quinta-feira, 30 de junho de 2011

O RAPTO

6 – O INFORMADOR

Foi com um ar preocupado que António Pedro voltou para a secretária, pegou no cartão de visita, simples mas de bom gosto. Profissão médica com consultório em Lisboa e residente em Cascais. Escrito, manualmente, no verso encontrou o número do telemóvel.
Ligou para o antigo colega e amigo Inspector Artur Marques, o telemóvel estava desligado e a sua chamada foi remetida para a caixa de correio. Não deixou mensagem.
Esteve a percorrer sítios da Internet para se actualizar. Já não lia jornais há muito tempo e Televisão nem a ligava. Estava fora do mundo que o rodeava e precisava de voltar a saber o que acontecera em Portugal e no Mundo que pudesse ter algo a ver com o desaparecimento de crianças. Ficou admirado com a quantidade de informação sobre o assunto. Só na Europa a taxa de desaparecimento de pessoas, velhos, jovens de crianças era enorme e assustadora. Que mundo é este em que vivemos, perguntava-se?
Ouviu o sinal de chegada de uma mensagem. Abriu era do Artur Mateus e dizia:
- António, o que achaste do desaparecimento da filha da doutora Maria Clara? Precisamos de falar sobre o assunto, mas só estarei disponível à noite. Eu ligo-te. Artur.
Espreitou pela janela, parecia ir chover. Vestiu o impermeável, fechou o gabinete e saiu para a rua. Como tantas vezes fizera começou a andar até ao Marquês, subiu a Fontes Pereira de Melo e dali seguiu para a Almirante Reis. Passou perto da Igreja dos Anjos, onde um significativo grupo de sem abrigo aguardava a sopa da noite. Nas ruas adjacentes, por entre os carros, vendia-se droga e grupos de dois ou três jovens injectavam-se, com heroína ou qualquer outro produto manipulado. Quantas vezes não assistira àquele espectáculo. Quantos traficantes não havia levado para a prisão. Teria valido a pena, interrogou-se? De facto, conseguira desmantelar alguns grupos organizados, mas a verdade é que outros haviam tomado conta do negócio.
Entrou num café pequeno e mal iluminado, sentou-se ao balcão bebendo um café, enquanto pelo canto do olho vigiava os outros clientes. O olhar cruzou-se com um velho conhecido, que imediatamente se dirigiu à porta para fugir. Mas passou perto, pelo que não foi difícil agarrá-lo e com ele seguro por um braço, sair para a rua.
- Então Carlos o que é que fizeste para saíres com tanta pressa? Já não queres falar comigo?
- Oh senhor Inspector, juro que não fiz nada de mal.
- Está bem, então anda dar uma volta comigo, porque preciso de te falar. Não tentes fugir, pois sabes que te apanho quando quiser e se fores a julgamento apanhas uma pena jeitosa.
- Oh senhor Inspector, o senhor sabe que eu nunca me meti em coisas grandes, e que o negócio é só para sobreviver. Tenha pena de mim e deixe-me ir embora.
- Olha Carlos, tu podes não acreditar, mas eu sempre pensei que bastava um pequeno esforço da tua parte, para largares esse mundo em que vives, e voltares a ser um rapaz normal. Vou por à prova esta minha teoria.
Eu já não pertenço aos quadros da PJ, mas abri um pequeno escritório de investigações e irei precisar de informações. Pode ser uma oportunidade para ti. Amanhã vais ter comigo ao escritório, e deu-lhe a morada. Quero-te ver por volta das seis da tarde. Entretanto vai abrindo os olhos e presta atenção às conversas sobre os negócios da noite. Falo de tráfico de armas, de pessoas e de droga. Eu perdi essa informação, pois estive muito tempo afastado dessa área criminal. Tu vais ser meu colaborador, já nos conhecemos há muito tempo e sabes que te posso ajudar.
- Mas porquê eu, um solitário e independente? No mundo da noite e dos negócios escuros eu não passo de um Zé-ninguém!
- Não sejas modesto Carlos, tu tens algo que a maioria dos teus amigos não sabe sequer o que é. És inteligente, observador, e sabes guardar segredos. Essas características são adequadas para o que eu pretendo de ti. Em resumo, quero que oiças e vejas por mim, que faças perguntas e me contes as respostas. Mas tudo de forma informal. Nunca te porei em risco, podes confiar. Já uma vez me ajudaste e agora peço-te ajuda novamente. Vai, e não te esqueças, amanhã às seis da tarde. Toma lá algum dinheiro para te arranjares. Não me apareças com o aspecto desleixado. Faz por merecer esta oportunidade. Eu espero por ti e confio que lá estarás.

terça-feira, 28 de junho de 2011

O RAPTO

5 – O LADO OBSCURO

Com um ar distante, António Pedro foi dizendo que a PJ, tinha um excelente departamento especializado para tratar estes casos, tem tido muito sucesso e, além do mais, tem também os meios necessários e a experiência para investigar esse tipo de situações. Eu pelo contrário não sou experiente nessa área da investigação.
Maria Clara argumentou que a PJ tinha sido o seu primeiro caminho. Dera todas as informações que lhe pediram e o processo fora aberto. Mas, dizia recear que, apesar da reconhecida competência da Polícia, o caso da filha fosse apenas mais um.
Por outro lado, vim ter consigo recomendada por um amigo e antigo colega, porque o senhor tem uma grande vantagem, tem tempo e uma reconhecida sensibilidade e eu ficarei mais tranquila se o desaparecimento da minha filha for investigado de perto, quase me atrevo a dizer em regime de exclusividade. E estou disposta a pagar por isso. Peço não me desiluda eu acredito que o senhor vai conseguir trazer de volta a minha filha.
Ficaram um momento em silêncio. O apelo de Maria Clara tinha sido feito de forma veemente e nervosa, mas António Pedro não vislumbrara no olhar angústia e dor. Era estranho, pensava, não lhe parecera que a visitante, fosse assim tão capaz de esconder sentimentos tão naturais.
Prolongou o silêncio, olhava fixamente o rosto da senhora, como se quisesse captar qualquer sinal que o levasse a recusar. Foi com um frémito que desconfiou, que o caso não era apenas o desaparecimento da jovem, e isso fê-lo mudar de ideias. Sentira algum desconforto, como se alguém o estivesse a empurrar para um lado negro. Alguém que sabia que só assim ele aceitaria o desafio. Fora certamente o amigo, mas não entendia o porquê.
Levantou-se da secretária, andou alguns passos de um lado para o outro, parou em frente da cliente, olhou-a nos olhos e disse:
- Minha senhora, estou disposto a aceitar o seu caso mas terá de confiar, absolutamente, em mim. Isso significa, dar-me todas as informações que eu lhe pedir, mesmo se elas lhe parecerem deslocadas ou até demasiado íntimas. Vou precisar de a conhecer, saber o seu agregado familiar, conhecer o que pensa o Pai da criança, como é a rotina do vosso dia a dia, onde passam férias, com quem costumam conviver, amigos, etc.
Aceitarei investigar o caso que me traz, mas quero que fique bem claro, não vou ser simpático e que a conclusão, se a ela chegar, pode ser duma imensa dor e eu não deixarei de a assinalar.
Se estiver de acordo, preencha agora ou entregue-me depois, o questionário que aqui tem, e estendeu-lhe uma folha A 4, e junte uma série de fotos da sua filha, sózinha ou em grupo, que tenham sido tiradas nos dois últimos anos.
Quanto ao pagamento dos meus serviços falaremos mais tarde. Não antevejo custos extraordinários.
Maria Clara, aceitou as regras sem levantar qualquer obstáculo, dizendo apenas que não gostaria de ver a fotografia da filha, nos ecrãs da Televisão ou nas primeiras páginas dos jornais. Compreenda o meu desejo de privacidade.
Pareceu-lhe razoável e tranquilizou-a.
Concentre-se no fundamental, tente encontrar qualquer coisa a que não tenha prestado atenção e que poderia ter originado a que a sua filha perdesse a confiança e fugisse. Ás vezes há um pequeno sinal e isso pode ser a diferença entre o sucesso ou o insucesso. Mas concluiu pense bem, não me esconda nada.
Aqui tem o meu cartão com os números de telefone e o endereço de correio electrónico. Esteja à vontade para me contactar se algo lhe ocorrer.
Amanhã, pelas 14 horas gostaria de a receber, e comentar os dados do questionário que lhe entreguei. Esperarei por si. Entretanto deixe-me por favor um cartão com o nome e endereço.
Acompanhou a cliente à porta, despediu-se com um aperto de mão que lhe pareceu algo estranho. Os olhos de Maria Clara estavam brilhantes e ele sentiu um fluxo de sangue que lhe percorreu as veias. Algo lhe parecia fora do contexto.


