência. Tudo não passou dum andaime que, ruídas todas as esperanças sobrou desenhado na memória.  
Andaime
O tempo que eu hei sonhado
Quantos anos foi de vida!
Ah, quanto do meu passado
Foi só a vida mentida
De um futuro imaginado!·
Aqui à beira do rio
Sossego sem ter razão.
Este seu correr vazio
Figura, anónimo e frio,
A vida vivida em vão.

A ‘sp’rança que pouco alcança!
Que desejo vale o ensejo?
E uma bola de criança
Sobre mais que minha ‘s’prança,
Rola mais que o meu desejo.

Ondas do rio, tão leves
Que não sois ondas sequer,
Horas, dias, anos, breves
Passam — verduras ou neves
Que o mesmo sol faz morrer.

Gastei tudo que não tinha.
Sou mais velho do que sou.
A ilusão, que me mantinha,
Só no palco era rainha:
Despiu-se, e o reino acabou.

Leve som das águas lentas,
Gulosas da margem ida,
Que lembranças sonolentas
De esperanças nevoentas!
Que sonhos o sonho e a vida!

Que fiz de mim? Encontrei-me
Quando estava já perdido.
Impaciente deixei-me
Como a um louco que teime
No que lhe foi desmentido.

Som morto das águas mansas
Que correm por ter que ser,
Leva não só lembranças —
Mortas, porque hão de morrer.

Sou já o morto futuro.
Só um sonho me liga a mim —
O sonho atrasado e obscuro
Do que eu devera ser — muro
Do meu deserto jardim.

Ondas passadas, levai-me
Para o olvido do mar!
Ao que não serei legai-me,
Que cerquei com um andaime
A casa por fabricar.

Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"


E perdida a ilusão ficarão os sonhos, a recordação da juventude. E no meu caso fica a música de um filme.



JUSTIÇA
Cá nesta Babilónia
Cá nesta Babilónia, donde mana
            Matéria a quanto mal o mundo cria;
           Cá, onde o puro Amor não tem valia,
           Que a Mãe, que manda mais, tudo profana;

            Cá, onde o mal se afina, o bem se dana,
            E pode mais que a honra a tirania;
           Cá, onde a errada e cega Monarquia
           Cuida que um nome vão a Deus engana;

            Cá, neste labirinto, onde a Nobreza,
            O Valor e o Saber pedindo vão
            Às portas da Cobiça e da Vileza;

           Cá, neste escuro caos de confusão,
           Cumprindo o curso estou da natureza.
           Vê se me esquecerei de ti, Sião!

(Luís Vaz de Camões, in "Sonetos")
Justiça para os pobres, os deserdados, igual a justiça para os ricos e os poderosos. Assim devia ser numa sociedade que se tenha libertado dos seus preconceitos de classe. Mas não é assim. A Justiça não é cega e para ser JUSTIÇA, falta ser justa.
LISBOA
Todos temos lugares e cidades que nos encantaram. E que guardamos no baú das recordações.
Lisboa, cidade mágica, mulher embalada nos braços no Tejo, banhada por uma luz que nos encandeia é inesquecível.
A história mostra que Lisboa é uma das mais antigas cidades do mundo e sem dúvida a mais antiga da Europa Ocidental.
Com o rio Tejo foi porto de abrigo para os marinheiros Fenícios, recebeu Ulisses na sua viagem de regresso a casa depois da guerra de Tróia, depois as legiões de Júlio César, as invasões dos mouros do Norte de África que deixaram marcas nas pessoas e na língua Portuguesa.
 Lisboa foi sempre o ponto de partida e o ponto de chegada. Lisboa é como o primeiro amor que não se esquece.
Afinal, porque Lisboa é mulher.
Mas Lisboa é também o povo que a percorre, canta e ama. E esse Povo que vagueia nas ruas desta cidade, tem sombras no olhar, tem angústias no coração. O futuro é amanhã e nada traz de bom.
E eu, Lisboeta por adopção, sinto a nuvem negra que alastra no rosto de quem sofre a desesperança. Então subo ao castelo, ponho o cotovelo e deixo que as lágrimas lavem os meus receios.



