domingo, 30 de setembro de 2012

A VIDA POR UM FIO

SEIS MESES DEPOIS

A recuperação da Maria da Graça foi lenta.
Não fora apenas uma vértebra deslocada, também sofrera um deslocamento da coluna que poderia evoluir para uma situação de invalidez total.
Esteve durante dois meses internada no hospital. Foi a seu pedido que o médico assistente lhe deu alta.
Antes, recebeu Artur do seu gabinete e recomendou:
- A sua mulher quer sair do hospital e eu também reconheço que o que aqui lhe é feito pode resultar melhor no ambiente familiar. Lembre-se, ela não poderá fazer esforços, terá de lhe preparar uma cama articulada, eventualmente uma cadeira de rodas e um tapete apoiado por dois corrimãos, para que um dia ela possa caminhar, passo a passo, mas só com ajuda de um especialista.
 A sua mulher fala e entende, está portanto consciente do seu estado mas precisa de muito carinho, muita ajuda e ficar em casa, com o marido e os filhos poderá ser um passo importante para o caminho que ela vai ter de percorrer.
Mais ou tão importante como as massagens, os exercícios que o especialista lhe irá doseando, será a sua vontade de lutar.
Um passo na sua direcção e na dos filhos, serão o objectivo que ela terá que alcançar. Mas não se iluda, pode conseguir depois de muito trabalho mas se ela não acreditar, a sua situação será irreversível e acabará por morrer, definhando numa cama, como se fosse o seu suplício.
Sei que para o senhor será uma tarefa nada fácil, vai exigir muito de si, quer em termos psicológicos quer em termos financeiros, mas se algum momento sentir desgosto ou compaixão, esconda esses sentimentos por detrás de um sorriso de encorajamento. Pode acontecer que um dia tenha vontade de desistir. Mas lembre-se, quem mais sofrerá serão os seus filhos. Mas a pessoa com a vida condenada será a sua mulher.
Artur ouviu as palavras duras do médico. Já tinha recorrido a um centro de reabilitação que lhe recomendou o equipamento necessário.
Contratou o apoio técnico para duas sessões semanais de recuperação, o período aconselhável e colocou um anúncio para a escolha de uma mulher disponível para o apoio domiciliário.
Refizera a decoração da casa, mais espaço livre para a Maria da Graça poder circular com uma cadeira de rodas, mandou refazer o quarto de banho, eliminando as barreiras e com a ajuda da filha Joana e da cunhada conseguira que o quarto perdesse o aspecto de enfermaria e fizesse sobressair a luz, o sol e a tranquilidade das paredes onde o motivo principal eram quadros com flores e fotografias da família.
Quisera que Maria de Graça sentisse a sua vinda como a volta ao lar. Gastou as suas economias e aprendeu a gerir os seus recursos. Trabalhava com mais afinco, era a sua maneira de esquecer a dor daqueles meses.
A mulher que contratara, uma mulher ainda jovem, bem disposta e desinibida, assumiu as tarefas com alegria, contagiando a doente e as crianças. Era ele que se encarregava de levar e ir buscar os filhos. Chegava exausto do trabalho, fazia companhia à mulher, falando do seu dia, das suas vitórias, dos seus sucessos. Lembrava-lhe os anos de namoro, o casamento, o nascimento dos filhos. Fazia rir com pequenos episódios, porventura já esquecidos.
Mas nunca falou do acidente, queria esquecer as dúvidas que o mortificavam.
Mas de noite, dormindo numa cama de solteiro no canto do quarto a dúvida feria-o profundamente. Era uma dor estranha, um ácido que lhe corroía a mente. E então, no silêncio da noite, deixava que as lágrimas lhe lavassem a alma.
Fernanda a cunhada era uma ajuda indispensável, sempre que ele tinha de se ausentar do País. Chegou a pensar pedir escusa mas apercebeu-se que isso poderia significar a perda de confiança dos patrões e consequentemente de vencimento. Não, não se podia dar ao luxo de recusar um projecto ou uma responsabilidade. Aquela estrutura familiar assentava unicamente nos seus ganhos.
Mas sempre que olhava para os olhos da cunhada sentia a impressão já antiga. A cunhada sabia o que se teria passado e escondera.
E o coração batia apressado como se estivesse a ser pisado pelos os cascos de um cavaleiro à desfilada.