domingo, 26 de junho de 2011

O RAPTO

4 – O ENCONTRO

A decisão, na realidade a única decisão que fora capaz de tomar desde que saíra da Polícia e de casa, não fora um caminho de ruptura. Nada fora fácil, em tudo errara ou desistira. O caminho não o fez, retomou-o ainda que com algumas cambiantes. O vírus estava lá, todas as suas qualidades e defeitos se mantiveram. António Pedro voltara ao rebanho.
E de tal modo que, quando a Administração do condomínio, lhe sugerira, a conveniência de colocar na placa de entrada do edifício, o nome e a actividade, decidiu indicar, simplesmente, o que sempre fora:

António P. Castro – Investigador

Demorou algum tempo a arrumar as estantes com os livros que lhe interessavam, contou à ex-mulher e alguns amigos o que tinha decidido fazer e ficou esperando o seu primeiro cliente”.
Naquele dia, o telefone interno tocou e do outro lado a recepcionista perguntou:
- Tenho aqui à entrada uma senhora que lhe pretende falar. Não tem contudo hora marcada e não existe registo de chamada prévia. O Senhor Doutor pode recebê-la?
Hesitou, algum caso de divórcio quase de certeza, o que não me agrada mesmo nada. Mas mesmo com essa dúvida e com a secreta esperança de encontrar um caso interessante, optou por responder, sim.
- Pode subir ao 5º. Andar letra C, o Doutor António Pedro, espera-a minha senhora, informou a recepcionista.
António Pedro retomou o seu hábito, ajeitou o nó da gravata, vestiu o casaco, mirou-se ao espelho e gostou de se ver, e abriu a porta de acesso ao gabinete.
A mulher que entrou era atraente, alta, cabelo negro, como os olhos, elegantemente vestida, e não passaria despercebida em qualquer lugar. Andaria na casa dos trinta e cinco anos. Ajudou-a a tirar o casaco, que colocou dobrado nas costas de uma cadeira, puxou de uma poltrona de braços, colocada em frente da secretária e convidou-a a sentar-se.
- Então, em que lhe posso ser útil, perguntou?
- O Doutor desculpe ter vindo sem marcação, mas o seu nome foi-me sugerido pelo Inspector Marques da PJ, como sendo a pessoa certa para me ajudar.
O meu nome é Maria Clara Figueiredo de Meneses, e estou muito preocupada com o desaparecimento da minha filha de 12 anos. E por isso aqui estou, para contratar os seus serviços, quero encontrar a minha filha.
António Pedro sentiu alguma frustração. Depositara esperanças num processo apelativo, e afinal era, apenas, um caso de desaparecimento de uma menor. Com aquela idade o costume era de fuga com o namorado ou o receio de comunicar algo que a embaraçasse, fosse sobre o aproveitamento escolar ou algum problema típico duma adolescente. Por momentos pensou recusar. Mas qualquer coisa no olhar da mulher sentada na sua frente fê-lo estremecer e tomou a decisão de continuar. Aqueles olhos negros, profundos, desvendaram-lhe a alma. Ele sentiu que o iriam fazer esquecer o passado recente.

sábado, 25 de junho de 2011

O RAPTO

3 – UM HOMEM PERDIDO NA CIDADE

Nos primeiros momentos da sua nova situação, António Pedro confortara-se, pensando nas vantagens que poderia obter, sendo um homem liberto de compromissos. Queria viajar por África, sonhava visitar o Delta do Okavango, mas Filomena era muito citadina e dissera sempre não, optando pela Itália a França e, sobretudo Nova Iorque.
Agora só e sem nada que o impedisse, teria a oportunidade de cumprir esse desejo, mas o desejo depressa seria esquecido na preguiça e desilusão de cada dia que passava.
Ao deixar um trabalho muito intenso e absorvente, teria tempo para escrever as memórias e ler os livros que se amontoavam no escritório. Rejubilava com isso, contudo nada fizera.
A separação fora um erro. Ele sofria mais quando encontrava a Mulher e a via mais alegre. Ela sempre se cuidara e tinha muito gosto na forma com que se vestia. E continuava assim.
Ele, por sua vez, apesar de vaidoso, sempre escondera esse sentimento, aparentando distância e indiferença, algum charme discreto, alimentando assim os olhares cheios de promessas das mulheres que conhecera. Por ironia os colegas entendiam que esse comportamento era uma estratégia de um homem tímido e inseguro.
Todavia agora perdera o encanto que lhe reconheciam e até começou a descuidar a sua apresentação.
Nada aconteceu como previra. Menos de 6 meses depois da reforma, já estava cansado. Os dias custavam a passar e começou a ficar sentado em frente da TV, sonolento, e dia a dia mais alheio do mundo.
Dera voltas à cabeça, para encontrar qualquer coisa, que lhe ocupasse o tempo. Era egocêntrico bastante, para pensar que tudo se devia concentrar à sua volta. Em consequência, qualquer actividade que implicasse partilha ou supervisão, dera sempre mau resultado. Os outros não o compreendiam nem aceitavam a sua, por vezes, irritante impertinência.
Sentira-se frustrado e incompreendido, e concluíra que o que quisesse fazer teria de ser sozinho. Só não sabia era o quê.
Certo dia, em que passeava pelas muralhas do Castelo de S. Jorge, encontrou um antigo colega que lhe deu uma palmada no ombro dizendo:
- António, o que andas a fazer? À espera da morte? Ela vai chegar um dia não te preocupes!
As palavras do amigo deixaram-no preocupado. Estaria assim tão mudado, perguntou-se? Quando chegou a casa olhou-se no espelho, alisou o cabelo grisalho mas ainda farto e percebeu que tinha mais rugas do que quando passava dias e dias a investigar e que até o fato que usava estava amarrotado dando um ar de abandono. Envelhecera e alguma coisa tinha de fazer para mudar.
Depois de muito pensar, escolhera o caminho. Voltou para fazer o que sempre o apaixonara. Iria abrir um pequeno escritório de investigações. Só aceitaria trabalho se fosse do seu agrado, pois não ficaria dependente da situação financeira. Era mais do que um negócio, o que pretendia era encontrar razões para activar as células e despertar os sentidos.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