sábado, 26 de janeiro de 2013

PALAVRAS

ALEGRIA
Era inevitável. O País, o meu País acordou mais alegre. Regressámos aos mercados e antes do tempo previsto pela troika. Foi uma explosão de regozijo com as ruas e avenidas e encherem-se de pessoas, velhos e novos cantando louvores ao rei mercado. E afinal tudo fora simples. A operação fora estudada ao mais ínfimo pormenor e deu certo, provando que quando o Governo é competente tudo se resolve. E competência é coisa que não falta a um Estado que tem como primeiro ministro a Senhora Merkel, como Ministro das Finanças o sr. Mario Draghi, como Ministro do Desemprego o Álvaro  dos pasteis de Belém e  como primus  inter pares o Miguel Relvas.  
E o País tem ainda estadistas de valor reconhecido, quer no Governo, não me lembro dos nomes, mas tem, e na oposição pronto a investir toda a sua sabedoria um político Seguro muito experimentado e com boa figura.
Voltámos aos mercados, não me canso de repetir. O País pode continuar a endividar-se porque os Bancos ainda estão em situação difícil e é preciso ajudar. Um dia alguém terá de pagar, mas não é difícil adivinhar quem.
Os desempregados, serão mais de um milhão ganharam mais confiança pois estão a receber reforços cada dia que passa. A coisa vai.
E até os velhos teimosos, admitem que o parecer do Ministro do Japonês sobre a política de controlo da longevidade, pode ser uma ajuda. E sei que muitos pensam emigrar para o País do Sol Nascente. E o Governo vai abrir uma linha de crédito para financiar a compra das viagens, mas só as de ida.
 Tudo se encaminha para um final feliz. A ver vamos como diz o cego.

FOLCLORE
Portugal é um País rico em manifestações culturais, entre as quais devo destacar a dança popular, que tem raízes profundas desde o Alto Minho e Trás os Montes, passando pelo Ribatejo e saltando para o Algarve.
E cada região era demarcada pela dança.
Quem não se lembra dos programas de TV, onde o Poeta Pedro Homem de Melo (não estou a brincar) fez a radiografia do País caracterizando as regiões pelas suas danças tradicionais?
E também neste aspecto fomos um País abençoado. As danças populares resistiram até ao aparecimento dos programas culturais das nossas estações de Televisão e algumas danças ultrapassaram o seu horizonte geográfico e demandaram outras paragens.
Por exemplo, a tradicional CHULA, embora com um ou outro acerto de pormenor, quer no movimento quer na ortografia, passou de dança regional a dança nacional, deixando a exclusividade dos Arrais Minhotos para os Salões da Aristocracia, designadamente para os Conselhos de Administração dos Bancos e de outras Sociedades de prestígio.
Ou também o VIRA, que desceu o País, criando o hábito de mudança de camisola sempre que tal fosse conveniente.
E até  o CORRIDINHO que com poucas raízes históricas, saiu do Algarve e é hoje dança fundamental em períodos pré-eleitorais.
Mas sendo o folclore uma riqueza nacional, deve ser aproveitada, e tem-no sido, convenhamos.  


DESNORTE

E o resultado de tanta alegria e alguma perplexidade é a ocorrência de derivas sensitivas. Porque muitas vezes é difícil distinguir o certo e o errado, a mentira e a verdade.  
E mesmo sem querer, acabamos perdidos, imaginando uma realidade que não existe.
E então o sonho acaba por ser um único refúgio.