GUSTAV KLIMT
Gold Cavalier

terça-feira, 25 de setembro de 2012

A VIDA POR UM FIO

NEGRO

Regressou a casa, era já o romper do dia de sábado. Estava fisicamente esgotado mas contrariamente ao que seria de esperar, estava lúcido, pela primeira vez desde que tudo começara.
Em casa toda a gente dormia. Espreitou o quarto das filhas e confirmou, Joana e Filipa estavam bem e com uma respiração tranquila. Espreitou o quarto principal, Fernanda dormia estendida por cima da roupa, embrulhada num roupão, enquanto ao seu lado o bebé brincava com a chupeta e palrava aquela conversa do costume. Pegou nele e voltou para a sala. O bebé começava a meter os dedos da boca enquanto os olhos se riam com a alegria de que o Pai nunca se dera conta. E como era bonito o miúdo.
E com a tranquilidade que lhe veio, nem sabia de onde, ocupou-se da higiene e preparou e deu a primeira refeição.
Naquele momento esquecera o medo, percebera que os filhos e a mulher iriam precisar ele. E sentiu-se forte e capaz de enfrentar os desafios.
Foi-lhe penoso fingir despreocupação. Evitava fitar o olhar angustiado de Joana e as interrogações de Filipa. A Mãe tivera um esgotamento pelo cansaço, precisava de descansar dois ou três dias e, hesitando concluiu, depois voltará para casa.
A Fernanda tem a sua vida e tem que a continuar. Está a concluir o curso e isso será prioritário porque serei eu a tomar conta de vocês.
Eu aprenderei tudo o que for necessário, a limpar, a cozinhar, a fazer as camas a tomar conta do bebé e serei eu quem os vai levar e buscar ao infantário e ao colégio. Sabes Joana, tu vais ter que ser a minha professora.
Estava nesta conversa quando a cunhada entrou na sala. E as miúdas correram para a tia que as recebeu de braços abertos. Joana explicava entusiasmada que ia ser a professora do Pai enquanto a mãe estivesse a descansar. Mas tu também nos vais ajudar, não é tia?
- Claro que sim, até que a Mãe volte eu ficarei a ajudar. Claro, se o Pai não se importar.
- Fernanda, conto sempre contigo, mas tens que me prometer que não vais esquecer as aulas e os exames que estão à porta.
E o ambiente naquela família, atingida por um acidente inesperado e inexplicável, melhorou. Todos haviam compreendido que uma família é assim. Nos bons e maus momentos.
Artur sentou-se no sofá olhando pela janela. Apetecia-lhe fumar um cigarro. Procurou na gaveta da secretária um maço de cigarros. Remexeu tudo e não o encontrou. De repente lembrou-se, deixara de fumar há pouco tempo e Maria da Graça escondera o objecto do vício.
Mas tinha que fumar. Arranjou uma desculpa, disse a Fernanda que iria sair e combinar com o Sr. Abílio do restaurante da esquina, a comida para o almoço. Mas a cunhada lembrou que havia trabalho para fazer e sair não era uma boa ideia. As crianças sentem a falta da Mãe e se o Pai se ausenta, provocará nelas uma ansiedade evitável.
Aliás eu gosto de cozinhar e a minha irmã deixou o frigorífico cheio com as compras para a semana. Já vi e nada faz falta. Hoje o almoço já está escolhido.
Vou fazer uma sopa de legumes e bifinhos de peru com arroz e salada de alface.
Eu imagino que a tua ideia tem por objectivo um cigarro. Já te vi a remexer na gaveta. Dou-te um dos meus, mas para fumares, escondido na varanda. E só tenho dois, o outro ficará para mim.
Enquanto Fernanda ajudava Joana com a refeição do bebé, Artur telefona para o Hospital. Sem sucesso, o número estava permanente ocupado. E desistiu.
Chamou Fernanda e combinou:
- Não consigo falar para o Hospital. O número está sempre impedido. E também não ficarei tranquilo só com uma informação que me poderá ser dada sem rigor. Ficar sem nada saber é doloroso e não consigo aguentar a angústia.
À minha volta vejo a alegria os risos de criança mas cá no fundo do peito há uma nódoa negra que vai alastrando, e me consome. Tenho que ir para o Hospital. Peço-te, arranja maneira de levares as crianças a dar uma volta pelo parque. Está um dia de sol e não está muito frio. Deixo-te o carro, as cadeiras de segurança para as crianças estão montadas.
Eu prometo, direi alguma coisa logo que saiba o estado da tua irmã. Estou demasiado confuso para aguentar a falta de notícias.
 Sabes o que mais me dói?
- O médico de serviço perguntou-me se a Maria da Graça teria sofrido algum acidente, caído ou se teria sido agredida. Imagina a minha reacção. O médico admitia como causa provável da lesão na coluna, uma agressão. Olhou para mim como se quisesse ver a minha reacção.  
Eu teria agredido a tua irmã, tu sabes que não é possível.
- Sempre ouvi dizer que a maior partes das vezes em que se verifica violência doméstica, ela é exercida no seio da família próxima, responde Fernanda. O médico sabia do que falava.
O que ele não poderia saber é que tu sempre foste o companheiro fiel e terno e que a Maria da Graça era a tua musa.
- Mas o médico falou também em acidente, diz Artur, podia ter sido um caso de atropelamento ou choque. Vou descer e ver se o carro tem marcas.
- Não vais adiantar nada, espera que Maria da Graça recupere e conte o que se passou.
Eu acredito que ela poderá ter caído ao descer as escadas do escritório. São inclinadas e em pedra o que pode ter provocado a queda. Também sei que na altura, a dor pode não ser muito forte. O calor do corpo ajuda. Depois sim, ainda por cima com uma deslocação com as crianças ao supermercado. O esforço pode ter provocado o deslocamento de alguma vértebra.
- Podes ter razão, responde Artur.
Todavia preciso de ver e ouvir a tua irmã.
E sabes, Fernanda, a tua hipótese era perfeitamente credível, mas esquece, o escritório onde Maria da Graça trabalha é no rés-do-chão. Não tem escadas.
Eu dou notícias, disse enquanto saiu.
Na rua, a dor da dúvida manifestou-se em tremores e vómitos. O negro prevalecera.



                                            Wassily Kandinsky
                                                        Black and Violet, 1923