O RAPTO

2 – Um novo olhar pela noite

Morava perto do escritório. Nascera e fora criado no Bairro de Campo de Ourique e com a morte dos Pais ficara com a casa que agora ocupara depois da zanga com Filomena.
Foi a pé percorrendo as ruas que não bem conhecia. Pouca gente, o Bairro tinha uma população envelhecida que se resguardava da noite. Caminhava lembrando os cafés que já não existiam, as lojas entretanto fechadas, o jardim sem jovens. Conhecia a noite na cidade, mas a outra noite, a dos perigos, dos desencontros, da miséria e do abandono. Mas agora no silêncio das ruas que ia percorrendo até casa, sentia uma nova noite, tão calma que lhe apetecia abraçar.
Só ao chegar a casa se apercebeu que não comia desde o almoço. Também não queria procurar em casa alguma coisa para preparar uma refeição ainda que ligeira. Tinha feito algumas compras na mercearia da rua, mas como a cozinha não era o seu lugar preferido, os produtos que escolhera estavam ainda nos sacos de compras. Apenas se lembrara de guardar no frigorífico alguns iogurtes e seria com um deles que acalmaria o estômago.
A casa era confortável mas tão vazia que se tornava fria. Faltava calor humano. Enquanto comia sem gosto um dos iogurtes, olhou para trás e relembrou:
“Fora apenas por orgulho, que não fora capaz de reconhecer o equívoco, que a sua vaidade masculina alimentara, que mais não fora que uma relação platónica mal resolvida. Não dera qualquer explicação quanto Filomena o confrontou e pior, sentira-se o ofendido.
Cometera o primeiro erro, reconhecera agora. Arrumara meia dúzia de objectos pessoais, enchera uma mala de roupa, empacotou a papelada solta e saíra de casa, instalando-se no apartamento onde agora estava.
Na realidade confiava que a sua situação, fruto de uma birra, em breve voltaria à normalidade. Acreditara nisso, mas não dera o primeiro passo. Filomena não tardaria a telefonar para o convidar a regressar.
Cometera um segundo erro. Esperara o contacto que nunca chegara.
Para sua surpresa, a mulher, que exercia advocacia num escritório de prestígio, decidira também, abandonar a casa comum e ir viver para casa dos Pais.
Ele não tinha família próxima. Ficou só. Abdicou um pouco do seu orgulho e conseguiu que a mulher se encontrasse com ele, ocasionalmente, mas nunca manifestando o desejo, verdadeiro, de reatar a vida em comum. Nos encontros esporádicos, falavam como dois amigos, evitando o que os separara. Julgara que pouco a pouco, a situação iria ficando esquecida. Não queria acreditar e reconhecer, que os erros que cometera pudessem pôr em causa, vinte anos dum casamento feliz. Mais outro engano. Ele subestimara o carácter da mulher.
O que mais lhe custava era que ele amava Filomena e sentia-lhe a falta.
Mas teimava em não o confessar e era demasiado orgulhoso para pedir perdão. Quando Filomena, a meio de uma conversa inócua, e perante o enfado com que ele a ouvia falar do seu trabalho, lhe perguntou, num repente, se ele queria o divórcio, estremeceu e respondeu negativamente.
Mas aquela simples pergunta, causara-lhe um estranho mal-estar. Ela já teria outra relação, concluíra roído de ciúmes.”
O iogurte ficou a meio, optou por fumar mais um cigarro, abrindo a janela da sala para deixar entrar a aragem fresca que se sentia. Mas a dor de cabeça não desapareceu.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

O RAPTO

1 – Meia-noite

Era o entardecer de um dia de fim de Verão e o sol que já se escondia por entre as nuvens dispersas perdia luz e calor. António Pedro acabara de entrar no gabinete, recentemente alugado, num edifício de escritórios nas Amoreiras. Ficou fascinado com a paisagem que se lhe oferecia, sentindo um agradável torpor que se acalmava os sentidos. Como era belo o entardecer e o lento cair da noite.
Foi buscar uma cadeira e um cinzeiro, sentou-se em frente da janela que abriu, para beber o ar da noite pura e serena enquanto saboreava um cigarro, enviando o fumo em círculos que se diluíam no ar.
Entrara agitado no seu gabinete. Tinha sido um dia a correr de um lado para o outro, juntando os papéis que queria levar, os livros que sempre o acompanhavam e escolhendo o computador mais adequado ao seu trabalho.
Finalmente estava tranquilo. Olhava para o seu novo espaço e para a paisagem que a ampla janela lhe oferecia. Era uma nova vida que estava começando, cheia de esperança e ao mesmo tempo de ansiedade.
Tudo na sua vida se modificara no período muito curto. Primeiro o seu trabalho e depois o seu casamento.
Mas a vida é assim, nada é eterno tudo é passageiro.
Acabou de fumar o segundo cigarro, teria de reduzir a sua dependência, mas seria com o tempo, não era capaz de o fazer de um momento para o outro.
Perdeu-se na noite calma e serena onde nada acontecia. Mas com ele ficaram as recordações.
Abriu o computador, olhou de relance para o correio electrónico, mas nada havia de interessante. Não admira, pensou ele, apenas falei a um reduzido grupo de amigos.E desfilou o seu passado tão recente:
“Até ele mesmo se surpreendera, quando com 54 anos de idade decidira abandonar o cargo de Inspector da Polícia Judiciária. Tinha sido uma decisão repentina, motivada por algum cansaço e pelas mazelas que uma longa e difícil investigação, que lhe ocupara mais de dois anos de trabalho e dedicação exclusiva, perseguindo o autor de alguns crimes hediondos. Conseguira mas nunca mais fora o mesmo. O seu perfil psicológico ficara afectado porque em vez do raciocínio frio e analítico passara a deixar-se levar pelo ódio e pela revolta.
Ficara cansado e escolhera outro caminho. Esta alteração de personalidade afectara, também, a sua relação conjugal.
A mulher, Filomena, tinha sido sempre o suporte e o amparo nos momentos difíceis, mas um pequeno incidente havia minado a confiança que ela, sempre depositara nele.
Encontrara por acaso, aquando das arrumações, uma carta que fora dirigida ao marido, redigida em termos apaixonados. Quando lhe mostrara a carta e lhe pedira explicações, ele incomodado, respondera ter sido uma paixão não correspondida, duma antiga colega de Universidade, um relacionalmento que terminara antes do casamento. Filomena, nada dissera, mas mostrara-lhe a carta, datada de seis meses atrás.
Nunca pensei que me andasses a trair, dissera ela, e esta não terá sido a única”.
António Pedro despertou quando o relógio de parede tocou as doze badaladas. Nem se dera conta do escoar do tempo.
Sacudiu as memórias, sentiu pela primeira vez o frio da noite e a angústia de regressar a uma casa vazia.