domingo, 20 de janeiro de 2013

PALAVRAS


PÁTRIA
Eu sinto orgulho de ser aqui nascido.
Nesta terra que o sol teima em vir beijar deixando a pele escura como a terra para que nos faça lembrar que dela nascemos e a ela havemos de voltar.
Corremos mundo, desbravamos o mar desconhecido, espalhando o nosso suor que fez o mar salgado.
Nada nos restou da glória dos nossos antepassados. Por excepção, ficou-nos a poesia e a Língua Portuguesa.
Os tempos mudaram e de um povo de marinheiros sem medo, sobrou um povo de pedintes, alunos cumpridores dos ditames dos senhores do mundo. Que acreditou nas promessas e se curvou perante outros que nos tratam com desdém e comiseração.
Chegamos aqui por culpa própria. Deixamos que outros nos guiassem.
E a Pátria onde está?
Vamos ter que a encontrar nos versos dos nossos maiores. E é bom ler em voz alta as estrofes do poema épico que Camões nos legou. Assim, enquanto gritamos as palavras, sentimo-nos vivos e voltaremos a soletrar " Esta é a ditosa Patria minha amada".
Luís de Camões
OS LUSÍADAS ( canto terceiro – estrofes 20 e 21)
20

"Eis aqui, quase cume da cabeça
De Europa toda, o Reino Lusitano,
Onde a terra se acaba e o mar começa,
E onde Febo repousa no Oceano.
Este quis o Céu justo que floresça
Nas armas contra o torpe Mauritano,
Deitando-o de si fora, e lá na ardente
África estar quieto o não consente.

21

"Esta é a ditosa pátria minha amada,
A qual se o Céu me dá que eu sem perigo
Torne, com esta empresa já acabada,
Acabe-se esta luz ali comigo.
Esta foi Lusitânia, derivada
De Luso, ou Lisa, que de Baco antigo
Filhos foram, parece, ou companheiros,
E nela então os Íncolas primeiros.

SAUDADE
Esta será uma das mais belas palavras da Língua Portuguesa.
Uma palavra que nos acompanhou pelas andanças pelo mundo e que floresceu e feneceu nos nossos corações.
É um sentimento mais do que uma palavra, que fere e faz sangrar. “Saudade, gosto amargo de infelizes…) já escreveu Almeida Garrett, escritor, dramaturgo e poeta do século dezanove.
Saudade é a palavra intraduzível porque só a sente um Português em viajem. E assim é algo que se entranhou e se moldou no nosso coração. Faz parte do nosso destino e como tal é ainda mais bela quando partilha o nosso fado.



 
MAR
Percorrer os caminhos do mar, navegando entre os Oceanos foi o nosso destino enquanto Povo. Foi o nosso Fado.
Foi nos veleiros que cruzámos os oceanos, encontrámos novos mundos, e pudemos dizer com orgulho mal contido, nos locais mais distantes da terra, aqui esteve um Povo de marinheiros e de poetas. Um Povo valente e pobre que pouco mais tinha para dar, do que a coragem.
Enfrentrámos o desconhecido, dobrámos o cabo Bojador, indo para além da dor, e desafiamos o cabo das tormentas, os seus mitos e lendas. Demos a volta ao mundo.
O mar está à nossa porta. Mas já não temos marinheiros e sobretudo capitães que nos guiem no caminho.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

PALAVRAS

TERNURA

Quando menos esperava, um dia em que lia o jornal com a televisão aberta, fui despertado por uma frase dita por um entrevistado, num qualquer naqueles programas matinais. Não posso precisar o programa nem recordo o entrevistado que proferiu uma frase, que me ficou gravada.
Dizia, e espero não andar longe, o seguinte:
“ Deus como não pode estar em todos os lugares, inventou os Avós”.
Fiquei com esta frase, que não precisei de descontextualizar, pois era evidente o seu significado.
O nosso pequeno País anda perdido, de pernas para o ar e com uma tentativa de inversão de valores que é recorrente nos discursos ou intervenções da nossa classe política. Esse propósito, com raízes ideológicas que já se encontraram na história recente, assenta no conflito de gerações, nos slogans que os problemas da economia são fundamentalmente criados pelos reformados e pensionistas, duma Segurança Social que, pouco a pouco deixará de o ser, sendo entregue a um alto dignitário do regime, que se encarregará das políticas adequadas para encontrar a solução final.
Para aqueles que acreditaram que vivíamos num estado sério, dirigido por gente honesta e capaz, devem reconhecer que andaram toda a vida a ser enganados.
“Deus inventou os Avós”, aqueles que depois de um vida de trabalho, de privações, fizeram todos os sacrifícios para proporcionaram educação e formação aos filhos, para que eles pudessem seguir um caminho melhor, são agora a mão de Deus para acolher os filhos desempregados e os netos sem futuro.
Não sou religioso, não tive o privilégio de conhecer os meus Avós e, também não sou Avô. Mas em nome daqueles Avós, e muitos são, que têm partilhado a comida e o tecto com os descendentes, atrevo-me a gritar:
- Se Deus existe, será na face enrugada dos Avós que o poderemos encontrar.
E valha-nos o Senhor.