sexta-feira, 21 de setembro de 2012

A VIDA POR UM FIO

O ACIDENTE

O tempo passado na sala de espera do Hospital onde aguardava notícias sobre o estado da mulher, olhando ansiosamente para a porta por onde alguém lhe iria dar notícias, foi um tempo de medo e ao mesmo tempo de reflexão.
Afinal tudo acontecera num curto espaço de tempo, uma hora, duas horas talvez, e num dia que começara tão promissor. Fora nomeado para um cargo importante, iria ter mais responsabilidade e, naturalmente iria colher benefícios financeiros.
Nada é mais importante do que a vida, Maria da Graça era o seu apoio, a sua força e com ela doente ficava perdido.
Como é que vai ser com os miúdos e com o meu trabalho?
Pensou e teve vergonha de si mesmo. Numa hora difícil onde o pior podia acontecer e ele questionava o seu trabalho e a sua capacidade de gerir uma família.
Fora mal habituado. Ao primeiro problema entrara em pânico e dera um péssimo exemplo à filha mais velha, uma criança de nove anos de idade, que perante a sua impotência assumiu a responsabilidade que cabia ao chefe de família.
Chorou lágrimas de vergonha.
Acabrunhado, olhava para as pessoas que passavam, macas com vítimas de acidentes, corpos ensanguentados.
Depois de uma calma de mau augúrio, sentiu uma mão pousada no seu ombro.
- O senhor é da família da Dona Maria da Graça, perguntou um rapaz de bata branca?
- Estremeceu e foi com os olhos cerrados, cabeça baixa e pernas dormentes que confirmou. Sim sou o marido.
- Então faça o favor de entrar para aquele gabinete. O Doutor já vai falar consigo.
Entrou, era um espaço frio ou era ele que tremia, viu apenas uma cadeira na frente de uma secretária onde um médico, olhava para umas radiografias e lia papéis espalhados pela secretária.
O médico levantou os olhos, tirou os óculos e deu-lhe a notícia:
- A sua mulher foi observada, objecto de exames de diagnóstico mas ainda não sabemos com certeza qual a doença, muito menos o que a poderá ter provocado.
 Com a voz clara continuou:
- A sua mulher está em estado de coma induzido. Está acompanhada numa ala dos cuidados intensivos.
- Posso vê-la, perguntou sem tirar os olhos do chão?
- Venha comigo, só a pode ver de longe, por detrás da cortina. E só por alguns minutos. Siga-me.
Como um autómato percorreu o longo corredor. Passava por entre as camas onde pessoas sofriam e gemiam.
De repente o médico parou, abriu uma pequena nesga da cortina e apontou:
- Ali está a sua mulher. Está imobilizada e não sofre. Ela não o vê nem ouve. Vamos ver como recupera. Não desespere, ela está em boas mãos e o seu estado pode evoluir e recuperar a consciência. Mas nunca nesta noite.
Mas diga-me, a sua mulher caiu, foi agredida?
- Doutor não me flagele, a minha mulher estava bem, apenas cansada. Temos três crianças, que ela cuida com todo o amor, e ainda trabalha num escritório. Mas sempre foi uma pessoa muito saudável.
Ela nunca se queixou de ter sofrido algum acidente ou agressão. E Doutor a minha vida com a Maria da Graça é muito feliz e nem admito que alguém possa pensar que eu a possa ter maltratado.
- Claro que não estou a dizer isso. Mas que ela sofreu um acidente que lhe afectou a coluna vertebral isso é muito provável e poderá ser a explicação. Amanhã ou depois se verá. O senhor tem família em casa?
- Sim, balbuciou, três crianças que a minha cunhada ficou a cuidar enquanto eu vim para o hospital. Tenho toda a confiança e sei que ela ficará esperando que eu regresse com a irmã. Por isso ficarei à espera.
- O senhor tem três filhos pequenos? O que é que o senhor está aqui a fazer. Acha que estar aqui sofrendo as suas penas e dos outros que vê passar, é o caminho certo? Acha que vai curar a sua mulher?
 Vá para casa, aqui não ajuda ninguém, mas em casa junto dos seus filhos, pode ajudar-se a si mesmo, dar-lhe a atenção e o carinho que eles precisam.
Eles terão que ser, de momento, a sua prioridade. Amanhã ou depois, não sabemos, a sua mulher voltará à vida e, a minha experiência isso me diz, a primeira coisa que perguntará ao abrir os olhos será pelos filhos.
Amanhã telefone, se a situação se mantiver, o colega de serviço dir-lhe-á e o senhor continuará acompanhar os seus filhos. Fará, como é sua obrigação o papel de Pai e de Mãe. Não apareça em casa a chorar e com essa expressão doentia que vejo no seu olhar. As crianças são muito sensíveis às mudanças de comportamento e poderão intuir que alguma coisa o atormenta. E sofrerão.
Artur deixou a sala de espera, caminhou um pouco para ganhar coragem, não queria acreditar que o que o médico lhe dissera fosse verdade. Não seria possível. Um acidente, mas ele nunca soubera de nada?
 Telefonou à cunhada dando notícias e dizendo que ia para casa.
Fernanda ouviu as palavras e concordou:
- Vem, a Joana deixou-se dormir há pouco tempo mas ficou aqui, estendida no sofá da sala. Tem coragem, inventa, diz que a Maria da Graça está a ficar melhor e que perguntou por eles. Mas que serão alguns dias para que a Mãe, que estava cansada, recupere as forças e regresse para junto de nós. Finge que tudo está e vai correr bem. Finge por ti e por eles.
Eu estarei aqui para te ajudar até que a minha irmã volte para casa. Porque vai voltar, não vai?
Artur balbuciou um sim e desligou. Era um pessimista, todos o sabiam, quase sempre previra situações difíceis que nunca se haviam concretizado. Quem sabe seria mais uma.
Fingir sim, mas iria custar-lhe muito.