terça-feira, 21 de junho de 2011

TWELVE MONKEYS - REMAKE

Depois de publicar o post de ontem, fui relembrar o filme a que me referi. Fiquei aterrado pelo que nem sequer tenho vontade de voltar ao tema. Faltava um dos macacos e eu não sabia, como não sei, se era o cientista louco ou o vírus.
Depois de ouvir os discursos requentados de hoje aquando da tomada de posse do novo Governo e da nova Assembleia, fiquei convencido que o macaco em falta era o próprio vírus.
Com tanta convicção, até sou capaz de apostar que o escritor fantasma deve ter sido o mesmo para todos os discursos. Ressalvo, porque gostei, os proferidos pela nova Presidente da Assembleia da República e pela leader da bancada do PS.
Os outros discursos da tomada de posse do Governo, foram o modelo cinco, página quarenta e nove, do manual de como escrever qualquer coisa que se ouça e se deve esquecer no dia seguinte. Para quem não conhece o manual, sublinho que a sua qualidade é tanta que a última página, número cinquenta, apenas recomenda a entoação, a pausa para as palmas de circunstância e o ar sério que é conveniente.
Mas " last but not least", retomando a frase de grande criatividade, referida por um ilustre e culto Deputado no discurso de hoje da dita Assembleia, peço perdão por não ter dito nada. Também para o que me pagam a mais não sou obrigado.
Para não me chamarem os nomes que estão a pensar, deixo a promessa que vou recomeçar a escrever, mal dirão muitos, histórias que não sejam o produto de noites mal dormidas e cheias de pesadelos.
Até lá ouçam a canção tema e vejam as imagens de um dos meus filmes preferidos. Johnny Guitar de Nicholas Ray

segunda-feira, 20 de junho de 2011

TWELVE MONKEYS

Confesso que resisti até que fui capaz. Mas às vezes não chega a nossa vontade, pois a oportunidade surge quando menos se espera e ou a aproveitamos ou acabará esquecida na poeira que nos rodeia. E não estou a falar de poluição atmosférica, mas da outra.
Quantas vezes não alinhavei algumas frases que se vieram a revelar desajustadas no tempo e no modo?
Mesmo que queira não saberei dizer quantas.
Mas eu resisto a falar do que não conheço bem. É mais prudente e o tempo não está para grandes desafios.
Vem isto a propósito duma ideia que me atormentava há já alguns dias. Uma noite da semana passada, acordei de um sonho com um filme já antigo, o título original era “Twelve Monkeys”. Estava agitado e com suores frios, mas o porquê não percebia.
Num período tão rico de acontecimentos políticos da maior relevância, formação do novo Governo, e sendo eu uma pessoa que gosta de se manter informado, por isso faço zapping dos canais de televisão na altura dos telejornais, não conseguia estabelecer qualquer ligação entre o quotidiano e o meu sonho.
Até que ao mudar de canal para canal, esbarrei com o programa do comentador mais influente, o Professor Doutor Marcelo Rebelo de Sousa, e que na altura perorava, com a isenção de sempre, sobre os novos ministros.
Pronto, a conversa do ilustre Professor deu-me a paz de espírito. Eu até sei que os ministros só são onze e no meu sonho eram doze. Mas não tem importância, o que faltava não deveria ser assim tão importante.
Pode haver uma outra ligação entre o filme e a realidade, mas não vou por aí. Se acontecer isso será pura coincidência.

domingo, 19 de junho de 2011

O ESTRANHO CASO DO ESCRITOR FANTASMA

6º. – Capítulo

Como qualquer pessoa minimamente informada, conhecedora do estranho mundo da informação e da lógica e dos estudos elaborados pelas Agências de Comunicação compreenderia, o projecto estava condenado ao fracasso.
Da primeira edição, onde todos se empenharam, as vendas foram uma desgraça.
As pessoas que tiveram oportunidade de folhear o jornal gostaram, acharam que o jornal era diferente mas não compraram. Os vendedores fizeram questão de informar a Direcção que o sentimento geral que tinham notado era que ao jornal faltava vida. Apenas alguns estudantes Universitários lhe tinham atribuído nota positiva. O público em geral não gostara.
Um amigo, que deixara de lado os seus sonhos, tinha acabado contratado por uma Agência de Comunicação e fazia agora parte duma equipa que aconselhava um candidato a Deputado, explicou-nos os erros tínhamos cometido.
Dizia ele que um jornal é um produto, igual a tantos outros, para ser vendido e dar lucro, e que tem se submeter aos princípios fundamentais do mercado. Que são:
Primeiro – Nunca se comprometer. As notícias devem ser dadas de forma enviesada para que possam ser desmentidas ou clarificadas se não forem absolutamente fidedignas. E acrescentou isso é coisa que só por acidente se pode comprovar. Fazer jornalismo de investigação é muito caro e podem esbarrar em obstáculos imprevistos.
Segundo – É preciso compreender que o público leitor é cada vez menos exigente, pois é constantemente bombardeado com notícias de hora a hora nas Rádios e três ou quatro vezes por dia em cada estação de Televisão. Não precisam de ler e interpretar uma notícia pois basta ver e ouvir e de seguida esquecer. O que o jornal pode é acompanhar os outros órgãos de informação escrita, publicando pequenos anúncios e, designadamente, convites com fotografias apelativas para encontros amorosos. Aí o concorrente é a Internet mas muito do público consumidor não domina esta ferramenta.
Terceira – A política não vende. O futebol sim, tem que ser um tema recorrente, com entrevistas e comentários. O jornal só tem que ter algum cuidado no espaço que dedica aos três grandes. Terá de reservar sessenta por cento das páginas para um clube, vinte por centro para outro, dezassete por cento para o outro e o resto para os restantes clubes e outras modalidades.
Em conclusão se vocês quiserem ganhar umas centenas de leitores têm que respeitar os princípios que enunciei.
O desânimo foi geral. Ninguém queria aceitar os conselhos mas, como dizia Luís Miguel ele, o nosso amigo tem razão. Ou continuamos o caminho ou mudamos. Eu dou já a minha posição. Prefiro fechar a que nos tenhamos que nos vender. Mas podemos influenciar as pessoas, se transformarmos o nosso projecto, num embrião de uma Agência de Comunicação vocacionada para gerir carreiras.
Iremos para o mercado a propor os nossos serviços. E o mercado ainda tem lugar para uma Agência inovadora, que é assim que teremos de ser. Não é possível ser candidato a uma Concelhia dum Partido, a uma Freguesia, a uma Câmara, a um emprego no Estado, sem que por detrás esteja outrem para pensar.
Também poremos os nossos serviços ao dispor de Empresas e Empresários, interessados em obter um subsídio ou um tratamento favorável num qualquer concurso ou uma redução da carga fiscal.
A nossa maior valia será mais evidente se todos nós pensarmos como o fazem os escritores fantasmas. Escreveremos à medida
Nada que seja dito, nada que alguém queira escrever, nenhuma entrevista de um nosso representado, se fará sem a nossa chancela.
Luís Miguel parou olhando o ar incrédulo dos amigos.
Luísa interpretou o pensamento dos restantes, dizendo:
- Luís Miguel o que nos estás a dizer é precisamente o oposto do que sonhámos. Foi só por um fracasso que mudastes de opinião?
- Não, eu tomei consciência que o mundo não é dos mais capazes ou dos mais bem intencionados. O sucesso é dos mais espertos e com menos escrúpulos. Não adianta combater com armas desiguais. O preço dos sonhos está incomportável.
Alguém irá ler ou ouvir o que nós pensamos. Só que seremos apenas, o escritor fantasma.
FIM