CAMINHO

Chamo um Poeta para me ajudar a escolher o caminho. Um velho professor de Liceu que eu ainda conheci na minha terra e que agora, mais do que antes, sinto a força das suas palavras. 
E como de empurrão em empurrão nos querem conduzir por um túnel escuro com a promessa de que um dia veremos uma réstia de luz e vinte anos mais tarde, os que resistirem à jornada, entrarão no Paraíso, recuso-me a aceitar o chamamento e como diz o Poeta.” E NUNCA VOU POR ALI…”
Cântico Negro
"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!

José Régio, in 'Poemas de Deus e do Diabo'



GREED
Julgo que a palavra ganância tem um efeito mais devastador quando pronunciada em língua Inglesa. E foi por isso que escolhi.
Poderão pensar que ao fazer esta escolha estou a tentar minimizar a ganância lusitana dos que se venderam e fizeram fortuna abocanhando tudo e todos, compararam respeitabilidade utilizando os políticos menores que se sentaram à mesa das migalhas.
Foi a ganância descontrolada dos banqueiros que arrastaram o mundo para um período de incerteza, de recessão, de desemprego e de pobreza. Mas os ricos ficaram mais ricos e como era de esperar, 1% da população é senhora de 99% da riqueza de qualquer Nação.
Nós, aqui na “Jangada de Pedra” como escreveu Saramago, também tivemos alguns efeitos dessa ganância. Mas a Justiça aqui funcionou e os malfeitores que roubaram estão todos presos e os bens desviados, foram recuperados. Pelo menos julgo que assim terá sido, mas como apenas me lembro do Vale e Azevedo sou capaz de estar equivocado. Mas enfim, se não foram condenados um dia, quem sabe quando, serão presentes no Juízo Final.
Que a ganância corrompe uma sociedade, basta estar atentos ao dia a dia mas também podemos rever um filme muito antigo de que vos deixo a sugestão. O nome “ CREED” é uma realização de Erich Von Stroheim, um dos maiores actores e realizadores que a sétima arte já conheceu

sábado, 12 de janeiro de 2013

PALAVRAS

DOR

Devo reconhecer. A minha tentativa de contar histórias foi isso mesmo, uma tentativa.
Pela minha cabeça perpassam fragmentos, pensamentos soltos, e não sou capaz de construir uma história que valha a pena contar.
Aliás tenho algum fastio, desengano e não consigo afastar os fantasmas que ocupam o meu pensamento e como um veneno insidioso me vai lentamente destruindo.
Os sonhos morreram. Em seu lugar ficou a realidade. Fria e suja, onde posso encontrar aqueles que me não despertam interesse. Nem respeito.
E os dias continuaram a sua marcha inexorável a caminho do abismo. Por cada um, juntaremos mais algumas centenas de desempregados, que se vão arrastando pelas esquinas ou nos recantos tentando ocultar o estigma da pobreza, que se cola ao corpo e corrompe a vontade.
Enquanto se esquecem direitos e se entregam vidas para que alguém possa apregoar a nobre atitude da caridade.
E as palavras soam frias como se ditas por um robot programado.
O poder apresenta-me um cálice de fel que devo beber.
Mas alguém me ajude, porque  só resistirei até acreditar que ser feliz, é possível.