A coluna quebrada
Auto retrato de Frida Kahlo

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

A VIDA POR UM FIO

O MEDO

Olhava para o relógio e espreitava pela janela. Estranhava, ainda não vira o carro.
Sentou-se, cada vez mais inquieto parecia que os minutos eram horas. Voltou à janela, abriu-a para aumentar o seu espaço de visão e ao mesmo tempo receber a brisa do fim de tarde.
Escurecera, confirmou pelo relógio que aquela era a hora em que normalmente chegava a casa e já a Maria da Graça tinha tudo adiantado. As crianças tinham tomado banho, o bebé já dormia, Joana pusera a mesa enquanto Filipa via os desenhos animados.
Entrar nem casa era um momento de felicidade e como chegava cansado a família dava-lhe o alento e a energia que tinha despendido.
Era assim a sua vida. Simples, sem sobressaltos.
Mas hoje, para ele um dia especial, um dia de alegria, preparara a surpresa, chegando mais cedo. Agora tinha medo, não conseguia conviver com a angústia duma casa vazia.
Pele sua cabeça passavam relâmpagos e não conseguia pensar. O que fazer? Teria acontecido alguma coisa?
No meio do pânico conseguiu ver um carro parar no lugar habitual. Era a família que regressava e lhe trazia a tranquilidade que julgara perdida. Respirou fundo, o sintoma de solidão desaparecera. Iria surpreender todos.
 Continuou a espreitar. Maria da Graça ocupava-se agora a retirar os sacos de compras do supermercado, Joana ajudava enquanto vigiava a traquinice da irmã. Maria da Graça, debruçada no interior do carro, desapertava os cintos de segurança e retirava a alcofa com o bebé.
Pararam, olhando para os sacos e para os degraus que teriam de subir até chegar ao elevador.
Artur despertou como se tivesse sido sacudido. Ali estava ele, vigiando o trabalho da Mulher e da filha e sem nada fazer. E tomou a decisão que se impunha, abriu a porta chamou o elevador e desceu ao encontro da família. Teve vergonha de confessar o que assistira. E tudo porque tivera um desejo inesperado de antecipar o regresso a casa e compartilhar a sua alegria.
Foi um alívio, Maria da Graça estava exausta, ela que era mulher jovem, habituada à rotina de todos os dias. Sorriu agradecida enquanto Artur assumiu o transporte dos sacos de compras. Eram muitos e pesados, era sexta-feira, dia de compras para a semana.
Artur sentiu-se aliviado, mas por pouco tempo. Deixara a porta do apartamento aberta, e um golpe de vento, possivelmente pela janela aberta, fechara-a. E pior ainda, Artur deixara as chaves na fechadura. E agora como é que entramos, perguntou novamente perdido?
Maria da Graça sentou-se na escada e desabafou:
- Artur, hoje que eu me sinto tão cansada, que tive um dia de trabalho para esquecer, a tua ajuda foi providencial. Mas estragaste tudo.
Olha pega nas minhas chaves, estão na minha bolsa e tenta empurrar a chave de dentro. Com jeito, quando ela cair, podes abrir a porta, mas com cautela, não te precipites. Se não conseguires teremos de pedir ajuda a um serralheiro. Que virá quando puder e quiser. E nós aqui acampados.
Estou tão cansada que só me apetece dormir.
Artur encontrou as chaves e com as mãos cada vez mais trementes, tentou. Mas estava difícil, o suor escorria-lhe pela testa e não conseguia deixar de olhar para a mulher que parecia desfalecer.
Esqueceu a porta e correu para amparar a mulher que de olhos fechados e respiração ofegante, apenas conservava junto ao peito a pequena alcofa do bebé que, entretanto começara a choramingar.
 Foi a pequena Joana quem com o sangue frio, retirou as chaves das mãos do Pai abriu a porta.
Depois retirou o irmão dos braços da Mãe e comandou:
- Pai pega na Mãe ao colo, leva-a para dentro e deita-a na cama. Eu vou telefonar para o 112 e pedir ajuda urgente.
Artur ficou parado sem reacção. Só lhe apetecia chorar sem saber o que fazer. Joana deu-lhe uma toalha molhada dizendo para tentar reanimar a Mãe enquanto a ambulância não chegasse. E recomendou:
- Pai, tem calma, vais ver que é apenas um desmaio. Vai falando, refrescando a cabeça da Mãe, pega num pulso e tenta contar as pulsações. Precisamos que nos ajudes, não te deixes dominar pelo pânico. Eu preciso e vou buscar ajuda enquanto não chega a ambulância. O Joãozinho está sossegado e a Filipa a ver bonecos, não te preocupes com eles. Faz companhia à Mãe. Eu já volto.
A rapariguinha bateu à porta da vizinha do lado, a Dona Glória era uma pessoa simpática e disponível e ao ver o rosto da Joana percebeu que algo corria mal.
E foi ajudar.
A ambulância chegou, com médico e auxiliares. O médico começou por auscultar a doente, retirou da mala uma ampola e deu-lhe uma injecção.
Virando-se para Artur que estava lívido parado a um canto disse:
- A senhora tem que seguir já para o Hospital. Eu vou avisar e ela entrará logo para o serviço de cardiologia. Não há tempo a perder. Pode ser uma coisa ligeira, não adianta ficar assim.
Artur Joana e a vizinha assistiam aos preparativos para o transporte na ambulância, e quando os maqueiros transportavam a maca, Artur quis seguir na ambulância.
O médico afastou-o, o senhor não pode ir, fique tranquilo em casa e depois vá telefonando. Ir agora não adiantará nada e desculpe-me, o senhor tem que cuidar dos filhos. Isso é o que pode e deve fazer. Da sua esposa os médicos e enfermeiros se encarregarão. Abriu a maleta tirou uma caixa de comprimidos e deu-lhe dizendo para tomar um de seis em seis horas. Faça o que eu lhe disse, lembre-se das crianças.
E partiu.
Artur ficou incapaz de ajudar, sentado numa cadeira olhava em redor e nem se dava conta da azáfama. Joana cuidava do bebé, o banho e a refeição. A vizinha preparara o jantar que colocou na mesa.
Foi a custo que convenceram Artur a sentar-se e comer alguma coisa, uma sopa pelo menos avisava a Dona Glória. E ele lá conseguiu comer algumas colheres.
Estava agora mais calmo, olhava com admiração e ternura para a filha mais velha, uma criança de nove anos que fora o suporte daquela situação.
Depois telefonou à Fernanda a irmã mais nova da Maria da Graça e pediu-lhe para fazer vir a casa da irmã para fazer companhia aos sobrinhos. Depois eu chamarei um táxi e irei para o hospital. Quero estar presente quando a vossa Mãe acordar, deste momento de medo.
Fernanda chegou rápido, não fez perguntas. De certo modo parecia já estar à espera daquela situação.

Duas irmãs
Jean-Honoré Fragonard (1732-1806)
França, c. 1760-1770
Óleo sobre madeira
A 31,7 x L 24 cm
MNAA  - Lisboa - Portugal
  