terça-feira, 14 de junho de 2011

REFLEXÃO

Hoje é dia de reflexão. Vai um pouco atrasado, devia tê-lo feito no sábado antes das recentes eleições mas por qualquer razão que nem me lembro qual foi, não o fiz.
Não fiz reflexão e só fui votar porque o nosso distinto e simples Presidente avisou que se o não fizesse não teria o direito de criticar.
O nosso Presidente é uma pessoa que me merece todo o respeito, e embora a maior parte das vezes não entenda o que ele diz, eu acredito.
Sou por isso uma pessoa crédula.
Estava a dizer que hoje iria ser um dia de reflexão, porque alguém teria falado no meu nome para ocupar uma Secretaria de Estado de qualquer coisa, e a informação chegou aos meus ouvidos, vinda de fonte digna de confiança.
Fiquei admirado, não pertenço a nenhum partido, não sou comentador encartado, não sou empresário, não fundei um Banco, não tenho contas no offshore, nunca fui Presidente de Junta de Freguesia, nunca escrevi os discursos nem do Sócrates nem do Presidente enfim nunca fui um simpatizante exemplar, do tipo Maria vai com as outras, pelo que pus algumas reservas sobre a eventual consulta.
Mas confesso que fiquei ansioso, quem não ficaria?
Afinal fui apenas vítima de um engano. Uma pessoa que eu nunca conhecera, estabeleceu o contacto, tratando-me com todo o respeito por Doutor Barreto isto, mais Doutor Barreto aquilo, mais Doutor Barreto para acolá e com tanta deferência logo percebi o engano. Desculpável, aliás. Acontece que eu também tenho no meu Boletim de Eleitor o meu sobrenome Barreto, e calculem o embaraço, voto em Massamá.
O Barreto que o diligente assessor procurava não era eu, era outro está bem de ver.
Fiquei, confesso, com um amargo de boca. Eu por momentos vi-me de mangas arregaçadas, como tantos outros que já estão, pelo que ouvi dizer.
Com tudo isto esqueci porque é que afinal, para além do lapso do assessor, mantive o dia de reflexão?
Já sei! Não sabia o que escrever, já tinha publicado duzentos textos que, ainda que só espreitados por engano, envolveram pelo menos um toque no teclado de mais de duas mil pessoas, desde o nosso torrão, passando pelo Brasil, pelos EUA, pela Malásia, Singapura, Alemanha e três ou quatro Espanhóis.
Isso deu-me que pensar. Mas só sei dizer: SARAVÁ

segunda-feira, 13 de junho de 2011

O ESTRANHO CASO DO ESCRITOR FANTASMA

5º. Capítulo

O grupo saiu da reunião empolgado e desejoso de avançar com o projecto. Tinham acertado novo encontro para daí a uma semana, todos deviam levar o trabalho preparado consoante o diagrama elaborado.
Iriam aprovar as ideias gerais e fixar a data de lançamento do primeiro número.
Filipe começaria a criar nas redes sociais um sítio sobre o novo projecto, enunciando princípios gerais e colhendo opiniões mas, sublinhando sempre que não iria ser um jornal on-line. O leitor deveria ter prazer em sentir o cheiro da tinta de impressão, compreender o esforço de cada um, ficar mais próximo dos jornalistas. A internet serviria apenas como forma de alertar o consumidor para um novo projecto.
Luísa e Elvira assinariam um pequeno artigo justificando a opção pelo jornal impresso. A Direcção seria assumida pela Elvira que escreveria sempre a nota de abertura. O tema principal seria, não havia como evitar, os interesses privados como contraponto aos interesses públicos. O jornal seria a voz dos que não tinham voz, a imagem dos que trabalhavam e viam o crescer fulgurante das fortunas suspeitas.
Não, como se tinham comprometido, a revelar escândalos veiculados por fontes anónimas e defendidas, mas sim por jornalismo de investigação.
O semanário comprometia-se, desde o primeiro título, a lutar pela verdade e não servir nunca de plataformas eleitoralistas de qualquer figurão, e tantos havia.
O jornal, os seus trabalhadores comprometiam-se a dar uma informação isenta e verdadeira e submetê-la ao escrutínio dos leitores.
Como não aceitaria publicidade ficaria um jornal dos leitores e para os leitores. O seu custo seria de um euro por número, para assim se diferenciar dos ditos jornais gratuitos que na realidade são pagos, só que de outra forma.
A tiragem seria de três mil exemplares e a distribuição seria efectuada pelos próprios, a partir das seis horas da manhã de Sexta-feira de cada semana, e de acordo com a pesquisa prévia.
Tudo estava preparado para o dia D. Na próxima sexta-feira o jornal estaria nas bancas. E depois é continuar a lutar, ultrapassar os obstáculos e acreditar que, só lá bem alto, os sonhos são possíveis.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

O ESTRANHO CASO DO ESCRITOR FANTASMA

4º. Capítulo
Aquele grupo assemelhava-se a uma torre de babel em construção. Todos tinham opinião, o que era de esperar e positivo, mas todos falavam uma linguagem apaixonada, que se sobrepunha até à razão. Luís Miguel ouvia mas não participava. Pensou em intervir conciliando algumas posições mas hesitou, reflectiu e voltou ao silêncio. E, pensou que conciliar significava no fundamental, que alguém teria de transigir e de cedência em cedência o sonho seria breve.
Ele que nunca se havia comprometido, que nunca buscara razões para explicar o seu comportamento, não seria nunca o empecilho ao pensamento.
Sabia que a anarquia daquela primeira reunião iria ser uma constante, porque também pensava que tudo o que fosse semelhante ao já existente seria o fracasso. Deixar pensar, saltar obstáculos, fomentar a paixão, partilhar os seus fracassos os seu medos mas nunca limitar o entusiasmo. Sem paixão, as ideias acabariam por morrer na praia. Estivera ouvindo os outros e também se ouvira a si mesmo, interpretando o seu silêncio.
Era já noite avançada e estavam perdidos, sem rumo, sem direcção. Luísa olhou para ele como uma tábua de salvação.
E Luís Miguel que na sua vida, nunca levara nada a sério, sentiu que devia qualquer coisa aos presentes. Despiu a pele de boémio sem cura, esqueceu a sede do álcool com que alimentara as suas frustrações, dirigiu-se ao cavalete, colocado em local estratégico, onde cada um dos seus colegas antes procurara ilustrar as ideias, dobrou a última folha escrita e ficou olhando para a grande folha branca. Depois num frenesi começou a desenhar, página a página, o layout do futuro periódico. Em traços cada vez mais vincados e firmes, passou da sua concepção gráfica, para os conteúdos e respectivo alinhamento, atribuiu as responsabilidades individuais de cada um, reservando a primeira e a última páginas para a responsabilidade colectiva. Preencheu algumas folhas com esquemas e diagramas, foi completando o seu raciocínio e sem se dar conta, construíra um projecto que assimilara as ideias do grupo, as arrumara, cada uma no seu espaço.
Para si reservara um espaço no meio do jornal, para uma crónica cujo nome lhe surgiu, sem saber como. O Escritor Fantasma.
Parou, o suor escorria pelas fontes, a mão que dera expressão ao seu pensamento estava agora caída ao longo do corpo, como se de repente lhe tivesse faltado a energia.
Estava cansado mas sentira que estava a dar qualquer de si. Podia ou não ser importante, mas fizera-o comandado por uma força que não conhecia. Estava ausente, receou ficar só. Despertou com o aplauso unânime que ia crescendo de segundo a segundo até à ovação final.
E foi naquela noite, que um grupo tão heterogéneo, se juntou dando as mãos e desafiando o futuro.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