BELEZA

Desliguei do mundo real, dos dias de revolta e desesperança e procurei refúgio junto daqueles que nunca me traíram. Os livros das minhas memórias, os Poetas que me preencheram os sonhos.
Faço-o com certeza que as palavras terão outra beleza e, mesmo que tristes, serão sempre belas, como a poesia.
Serão momentos em que ficarei feliz. Efémeros mas mesmo assim, ou ainda assim, são a água fresca que me lava a alma.
                                  
                                              
      CONDIÇÃO

Constrói ao menos
                                    qualquer coisa efémera
                                    Por mais não podes ser,
                                    sê ao menos efémero

Grava os passos na areia,
                                   desenha sobre  estrada
                                   teu vulto.
                                   É melhor do que nada.
                       
                       

A desfazer-te o rastro
                                   virá o Mar, é certo.
                                   Virá, é certo, a Noite
                                   beber a tua sombra.
                                  
Efémero? Serás…
                                   Mas presente
                                   no Mar, eternamente;
                                   na noite, para sempre.

  (CAMPO ABERTO-  Poemas de SEBASTIÃO DA GAMA)


3 – SENTIMENTO

Liberto do veneno do dia a dia, e para completar o prazer que um livro de poesia me tinha dado, procurei um filme para um fim de tarde sem queixume.
E quase por acaso peguei no último DVD que me haviam oferecido pelo Natal e que esquecera. Fiquei feliz, o filmeSciuscià" dirigido por Vittorio De Sica era um dos poucos daquele grande realizador que não me lembrava de ter visto.
E lembrei-me de um documentário assinado por Scorsese“ A minha viajem a Itália”, uma viagem pela época de ouro do cinema italiano do pós-guerra, a evocação nostálgica dos grandes filmes de Federico Fellini, Roberto Rosselini,
Vittorio de Sica e Luchino Visconti.
Mas Scorsese não mencionara este filme “Sciusciá”o que me deixou ainda mais interessado.
Mas foi uma bela surpresa. É um filme com uma bela história de amizade entre jovens, quase crianças, num Roma destruída e numa sociedade sem valores para além da sobrevivência.
Chorei no final, mas valeu a pena. Porque chorar mitiga a dor e deixa um sentimento que talvez só vendo e revendo o filme, se possa explicar.



sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

LAMÚRIA


Quase sem dar por isso, e o ano 2012 terminou. Com alívio mas com o prenúncio assustador do que vem a seguir.
No mundo que eu conheci e em que acreditei ,via um céu azul, campos verdes matizados por flores campestres, ouvia o chilrear dos pássaros, o balido das ovelhas, admirava o luar de Agosto e aguardava com esperança, que melhores dias viriam.
Os anos passaram, alguns bem difíceis, e pouco a pouco as alegrias foram-se transformando em inquietações e a esperança perdeu brilho. E o mundo passou a ser cinzento.
Os receios do apocalipse anunciado pela civilização Maia, encheu alguns noticiários de televisões famintas de assunto bizarro ou dramático para atrair espectadores, mas não passaram disso mesmo. Matéria jornalística sem conteúdo, sem critério, mas tão ao gosto dos homens e mulheres capturados pela Televisão.
Para esses, os vencidos da vida, os velhos cada vez mais perdidos no nevoeiro da solidão, terreno fértil para os dramas do quotidiano, a Televisão passou a ser o seu elo de ligação com o mundo que pouco a pouco haviam esquecido. E eles beberam os crimes mais tenebrosos, as violações, a fome e a miséria, os infanticídios, os homicídios mais cruéis e fecharam-se no seu canto, aguardando a última viagem.
Deixaram de contar na sociedade que agora os olha como uma despesa desnecessária.
Afinal a profecia Maia tinha algo de premonitório. O mundo caminhava para o abismo, não por causas naturais mas por ambição humana.
Como é que se recuperam os direitos desses velhos espoliados de tudo, até da esperança?
Penso por mim, que tenho resistido ao canto das sereias, gosto de escolher a informação que me dá prazer e não ofende a minha, ainda que debilitada, inteligência. E agarro-me aos jornais, poucos que ainda resistem e que não desmerecem esse título. Prefiro as palavras escritas, gosto de percorrer as páginas, cheirar o papel, folhear as páginas, escolher valorizando o trabalho dos jornalistas que não se venderam e com os quais aprendi a ver o mundo e a sociedade.
Contudo sinto-me cada vez mais só. Ao longo da minha vida fui perdendo os meus jornais. Eram meus porque neles aprendi a formar opinião, a reclamar o direito a ser informado com inteligência e liberdade. Mas como um acto do apocalipse a imprensa livre está condenada a breve prazo. E as consequências serão Dantescas.
O mundo é agora dominado pelos medíocres, pelos espertalhões, pelos doutores feitos à pressa numa qualquer Universidade de Verão (Um fim de semana em que alguns futuros políticos medíocres vão bebendo as sábias palavras dos que conseguiram trepar aos lugares cimeiros) sem qualquer outra classificação para além da esperteza de se fazerem notados nas sessões de propaganda e nos comícios ou então comprando favores, porque do outro lado está sempre alguém disposto a retribuir a fidelidade.
E a sociedade é agora dominada pelo poder mais destruidor que se conhece. O poder financeiro, sem dono, sem nome, com ídolos a que se presta homenagem e com inúmeros serventuários para acalmar a sua sede de glória. O poder que corrompe, que compra e escolhe.
Não será este cataclismo, também um dos capítulos das previsões dos Maias?
Sim, este mundo onde se matam inocentes, se alimenta o conflito de gerações, se alimenta o racismo e a xenofobia e a intolerância religiosa, não é o mundo que eu conheci, ou que eu sonhei.
Mas é aquele em que viveremos os últimos dias. E que ajudamos a criar quando nos demitimos das nossas responsabilidades, entregando-nos nas mãos de um qualquer vendedor do Templo, que nunca questionámos no caminho, a não ser por algo que tivesse atrapalhado o nosso egoísmo.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                  
Sim, é verdade eu sou culpado.
Nasci e cresci com o regime Salazarista. Fiz a guerra que me mandaram fazer, e mesmo sabendo que era uma luta inglória e injusta, não fugi.
Gritei com a liberdade quando os cravos floriram. Chorei quando eles murcharam e sem saber o que fazer entregamos o nosso destino colectivo a quem não tinha nada para nos dar.
Cometi a leviandade de votar e tantas vezes me enganei.
E agora deixo a lamúria em forma de poema:

            LAMÚRIA DO CEGO QUE ANTES O FOSSE

                        Quando era cego eu previa
                        (que freguesia!)
                        O que ia acontecer.
                        Era o que se dizia…

                        Mas agora, que bem vejo,
                        só agoiro do que vejo
                        e já ninguém me quer crer…

                        Porquê,
                        Se todos o podem ver!

                        Alexandre O’Neill
             

RECOMEÇAR?


Desde que coloquei o último texto, no dia 19 de Dezembro de 2012, coloquei a mim próprio a questão de continuar ou não a publicar neste blog.
O desalento ou o cansaço justificava o fim mas lá bem no fundo havia uma luzinha a indicar o caminho. Segue em frente, dizia eu nos momentos em que essa luz me acenava como um desafio.
E recomecei. Escrevi um, dois, seis, talvez mais textos, mas invariavelmente os meus olhos fixavam-se na tecla eliminar e com raiva carreguei.
Deixei passar mais algum tempo, e num caderno de apontamentos que raramente usara fui redigindo palavras descarregadas, alinhavando ideias, riscando aqui, reescrevendo mais à frente até que me perdi. A raiva e a falha de controlo das minhas emoções tornaram ilegível quase tudo o que garatujara.
E voltar ao computador foi uma decisão que demorei a tomar mas que era a única possível. Parar seria morrer um pouco.
E pronto, aqui estou eu, sangrando as lamúrias de uma vida da qual guardo recordações mas para a qual não auguro grande futuro.
E hoje mesmo aqui vai a primeira confusão. O retrato dos meus conflitos interiores e a lamúria que, bem sabemos, não leva a nada.