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

A VIDA POR UM FIO

A ALEGRIA

Artur Castro acabava de sair da reunião mensal da Comissão Directiva da Empresa. Era a sua primeira com as funções de chefe de projectos especiais, para que fora, recentemente, escolhido.
Era um homem, com quarenta anos de idade, não conhecera outro trabalho nem outra Empresa. Aquela era a sua casa. 
Começara a trabalhar na Empresa como projectista, estudara e licenciara-se, e apesar das exigências académicas, nunca havia invocado tal facto para se eximir a deslocações de trabalho, algumas vezes mais prolongadas, quando se discutiam as propostas em concurso internacional onde a Empresa concorrera ou dirigia os ensaios dos sistemas fornecidos.
E por isso conhecia meio mundo, mas na realidade apenas as salas de reuniões onde a proposta seria negociado ou o estaleiro, quando na fase final da obra, assistia aos ensaios.
Era um dia particularmente feliz,  principalmente para alguém que subira na vida a troco de muito trabalho, estudo e aprendizagem.
Era a doutrina que costumava explicar a cada um dos colaboradores que recebera na sua divisão de projectos. Ali, naquela sala, estava o futuro da Empresa e o trabalho conjunto representava o sucesso e o bem estar dos outros trabalhadores. E eram muitos.
Quando a Administração o convidou, por breves momentos hesitou, mas acabou aceitando o desafio, confiando na equipa que com ele trabalhava.
Artur sabia que a concorrência era muito forte, designadamente a dos fabricantes asiáticos. Para a vencer, não seria pelo preço mas sim pela qualidade. Isso requeria muito trabalho de investigação e inovação.
Não era tarefa para um homem, era um desafio para uma pequena e coesa equipa de trabalho. Onde conseguira juntar o saber de experiência feito com o sabor académico em estado puro.
Dessa mescla, nasciam as ideias, as inovações, alguns erros e finalmente, os sucessos e o reconhecimento.
Estava feliz por ele e pelos colegas. Entrou na sala e foi recebido com aplausos.
Era uma manifestação espontânea, os colegas reconheceram nele as qualidades humanas. Eram colegas, amigos, competentes e solidários.
Ficou feliz e comovido ao verificar que em cima da sua secretária tinha uma oferta. Uma caixa, presumia, embrulhada em papel colorido e atada por laços que tentou desatar.
Mas estava nervoso, não tinha muito jeito com as mãos e foi Lucília uma das mais jovens engenheiras que o ajudou a desfazer o embrulho e a abrir a caixa.
Embrulhada em papel de celofane que rasgou, retirou e exibiu uma peça muito bonita de loiça da Vista Alegre. Agradeceu comovido e lembrou-se que a mulher já uma vez manifestara vontade de comprar uma taça como aquela. Mas era cara e a vida não estava mas gastos excessivos.
Agradeceu a todos, não era grande orador, as palavras saíam a conta gotas mas o sentimento estava lá e chegou ao seu destino, ao coraçãodos amigos.
Era sexta-feira e ao contrário do que era habitual, foi dos primeiros a abandonar o escritório e seguir para casa. Queria fazer uma surpresa.
Costumava esperar pelo autocarro que parava perto da porta da fábrica, mas teve sorte, um amigo ofereceu-lhe boleia, aceitou e depressa chegou ao seu destino. Morava num bom apartamento da Maia, e tinha três filhos. João bebé de berço, seis meses de vida, Filipa com irrequietos quatro anos e Joana já uma senhorita muito compenetrada no seu papel de ajudante, apesar dos nove anos de idade.
Joana era o apoio da Mãe. Apesar da idade, tinha um sentido de responsabilidade muito forte e conseguia  cuidar dos irmãos enquanto a Mãe se ocupava da cozinha.
Maria da Graça a sua companheira, fora a única paixão da sua vida e era a alegria que fazia transbordar os corações. Na verdade Maria da Graça conseguia conciliar o seu trabalho numa agência bancária de um pequeno Banco, com a responsabilidade de gerir aquela família. E fazia-o com um sorriso de felicidade.
Antes de ir para casa, olhou para o relógio, dava tempo, foi comprar umas flores simples, como simples era a mulher, uns brinquedos para os mais novos e um livro para a Joaninha. Ele chama-a assim, mas ela não gostava, já era muito crescida para o diminutivo.
Chegou a casa e ficou na janela para assistir à chegada do automóvel de família, que Maria da Graça conduzia.
E esperou.



                                                              Virgem e o Menino                                                   Hans Memling (c. 1430/40–149
                                                  Óleo sobre madeira de carvalho
                                                    Convento de Jesus, Setúbal
                                                 Museu Nacional de Arte Antiga
                                                       LISBOA/PORTUGAL



 

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

SEM DESTINO


NAVEGAR À BOLINA

Para mim, escrever está a ser tão difícil como é para os veleiros navegar contra o vento.
Nunca me tinha apercebido do cansaço que ao longo de tantos textos e histórias deixei acumular.
Costumava fazer um desafio. Bastava-me encontrar um título, a partir dele começar a construir uma história que ia desenvolvendo ao sabor do vento.
Sentia-me bem, ao enfrentar um desafio que colocava a mim mesmo. Escrevia o primeiro capítulo, depois um segundo e por diante, raramente lia o que tinha escrito anteriormente e com tropeções e remendos apressados lá ia conseguindo dar corpo a uma história, feita peça a peça.
Depois fui aumentando a exigência. Não na qualidade, pois apesar do entusiasmo conheço as minhas limitações e respeito as palavras, mas apenas pelo número de capítulos que conseguia esticar a história.
O marinheiro precisa de técnica apurada para navegar à bolina. Eu quis seguir escrevendo contra o vento, sem ter aprendido a utilizar as técnicas necessárias.
Mas cada um é como é e eu sou assim. Teimoso, independente e desalinhado. E gosto.
Escrever é como enfrentar o desconhecido. Pode-se começar com uma ideia boa, que se vai mostrando ser ingénua, não haverá mal nisso, sem conteúdo, a maior das vezes será assim, mas sempre avançando, até que a memória nos atraiçoe, roubando-nos o prazer de permanecer vivos e despertos.
Penso que já ouvi na rua uma frase, uma palavra que me despertou a vontade de construir outra história. Construir como um puzzle onde por vezes as peças não se encaixam. Mas não importa, na próxima semana aqui estarei.
Entretanto, quero dedicar-vos um momento de beleza., onde se conjuga a música inesquecível do compositor francês, Camille Saint-Saens, a coreografia genial de Mikhail Fokine e a beleza da bailarina Ulyana Lobatkina.
O bailado é a Morte do Cisne.
Serão apenas alguns minutos mas acredito irão ver e rever. Como eu.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

SEM DESTINO

   COINCIDÊNCIAS

A semana passada terminou com um número de circo.
Ainda os aplausos, tímidos e alguns assobios estavam bem presentes e quatro dias passados, já a exibição se repetia. Desta vez ouvimos palmas, demos abraços o que sempre conforta.
Algo me diz que comecei mal este texto. Eu não estava a falar do que podem pensar. A minha arte favorita não será o circo, excepção para os palhaços quando ainda têm alma.
Foi uma rasteira que a mente me pregou. Eu nem me teria apercebido de tal. Mas hoje li como sempre faço, um pequeno cartoon impresso numa das páginas do jornal que costumo comprar. O diário é o Público e o cartoon comentava a estranha coincidência ou não, de os inteligentes assessores do governo, terem escolhido os dias em que a selecção de futebol jogava, partidas muito difíceis perante adversários de primeira ordem para se dirigirem ao Povo. O boneco, com o humor com que autor lhe dá vida, perguntava era quando é que a selecção voltaria a jogar.
E foi assim que numas tardes inesquecíveis os iluminados falaram, prometendo o leite e o mel aos ricos, porque o merecem, e a cicuta aos malandros, que ainda teimam em sobreviver.
Posso garantir que eu só estava a pensar no futebol e nas alegrias que se adivinham num futuro não muito distante. Cinco ou vinte anos não interessa, há que ter esperança.
Porém, mesmo não dando importância às conversas dos iluminados que cumprem o seu papel, eles lá saberão qual é, eu não sei nem quero saber, o gosto a fel fez-me desviar do tema escolhido. O futebol é matéria que domino quase tanto, como os oradores sabem de economia.
Acabei por deitar fora a água com que limpei o sabor amargo e com ela mandei passear o futebol.
Vou falar de cinema, publicando imagens de um filme que poderá ser entendido como uma premonição do que nos espera, a pobreza e a miséria. E sem esperança, que é o que dói mais.
O filme, Ladrões de Bicicletas foi dirigido em 1948, por Vittorio de Sica.
Esqueçam por momentos o triste espectáculo a que assistiram, os jogos e as conversas em família, por coincidência, nos mesmos dias.
Ganhem vontade de ver ou rever um grande filme. Não se arrependerão