O ESTRANHO CASO DO ESCRITOR FANTASMA

3º - Capítulo
Entre umas cervejas bebidas com o grupo da República, Luís Miguel teve um momento de desânimo. Olhava para os colegas e sentiu-se uma raridade. Todos o olhavam com admiração e respeito porque estavam na presença de uma relíquia da Universidade. Ele conhecera tantos colegas, quase todos haviam singrado em função dos cursos. Dois ou três que se lembrava ainda o contavam como amigo, muito embora fossem já assistentes das respectivas Faculdades. Os outros tinham partido, deixando saudades.
Os tempos tinham mudado, a cidade também e a velha Universidade deixara de ter um mesmo significado de há tantos anos.
Ele era um último dinossauro, uma espécie em vias de extinção.
Por entre as nuvens de fumo de cigarro, daquela acanhada casa onde vivia, há tanto tempo que nem já sabia quanto, ficou só. Os colegas tinham recolhido aos respectivos quartos, supostamente para estudarem.
E ele dava voltas à vida que vivera ou que julgara ter vivido!
Bocejou e olhou para o relógio de parede. De repente deu um salto, esquecera-se de que Luísa o tinham convidado para uma reunião, estava já atrasado mas não queria faltar.
A morada que Luísa lhe dera era um velho edifício numa viela estreita da cidade velha.
O rés-do-chão parecia ser uma oficina, tinha um portão grande e largo e uma pequena escadaria dava acesso ao andar superior. A porta estava aberta, entrou e pela primeira vez sentiu que a sua presença tinha sido saudada com um sorriso de confiança.
Uma mesa larga e algumas cadeiras em redor significavam um local de partida.
Sentada na cabeceira da mesa, com o seu cabelo ruivo, como habitualmente desalinhado, Luísa sorriu e fez-lhe um sinal para a cadeira vazia do seu lado direito. Eu tinha esperança que viesses e fico muito feliz por isso. Senta-te aqui que eu quero apresentar-te a tripulação:
- O Luís Miguel que agora chegou é o elo que faltava na corrente em que todos nos ligamos;
- Luís, estes são os companheiros desta aventura. Aqui mesmo em frente, o Carlos, responsável pela gráfica que há mais de trinta anos trabalha para a minha família. Apesar dos seus cabelos brancos, aviso-te que ele é o mais jovem e entusiasmado de todos; Ao lado, o Filipe apaixonado por fotografia e um especialista em computadores e com formação profissional de Web Designer;
Depois a Rita que é jovem, crítica feroz do jornalismo que nos é servido, e portanto desejosa de mostrar, como se deve fazer;
Por fim a Elvira, assistente da Faculdade de Letras, que se juntou ao grupo trazendo a sua cultura, a sua sensibilidade e a disponibilidade para fazer revisão de textos, escrever sobre temas culturais, da crítica ao ensaio.
E eu, que tu bem conheces, teimosa ruiva que só tem uma qualidade. Não tem medo.
Hoje será o princípio e iremos criar, degrau em degrau, o projecto em que acreditamos.
Da bolsa retirou uma garrafa de espumante, alguns copos de plástico, colocou na mesa, dizendo: Brindemos agora e depois vamos ao trabalho.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

O ESTRANHO CASO DO ESCRITOR FANTASMA

2º. Capítulo
Não se apresentava fácil o seu regresso. Admitia que a primeira medida que a família iria tomar era de cancelar a ordem de pagamento que tinha emitido a seu favor. Nem se deu ao trabalho de verificar se o cancelamento teria sido feito. Queria romper com o passado e de uma forma ou de outra, começar de novo.
Precisava, contudo, de encontrar um trabalho. E a oportunidade surgiu quando menos esperava. Uma antiga colega, com quem tinha tido algum relacionamento sentimental mas que terminara sem azedume, procurava alguém disponível para colaborar numa publicação mensal que sempre pertencera à família, um jornal regional e que ela queria transformar num semanário descomprometido, crítico e exigente.
E dava como paradigma um jornal francês, “Le canard enchainé”.
Para este seu projecto, queria beber do jornal francês a sua irreverência e o seu desapego aos interesses instalados. O novo jornal deveria ser sério, crítico e implacável com a mediocridade e com os negócios pouco claros. A notícia proclamava ela, tem que chegar ao leitor duma forma clara e compreensiva, para que se não confunda com as notícias dadas e repetidas até à exaustão, num formato doentio, quase obsceno, com que o quotidiano das pessoas é esmagado pelo audiovisual.
Em suma, pôr a pessoas a pensar, é o meu sonho é nisso que acredito, é o que estou determinada a fazer, dizia com um brilho intenso no olhar.
E continuou. Para isso não aceitarei publicidade paga, não me deixarei corromper!
O sucesso, e acredito nele, vai depender na qualidade da pequena mas muito empenhada equipa que já reuni. Tu és a última peça que eu preciso, pois sei como gostas de escrever, utilizando de forma genuína e autêntica as palavras certas. Conheces meio mundo e nem sempre só a parte clara e pública, mas também a parte escura e escondida da sociedade onde vivemos. Gostava de contar contigo no meu projecto. O que me dizes?
- Oh Luísa mas tu queres um jornal de escândalos, é isso?
- Até parece que não me conheces, respondeu Luísa. Viveste comigo o suficiente para não fazeres essa pergunta. Podes chamar-me idealista, desalinhada, mas reconhece-me ao menos uma qualidade. Nunca aceitaria viver à custa dos pecados dos outros, atirando pedras e escondendo a mão. Se a verdade incomodar alguém, o problema não está na notícia, pois não? Quero olhar de frente e se for caso disso, quero chamar os bois pelo nome!
-Percebo onde queres chegar mas para se ser independente é preciso dinheiro. Onde é que te vais financiar, posso saber?
- O dinheiro, sempre o dinheiro. É evidente que se bater à porta de um Banco a pedir um empréstimo para este projecto, ou recebo um não, o mais provável, ou se for aceite ficarei automáticamente condicionada. Por isso não o farei.
Mas tenho recursos próprios, e não tenho medo de investir. Não poderei pagar aos comentadores conhecidos que, em boa verdade pouca gente lê, mas que cobram mundos e fundos, mas poderei pagar aos que estiverem comigo no projecto. Não será uma fortuna mas estaremos juntos, começaremos do zero e seguiremos em frente.
Hoje é quarta-feira, tenho uma reunião com a equipa. Vamos discutir as ideias de cada um, fazer a síntese e depois é deitar mãos à obra. Aqui tens a morada neste cartão. Se quiseres juntar-te nesta aventura, aparece, acho que contigo a equipa ficará mais forte.

terça-feira, 7 de junho de 2011

O ESTRANHO CASO DO ESCRITOR FANTASMA

1º. Capítulo
Luís Miguel Passos de Sousa Aguiar era herdeiro de uma família com algumas pretensões de nobreza, dizia-se até que seu Tetravô, Senhor D. Pedro de Sousa Aguiar, Visconde de Vale dos Milhafres, teria sido um leal combatente ao lado do Rei D. Miguel, e que após a derrota dos seus ideais, abandonara a capital e se exilara para uma quinta no interior da Beira Alta, donde nunca mais saíra.
Não conhecera o Pai, morrera era ele ainda uma criança de colo, e toda a sua educação foi assegurada pela Avó, matriarca da família, e por quatro tias paternas, solteironas, que o sonhavam ao serviço da Igreja. A Mãe vivia num mundo à parte. Filha de gente do Povo, fora obrigada ao casamento com o senhor D. Diogo para abafar o escândalo de um filho ilegítimo, e esse pecado nunca lhe fora perdoado. O filho que gerara fora-lhe retirado e entregue à senhora Viscondessa, sua Avó.
Não frequentara a escola da aldeia, porque um Visconde não se podia misturar com os camponeses ou pequenos burgueses da região. As aulas eram dadas por professores e padres escolhidos pelo Conselho das Tias, que se comprometiam a obter a sua aprovação aos exames que a tivesse que se submeter.
E foi no ambiente rural de uma quinta com alguns resquícios de grandeza, sinais que os anos tinham apagado pouco a pouco, escondida nos contrafortes da serra da Estrela, que Luís Miguel viveu até à idade de ir estudar para Coimbra.
Não fora uma decisão fácil. A família dividiu-se mas acabou por prevalecer a decisão da Avó, senhora de mais de setenta anos, que entendeu que Luís Miguel teria que ser médico e por isso era para Coimbra que deveria ir estudar.
E foi. Quando nas férias voltava à velha casa toda a vizinhança o recebia com respeito, pois estava ali, o Doutor que todos esperavam.
Luís Miguel aprendera com boas companhias a viver enganando a vida e as suas extremosas tias. O curso de Medicina era muito trabalhoso e ao fim de seis árduos anos de estudo, ele já tinha completado duas cadeiras do primeiro ano e estava quase a terminar uma outra do segundo ano. E com notas brilhantes, como está bem de ver.
Em contrapartida aprendera a viver, convivera com poetas, escritores, músicos, boémios e mulheres da vida e de tudo guardara ensinamentos.
Todavia já não conseguia, e na verdade também não queria, continuar a inventar histórias sobre os seus progressos no campo das ciências médicas, que enchiam de esperanças a idosa tribo familiar. Tinha decidido que seguiria o seu caminho.
Encheu-se de coragem e numa noite, durante o período das férias de Natal, confessou a verdade. Não tinha cursado Medicina, aliás não tinha tirado qualquer curso universitário, apesar dos mais de oito anos que passara em Coimbra.
A sua confissão fora um choque. Ele era o único varão da família e o seu fracasso significava o ruir das esperanças que aquelas mulheres tinham depositado nele.
E não lhe perdoaram. Olhando o neto e o sobrinho, o conselho de família apontou a porta da rua, como saída e sem entrada. A Mãe, como sempre, nem se dera conta de nada.
Luís Miguel regressou a Coimbra sem pesar, encerrou o capítulo da sua vida fingida e assumiu o seu destino e a firme determinação de não mais voltar à aldeia.

sábado, 4 de junho de 2011

O MISTERIOSO ASSASSINO DE PERSONAGENS

O EXECUTOR

O último conto aqui escrito, apesar de apresentar um capítulo final, O BRILHO DAS ESTRELAS, deixou em aberto uma questão que não se entendeu. Na verdade todos os actores morreram, para a história sobrara apenas, escondido, o misterioso assassino de personagens.
Não se encontrou rasto do criminoso e nem se ficou a entender as razões para tal mortandade.
É certo que o autor, autor em letra pequena, começara a dar a volta ao mundo, perdera-se e entrara no limbo onde todos os segredos se ocultam. Não encontrara porta para sair sem ser visto. Era um acto arriscado, porque apesar dos cuidados que ele tinha tido em eliminar indícios e pistas, algum personagem poderia ter escapado, aguardando esquecido no fim de uma qualquer página em branco, uma oportunidade para teclar “DELETE”.
Foi com medo dessa ameaça que o “autor” se recusou a ler o que tinha escrito ao longo de trinta e um artigos, pois apenas se lembrava do princípio e do fim.
Imaginara uma história, tipo puzzle com muitas peças, que ia montando e ligando ao sabor do que lhe vinha à cabeça. No final ficara a intenção, as mortes calculadas e o argumento para um novo conto.
Não tendo mais nada para contar, apenas se anuncia que o título será” O ESTRANHO CASO DO ESCRITOR FANTASMA”.
Fiquem atentos, fechem os computadores, o misterioso assassino de personagens ameaça voltar.
Quem te avisa, amigo é.







quinta-feira, 2 de junho de 2011

O EXECUTOR

31 – O BRILHO DAS ESTRELAS

Escurecera, a noite foi-se iluminando pela luz das estrelas. Pedro sentia uma sensação de calma. Olhava, fascinado para o infinito, esquecendo os remorsos, os rancores e acima de tudo o horror em que a sua vida se tornara.
Esteve de olhos fixados no céu e tremia quando testemunhava uma estrela cadente. Enquanto jovem gostava de vigiar as estrelas e no seu íntimo sonhava que, um dia, uma estrela errante o levaria, para desvendar os segredos do céu.
Ele perdera a estrela e perdera também o norte. Percorrera distâncias sem nunca ter a certeza que voltaria. Estava cansado, tão cansado que nem forças tinha para fechar os olhos apagando os seus sentimentos.
Até esquecera que ao seu lado, no avião de Nova Iorque com destino a Londres, viajava uma mulher, que lhe prendera a atenção.
Olhou para ela e sobressaltou-se. A mulher jovem, cabelos loiros como o trigo, olhos verdes, parecia ter desvendado os seus pensamentos, porque lhe disse, com uma voz profunda:
- Quer dor ou que tristeza o persegue? Observo já algum tempo e parece estar ausente, distante, afogado em más recordações? Eu não quero ser intrometida mas, ainda agora o olho e vejo uma nuvem que o esconde. Empurre essa nuvem, esqueça o que o entristece, talvez precise apenas de um pouco de companhia.
Pedro esboçou um sorriso, teve um leve lampejo no olhar e respondeu:
- Vai perdoar se eu não conseguir ser uma companhia agradável. Vou tentar, acredite que vou tentar. O meu nome é Pedro, sou Português a trabalhar em Londres.
E já agora, sou solteiro e os meus compromissos são apenas com amigos, mas devo confessar com pesar, são poucos. Como vê sou natural dum País que inventou uma música, fado, que só nós sabemos interpretar, porque ela também significa destino. E que inventou uma palavra que não tem tradução, que sentimos muitas vezes, É a mais bonita palavra da língua Portuguesa, SAUDADE.
Ora aqui estou eu apresentado, Português errante, cumprindo o meu fado e sentindo a saudade, como uma dor profunda.
Enquanto procurava as palavras que acabara de proferir nem uma só vez encarou a sua vizinha de viagem. Quando acabou, sentiu que a mão da companheira lhe afagava a sua, tensa e presa como uma garra, ao braço da cadeira.
Descontraiu dizendo, obrigado, por me ter estendido a sua mão.
- Gostei muito de o ouvir. Porém confesso que qualquer coisa me dizia que, um homem, que certamente tem os seus segredos, tinha de ser um excelente actor para me dizer palavras tão bonitas. Acredito que você é tudo o que disse. E por isso, também vou falar de mim, mas não com a delicadeza que pôs nas suas palavras.
Chamo-me Íris, vivo em Brooklyn, partilhando o apartamento com uma amiga. A minha família, fugindo do frio, mudou-se para a Florida, vivendo numa pequena cidade perto de Tampa.
E é verdade, estou separada, o meu companheiro nunca aceitou o meu trabalho. Eu faço teatro musicado na Broadway, não sou uma estrela, tenho pena, mas trabalho para isso.
O meu agente conseguiu um lugar num musical que vai ser apresentado em Londres. E aqui vou eu à procura de dar mais um passo na minha carreira.
Pedro, Íris, conversaram, foram ganhando momento a momento mais intimidade e confiança. Os olhos pressentiam que algo os unia e estavam felizes por isso.
Tanto que, logo que as luzes de cabine foram reduzidas, se aninharam nos braços um do outro.
Em Londres, Íris tinha uma carrinha do teatro à sua espera. Iria ficar num apartamento perto de Westminster, que a companhia reservara para as actrizes.
Que pena, murmurou para Pedro, vai ser um apartamento com colegas e vai ser difícil arranjar lugar para as nossas longas noites.
Pedro hesitou, depois deu uma corrida e estendeu um papel com a morada do seu apartamento. Hoje, amanhã e sempre, esperarei por ti.
E uma noite, invulgarmente bela e repleta de estrelas fulgentes, Pedro regressou ao apartamento em Newington. Estivera na porta do teatro, assistira à saída dos actores mas não vira Íris.
Subiu as escadas, abriu a porta e, de repente parou. Ouvira uma respiração ofegante e sentiu o frio de uma pistola encostada à cabeça. Tinha chegado a sua hora. Não queria morrer pelas costas. Voltou-se, lentamente e sem surpresa, vislumbrou, antes de receber o tiro no peito, uma farta cabeleira loira.