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

SEM DESTINO

SERENATA

Acabei quase de um momento para o outro, a história a que chamei “OS DIAS DO FIM”
Estava cansado,  estou cansado.
Comecei com uma ideia e como muitas vezes me acontece, fui mudando à procura do rumo.
O meu objectivo era de articular a narrativa com música de que gostava.
No final acabou por sair uma mistura de tudo e no final prevaleceu a música.
De tentativa em tentativa, passando pelo cinema e por uma canção da minha juventude, acabei por escolher canções de espectáculos musicais.
Foi uma coincidência, assistira há pouco tempo a um espectáculo que os irmãos Feist apresentaram no teatro Mário Viegas. O tema do espectáculo era o caminho do musical, desde o seu início da Broadway, revivendo êxitos do Cole Porter, do George Gershwin, do Jerome Kern, do Richard Rodgers e do Óscar Hammerstein, até às super produções inglesas do Andrew Lloyd Weber.
Gostei, o Henrique Feist tem uma voz trabalhada e só assim se permitiu a enfrentar tal desafio. Revivi muitas canções que mentalmente trauteei e, senti-me bem. Há tanto tempo que não íamos ao teatro. Obrigado, para as duas pessoas que nos ofereceram aquela noite.
Escolhera para ilustrar alguns capítulos da história, músicas que têm um significado especial.
Escolhi o tema de Stephen Sondheim, ”Send in the clowns”, porque é uma das minhas canções favoritas, canção que mexe com a minha sensibilidade.
Por sua vez o tema “Sunset Boulevard” do musical com o mesmo nome, era a minha memória do cinema. Na realidade como a história que fui orientando, Sunset Boulevard é um filme extraordinário, sobre o fim de  uma diva do cinema, Gloria Swanson, interpretada pela própria acriz e dirigido pelo grande mestre, Billy Wilder.
Agora, antes de tentar escrever uma nova historieta, preciso de pôr a cabeça em ordem.
No meio de tantos desafios que me assustaram, acabei escolhendo uma música que me traz a paz de espírito. Fecho os olhos e oiço o piano que me embala com uma serenata de Beethoven.
E assim faço as pazes comigo mesmo e, talvez, até com outros.

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

OS DIAS DO FIM

OS DIAS DO FIM

Apesar de algum nervosismo Catarina tentava contar ao Advogado tudo o que se lembrava.
- Comece pelo princípio, pediu o Advogado. Por exemplo, como é que conheceu o casal que a convidou para passar as férias de verão? Pelo que ouvi da sua vida e que registei, a Catarina não é acessível a qualquer pessoa  e que quase nunca vira. Então esse encontro foi arranjado. Se sim, por quem?
- Catarina caiu das nuvens, lembrava-se que sentira qualquer coisa estranha no convite ,feito por gente que mal conhecia, mas com o correr dos dias, fora esquecendo as dúvidas. Olhava para o Advogado, sentia que as palavras lhe fugiam, havia qualquer coisa importante que sentia necessidade de contar, mas estava bloqueada. Gaguejava, perdia-se com os pormenores, voltava ao início, mas cada vez ficava mais confusa. A memória não lhe obedecia. Nada a fazer, parou, escondeu o rosto, fechaando as mãos como se quisesse vencer o bloqueio e a memória não respondia.
Ficou assustada e desistiu, ficando com o olhar fixo do chão, ausente e perdida.
O Advogado quis parar com o sofrimento daquela mulher tão segura de si, que conhecera daquele dia, e que agora estava esgotada e sem confiança. E disse:
- Minha senhora, vamos ficar por aqui, não se massacre mais, a pergunta que lhe fiz, foi talvez demasiado directa. Peço desculpa. Esqueça, os porquês não serão importantes para a sua defesa.
Pelo que sei, admito que o Ministério Público retire a acusação. Não me admirava nada, mas se o não fizer iremos com calma desmontar a armadilha, em que se deixou apanhar. Porque foi uma armadilha, tem consciência disso não tem?
 Acenou que sim, mas não procurou saber mais nada. Naquele momento o que desejava era respirar o ar da rua, deixar que o vento lhe levasse os temores e encontrasse a paz que precisava.
Saiu amparada ao braço da amiga. O pequeno automóvel de Valéria estava estacionado na garagem do edifício, entrou e quando o automóvel encontrou a rua e o caminho de casa, abriu a janela e uma chuva leve fez-lhe bem. Recuperara do mau momento. Catarina entrou em casa, abriu a caixa de correio e voltou a ficar agitada.
- O que é que se passa, pergunta Valéria, estavas tão bem e voltaste a tremer?
- Sim mas de excitação. Esta carta é da editora a quem entreguei o livro de que te falei. Tenho medo de abrir, receio a resposta..
Valéria pegou no subscrito, abriu, retirou uma carta em papel timbrado e começou a ler em voz alta:
“- Cara Senhora,
Recebemos o seu romance “Os dias do Fim”.
A Direcção vem por este meio comunicar-lhe o nosso interesse em proceder à publicação do romance, com uma tiragem que consta do contrato que lhe submetemos em anexo.
Gostamos do seu livro e achamos que terá êxito. No nosso projecto será considerada também a sua adaptação para o cinema. Convidamo-la a analisar com cuidado os termos e as condições que lhe propomos e que serão certamente do seu agrado.
Ficamos aguardando a sua visita breve, para se assinar o contrato e se acordarem eventuais colaborações na revisão do texto, escolha da capa e da contra-capa, prefácio e ou dedicatória se for sua intenção.
Acredite, o seu livro será objecto de um lançamento que a sua qualidade justifica. Os intervenientes ficarão sujeitos à sua aprovação.
Apresentamos os nossos melhores cumprimentos”
- Catarina acorda, és uma escritora e esse vai ser o teu caminho. Fico tão feliz porque tu mereces esta notícia, ainda mais depois de uns momentos difíceis.
-Valéria, sabes que o livro se baseia numa história real. A ascensão de uma mulher ao estrelato e a sua queda no ocaso. Não assinarei o contrato sem primeiro ter um encontro com a mulher que me incentivou a contar a sua história, mas sem nomes nem datas.
Encontrei-a, há mais de vinte anos. Era eu uma jovem jornalista a dar os primeiros passos nesta vida e, ela uma estrela adorada pelos admiradores e disputada pelos produtores. Era uma mulher muito bela, muito elegante, os homens andavam loucos por um sorriso. Foi muito simpática ao falar comigo. Lembro que ao contrário do que diziam, não era uma cabeça vazia.
Quinze anos depois voltei a vê-la. Estava só, os anos não tinham sido generosos e o seu rosto, outrora luminoso e atraente, estava agora carregado de maquilhagem. Estava magra, perdera a elegância e disfarçava o perfil,  envolta em vestidos vaporosos que já não se usavam.
Fiquei triste. Já não era uma estrela, as paixões tinham desaparecido e o último homem da sua vida, fora um oportunista sem eira nem beira que lhe extorquiu o pouco amor próprio, que ela ainda tinha.
Foi na solidão de um banco de um bar, que ela me incentivou a escrever. Ela, a Margarida do livro, nome falso é claro, estava a aproximar-se dos dias do fim. Eu fui testemunha da decadência e por isso o livro terá de lhe ser dedicado.
FIM