FIM

quarta-feira, 1 de junho de 2011

O EXECUTOR

30 – À FLOR DA PELE

Mar de Prata era o refúgio ideal. Foi fácil chegar a essa conclusão desde que, vindo de Buenos Aires, parara o carro à porta de um hotel, Pedro ficara submerso pela vida intensa, pela multidão que enchia as avenidas bordejando a praia, grande a perder de vista. Como veio a notar, de dia e de noite, as pessoas viviam cada momento com um frémito de emoção à flor da pele. Todas tinham pressa de viver e cada minuto era bebido entre risos, abraços e beijos. A noite era para amar, tendo como testemunha o luar que iluminava os corações e a música sensual dum tango.
Passeou pelas esplanadas ao longo da praia, procurando um sinal que lhe fizesse lembrar a fotografia que tinha recebido. Desistiu, na realidade todas elas eram muito semelhantes e encontrar alguém, só por acaso.
Só, Pedro escolheu sentar-se num paredão recebendo o afago da brisa suave, enquanto concentrava o olhar longe, no outro lado do rio. Procurava localizar Punta del Este, famosa estância turística da costa do Uruguai, lá onde o rio abraça o oceano, e onde já estivera em férias.
Estava cansado, tinham sido muitas horas de viagem desde que deixara Lisboa, aqueles momentos tranquilos serviam para recuperar a energia.
Todavia, a cidade não era feita para descanso. Estava repleta de turistas, frenéticos e excitados, que enchiam os casinos e outros estabelecimentos de diversão nocturna, uns mais sofisticados e outros mais populares. Em qualquer deles, e Pedro visitara alguns, encontrara um traço comum. Gente que esbanjava dinheiro, na maior parte das vezes proveniente de negócios obscuros.
Num dos casinos sentou-se numa mesa de poker e foi jogando, ganhando e perdendo valores modestos. A dada altura arriscou mais e teve sorte. Abandonou a mesa deixando para o empregado, uma quantidade bem simpática de fichas.
Voltou outro dia, escolheu a mesma mesa, ainda não tinha jogadores. O croupier era o mesmo, reconheceu-o e falou em Português. Que era natural de S. Paulo, filho de Pai Português e Mãe Brasileira, trabalhava no casino há alguns anos e encontrara alguns Portugueses sim, mas normalmente muito distantes e pouco simpáticos. O senhor foi a excepção, concluiu Fábio o empregado do casino. No meio da conversa, Pedro tirou do bolso do casaco uma fotografia, mostrou e pediu para ele dar uma vista de olhos. Será que você se lembra de ter visto alguma dessas pessoas, perguntou?
Fábio pegou na fotografia, olhou com atenção, devolveu dizendo não reconhecer ninguém.
Continuaram a conversar e, como por acaso, Fábio perguntou em voz baixa o nome do hotel que escolhera. Pedro escreveu num guardanapo que recebera com a bebida, o nome o número de quarto e deixou sobre a mesa.
Depois saiu, não queria jogar e preferiu assistir a um espectáculo de tango. Era um baile com bailarinos profissionais, preparado para turistas. Havia muitos mas do grupo que ele procurava, nem sinal.
No outro dia, fim da manhã, sem ser uma surpresa, Fábio estava no hall do hotel. Foram almoçar a um restaurante fora do circuito turístico, e numa mesa discreta pediu:
- Não se importa de me mostrar de novo a fotografia pois não? Depois, olhando para ela confessou que conhecera o grupo, sabia que os dois que apontou, tinham sido encontrados, num beco escuro, abatidos com um tiro na cabeça. Os outros dois e a mulher desapareceram, mas ouvira um cliente dizer que os havia encontrado em Punta del Este, no Uruguai.
Se o senhor quiser saber mais pormenores, procure o Tenente Sepúlveda da Polícia Nacional e compre a informação. Pelo que julgo saber, será cara, mas digna de crédito. Pode referir o meu nome, ele deve-me favores por alguns truques que eu lhe ensinei, para ganhar no casino.
E foi o próprio Tenente, satisfeito com o punhado de dólares que Pedro lhe enfiara no bolso, a indicar o caminho, precisando o local para encontrar os três fugitivos. E recomendou para ter cuidado, ele sabia que havia mais gente à procura, e eram gente perigosa.
Pedro deixou o hotel, pegou no carro e, dando algumas voltas sem destino para testar se estava a ser seguido, meteu-se a caminho e, ao fim de algumas horas encontrou o local, graças à ajuda dum camponês. Era uma simples casa perdida, numa clareira da floresta, algures entre a fronteira do Uruguai e do Brasil. Pedro conduziu com precaução pelo carreiro de acesso, parou um pouco afastado e fez o resto do caminho a pé. A casa, que já vivera melhores dias, tinha a porta entreaberta e ouviu gemidos e uma voz de mulher, que reconheceu.
Empurrou a porta e entrou na sala. Anne, era ela, olhou para Pedro, dizendo:
- É tarde para o tango que te prometi, mas vieste e isso é o mais importante!
Pedro nada disse, ficara paralisado com o quadro que encontrara naquela velha casa. Anne não parecia a mulher que conhecera em Barcelona. Ela que fazia questão de fincar o seu porte altivo, era agora uma mulher triste e com ar amargurado. Só os olhos mantinham algum brilho, mas não o fogo de outrora.
Numa cama estreita, um homem gritava por ajuda; outro, sentado à janela, olhava para o vazio e nem a presença do intruso o fizera desviar o olhar. Anne murmurou:
- Ajuda-me, eles estão às portas da morte e num grande sofrimento. Eu não sou capaz de lhes dar o descanso que eles pedem. Perderam tudo, só me têm a mim e eu já não tenho a força da Jezabel. Fá-lo antes que os outros cheguem e os torturem. Os que morreram sabiam demais, foram eles que contrataram a Organização para roubarem o dinheiro da droga. Só eles conheciam o destino do dinheiro e a pessoa que negociou. Alguém exigiu a maior fatia do bolo, por isso fugiram e aqui foram apanhados e mortos. Nós ficamos sem amigos e sem dinheiro. Restou-nos este abrigo. A febre atacou-os e a morte é uma questão de dias. Não os posso levar a um hospital, é longe e perigoso e na povoação não existe médico. Eles pedem ajuda para morrer. Sabem o que os espera se forem apanhados. Eu não tenho coragem para os abandonar.
Pedro com as mãos suadas e o corpo tremendo, pegou numa almofada e sufocou até ao último suspiro, os dois infelizes. Depois saiu, respirou fundo mas não esqueceu o olhar de alguém indefeso e para quem a morte é a libertação. E ele, naquele ermo, olhou com horror para as mãos e jurou que nunca mais.
Pegou na mão de Anne levou-a para o carro e meteu-se ao caminho de volta.
Não tinha palavras para dizer,só perguntou, porquê?
Anne cerrou os olhos esteve assim por alguns momentos e pediu:
- Para o carro, preciso de apanhar ar. A ti, ainda te falta completar a missão. Fui eu que recebi ordens para te matar naquela curva da estrada. Falhei, não fui capaz e por isso também sou perseguida. Quem traiu não sei, mas alguém referiu um nome: Conti.
Aproximou-se mais e erguendo o rosto triste e sofrido, ofereceu os lábios na procura de um beijo. Foi um beijo salgado pelas lágrimas que corriam pela face da mulher.
Anne afastou-se, tremendo como um arbusto açoitado pelo vento. Deu uns passos trémulos, voltou-se, tinha uma pistola na mão, encostou a arma à cabeça, e escolheu o seu caminho.