quarta-feira, 5 de setembro de 2012

OS DIAS DO FIM

MUDAR DE VIDA

O Editor da revista telefonou-lhe pedindo para se apresentar na redacção. Ela era apenas uma avençada, não devia satisfações mas a sua colaboração num dos cadernos era uma parte substancial do seu rendimento.
Foi e enfrentou o homem de quem não gostava, tendo tido alguns problemas de relacionamento que nunca sararam. Edmundo receava Catarina, sabia que ela tinha uma agenda muito detalhada e documentada e portanto seria uma inimiga perigosa. Mas desta vez era ele que lhe apresentou fotografias dela a ser conduzida no carro celular acusada de traficar cocaína. O seu rosto abriu-se num sorriso alarve comentando:
- Minha pobre amiga como é que você se deixou apanhar nas teias da Lei e logo suspeita de traficante de drogas duras?
Catarina ia responder mas Edmundo não lhe deu tempo e continuou:
- A sua colaboração nesta revista acabou, a Administração mandatou os serviços Jurídicos para defenderem o bom nome desta revista que não pode ser ferido pelo seu comportamento irresponsável e que pode arrastar a Revista para um processo Judicial, que fará as delícias dos nossos concorrentes.
Fica por isso suspensa a sua colaboração, mande os recibos referente a trabalhos ainda não liquidados, receberá o seu valor e nunca mais, repare bem, nunca mais a quero encontrar na redacção.
Adeus e lembre o meu último aviso. Tenha cautela, não solte o seu conhecido mau génio. Arranjarás mais problemas, isso será garantido.
Catarina levantou-se e aproximando-se cara a cara do Edmundo, replicou:
- Ri melhor quem ri por último. O mundo dá muitas voltas e um dia alguém poderá contar as tuas manobras, as tuas mentiras, a tua chafurdice que levaram um homem, desculpa se te ofendi, um indivíduo medíocre a atingir uma posição para a qual não tens o mínimo de preparação.
A tua história dará um livro. O título até poderá ser” como subir na vida corrompendo os outros e vendendo-se a si mesmo.”
Não será propriamente um livro recomendável mas adivinho terá sucesso garantido. Ainda irei pensar nisso.
 Virou-lhe as costas e saiu batendo com estrondo a porta do gabinete, deixando Edmundo exposto ao riso dos colaboradores que tinham assistido à cena.
Respirou de alívio logo que abandonou a revista. Agora teria de procurar trabalho.
Ela sabia que tinha mercado, já rejeitara muitas ofertas de trabalho porque lhe exigiam a exclusividade.
Agora livre poderia escolher.
Podia mas não foi. Fez inúmeros contactos, foi sempre recebida com atenção mas as pessoas culpavam a crise traduzida na diminuição das tiragens, nos cortes de publicidade, na dificuldade de arranjar patrocínios. E todos acabavam por dizer que lamentavam, mas não tinham verba disponível para contratar uma especialista. Faziam as revistas com fotografias, meia dúzia de notícias mal alinhavadas, mais umas fotografias com alguma carga erótica e pronto. Fecha e sai para as vendas.
Na realidade, Catarina andara muito tempo afastada das realidades do dia a dia. O seu trabalho era com outra qualidade, razoavelmente pago, ganhara nome e experiência mas agora nada lhe iria servir.
Tinha algumas reservas financeiras, não tinha encargos avultados mas os recursos não eram inesgotáveis.
Enquanto no sossego da casa ia pensando no futuro o passado estava a bater-lhe à porta. E foi-lhe levado por um agente da Autoridade sob a forma de uma notificação para comparecer no julgamento sobre a rede de tráfico de droga onde se vira envolvida.
Ficou abalada com a notificação, sentiu  que um tremor que percorria o corpo. Esquecera-se que tinha contas a prestar e nem procurara um advogado. Não valerá a pena, pensava, não cometi nenhum crime, ninguém me vai condenar por algo que eu não fiz. Pelo menos não me lembro de ter guardado os malditos envelopes.
Estendeu-se no sofá, fechou os olhos e reviveu a sua vida, à procura daquela jovem, cheia de projectos, capaz de transformar o mundo, sonhos que pouco a pouco fora perdendo.
Era ainda jovem quando perdera os Pais num acidente de automóvel. Fora o seu primeiro contacto com a realidade da vida. Como tudo lhe parecia agora distante. Perdera afectos, faltou-lhe o ombro amigo mas não se deixou vencer.  Todavia os sonhos pedidos nunca mais foram encontrados.
Apaixonou-se, mas foi um amor efémero,  ao menor percalço soçobrou.
Agora, a aproximar-se dos quarenta anos,  tinha  mais um desafio. Não tinha trabalho e brevemente estaria sentada no banco dos réus de um Tribunal. Que importa, se a minha vida foi desperdiçada  eu fui a culpada, devo pagar o preço.
Deixara-se envolver pelas recordações. Era como se assistisse a um filme, quer o projector transmitia a velocidade dez vezes maior. As imagens sucediam-se, os rostos eram aparições fugazes e no final ficava o vazio, o fim.
O telefone tocou. Era um som desagradável que no silêncio da noite lhe feria os ouvidos.
Atendeu, era Valéria, a amiga que lhe restava:
- Catarina perdoa, esqueci-me te dizer que amanhã pelas onzes horas temos uma reunião com o Dr. Maurício Costa, o advogado que me foi recomendado pelo meu chefe. Ele é o advogado da Agência e acedeu a organizar e conduzir a tua defesa no processo do Algarve.  Não podes faltar e eu passarei por casa para te acompanhar.
Agora descansa, vemo-nos amanhã.   
Catarina estava ausente, ouviu a amiga mas não respondeu. Sentiu-se cansada e vencida. Na sua cabeça apenas uma ideia fazia caminho. Mudar de vida e procurar fazer algo de diferente. O quê, não fazia ideia, mas voltar ao passado não, o passado eram apenas memórias.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

OS DIAS DO FIM

A VIDA É UM FILME

Valéria passou a ser uma visita diária. Passava na hora de almoço e voltava depois do jantar. Ficava até tarde, ouvia Catarina falar da sua vida, do seu casamento falhado, dos seus sonhos perdidos, das amizades traídas, da vida fingida e da sua imensa solidão.
Depois uma noite resolveu contar as suas experiências os seus desenganos a vergonha por que passara, desde o dia em que acordou despida, escondida no recanto.
Sofrera a sensação de ter sido violada, objecto de jogos sexuais mas tudo fizera para esquecer. Aprendera com a lição e anos depois deixara-se conduzir para uma caminho ainda mais pedregoso. Agora tinha a certeza que fora um peão num jogo mais perigoso, O tráfico de droga. E pela primeira vez tinha medo.
Foi Valério que lhe lembrou a conveniência de contratar um advogado para preparar a sua defesa quando fosse chamada a julgamento. Não seria fácil, ninguém acreditaria que a cocaína que fora apreendida na sua mala, o que ela confirmou, não seria para consumir ou traficar.
Explicação não tinha, mais uma vez bebera e fora descuidada.
Lembrou-se que fora colega de liceu dum rapaz que voltara a encontrar mais tarde, na altura Juiz do Tribunal da Comarca. Tinham tido enquanto jovens alguma proximidade e um namorico que a vida se encarregou de afastar. Mas viam-se de vez em quando, o amigo continuava a morar perto, e com alguma frequência se encontravam sentados no bando do jardim.
Era engraçado, recordava Catarina, eu escrevia no meu portátil historietas e notícias sem relevância enquanto Alfredo procurava naquele intervalo oxigénio para respirar depois de noites a trabalhar sobre processos que tinha para despachar.
Tomou uma decisão, vou pedir-lhe que me aconselhe o Advogado digno de confiança. Não sei se será correcto mas antes ouvir uma escusa de alguém em que se acredita no que ser acompanhada por um advogado com outros interesses.
Passou a sair, era o princípio do mês de Setembro, o tempo estava muito agradável e o respirar ar puro far-lhe-ia bem.
Numa dessas saídas, de manhã bem cedo, Carlos sobraçando um livro dos pesados, um código certamente, ocupou o lugar a seu lado.
Foi uma conversa sobre férias, sobre coisas do dia a dia. A certo ponto Carlos contou que se tinha divorciado. Fora um momento difícil, um divórcio litigioso com crianças envolvidas e ele não aguentara. Uma depressão e a baixa médica foram o resultado.
Catarina ficou surpreendida, porque viu a expressão dorida no rosto do amigo e um sistema nervoso tão fragilizado que o levava a fumar cigarro atrás de cigarro. E perguntou:
- Carlos um divórcio não é nunca o fim da vida, é com mais dor ou menos dor um começo de uma nova. Mas a fumares desalmadamente como te vejo, receio pela tua saúde. Presumo que o divórcio foi há pouco tempo, verdade?
- Sim a sentença foi pronunciada faz amanhã dois anos!
- Dois anos, e tu ainda sofres dessa maneira? Meu amigo, precisas de ajuda. Porque não procuras um Psicólogo?
Carlos não respondeu, olhou para Catarina murmurando:
- Sabes o que mais me dói é que eu fui o culpado. Deixe-me arrastar por uns olhos negros, e depois caminhei para o precipício. Levantou-se e com um andar vacilante partiu.
Catarina ficou siderada. Como é que um divórcio pode levar um homem adulto, habituado a tomar decisões que envolvem a vida e a liberdade de outros, se deixa abater por um caso pessoal, cada dia mais vulgar?
Regressou a casa, não conseguia esconder a perplexidade daquele encontro. E eu que julgava que a minha vida era um romance e afinal há outras histórias por contar.
Sentou-se no seu lugar preferido, via a luz do sol que lhe iluminava a casa vazia, e de uma forma febril escreveu, e escreveu capítulos do romance inacabado. O encontro com Carlos dera-lhe inspiração para dobrar o cabo das tormentas. O livro era agora o exemplo.
O sol já há muito se escondera. Era noite quando Valéria lhe fez a visita habitual. Encontro Catarina com um ar feliz, como o de alguém que se libertara dum pesadelo.
- Não acredito, disse, estou a ver a mesma Catarina que ontem deixei chorosa e perdida?
- Catarina sorriu e mostrou as páginas impressas do seu romance dizendo:
- Hoje a senti força e inspiração para terminar o meu livro, Os Dias do Fim. Agora é preciso reler, corrigir e arranjar uma editora que aceite a sua publicação.
- Parabéns, depois gostarei de ler o livro, mas quando estiver impresso, não gostaria de influenciar a tua escrita.
Agora vamos jantar. Hoje é dia de festa. Porque venceste os teus medos, as tuas indecisões, os teus recuos e abriste um caminho novo.