quarta-feira, 27 de junho de 2012

SIMÃO & COMPANHIA


Joana Vasconcelos
Ave no Paraíso
Manufactura de Tapeçarias de Portalegre
Portalegre/Portugal

13 – DEZ ANOS DEPOIS – 6º CAPÍTULO

Mais uma vez o vinho fora o elo de ligação entre amigos desencontrados, pensava Simão enquanto com uma lágrima no olho regressava a casa.
Enquanto guiava pela marginal, olhando o mar azul e as ondas que vinham beijar a estrada, sentia um mal estar sem que percebesse a razão. Mas a sucessão de acontecimentos, todos tendo como ponto comum o vinho e a quinta onde era produzido, pareciam um desafio que lhe era colocado. Ansiava por chegar a casa e partilhar com a mulher aquela dúvida, aquela coincidência, nem sabia o que lhe devia chamar.
E o mais estranho era que quanto mais desejava acabar e esquecer mais preso se sentia àquele turbilhão em que se deixara envolver.
Luísa percebera de imediato que alguma coisa acontecera e com um sorriso, que espelhava a serenidade com que enfrentara a vida, perguntou:
- Então Simão quem foi o fugitivo que hoje te apareceu?
- Simão começou a repetir todos os passos desde o dia em que em Paris entornara o copo de vinho, do seu vinho, sobre a mesa e o vestido de Carla, o primeiro membro do grupo que encontrara. E depois a satisfação de saber que o Carlos, se lembrara dele, quando em Nova Iorque provou o néctar da casa da ribeira. E agora, numa reunião profissional fora reconhecido pelo Luís, o mais fiel dos amigos, aquele que nunca exigira nada e tudo dera. E mais uma vez a reunião tinha como razão de ser, o vinho.
Como é que tu achas que eu me sinto? Até tenho medo, confesso, parece que alguém comanda a minha vida.
Tenho de terminar esta turbulência. Afinal fomos amigos, cada um seguiu o seu caminho e agora, mais de dez anos do dia em que nos despedimos, o destino bate-me à porta. Mas porquê a mim, perguntava?
A mulher ouviu e sugeriu:
- Pelo que te conheço tens de ser capaz de acabar a tarefa. Não importa porque foste escolhido. Foi o destino, ou pensa aquilo que quiseres, mas lembra-te quem mais podia ser?
Na realidade tu eras e és o dono da casa onde vocês se despediram, és ainda o produtor do vinho que levou a nome dessa casa e que, felizmente, tens exportado para diversos Países, logo tu és o único elo de ligação entre o grupo. É tão simples quanto isso, nada de magia ou de caminhos traçados pelo destino.
O vinho tem sido a tua marca identificativa e com mais ou menos tempo acabará por chegar a todos os membros do grupo. Só que, isso também tens de considerar, pode um ou outro que mesmo entendendo a chamada, não esteja disposto a dar a cara.
- Tens razão, deixei-me levar por razões que não queria entender quanto a realidade é mais simples, é o prazer de gostar de beber vinho, de preferência que nos traga lembranças da terra que nos viu nascer. E por coincidência, admito que talvez tenha sido o único que ficou. 
Percebia que a amizade não era eterna, a vida escolhia os caminhos e alguns se terão perdido, mas ainda assim sentia um impulso, agora irresistível, de continuar a procura.
Abriu o computador portátil e na pasta de contactos acrescentou o do Luís. Contando com a irmã, ficavam a faltar dois companheiros. Leonor e Frederico.
Luísa sugeriu ser ela a preparar a mensagem a cada um dos amigos identificados. Pensava enviar em anexo um pequeno filme, retratando em animação as personagens principais. Reaprenderia a técnica de Web designer e com um pouco de imaginação era capaz de produzir um desenho animado, retratando o grupo, as suas diferenças os seus segredos.
O correio era uma informação e ao mesmo tempo um convite, para um encontro na Casa da Ribeira, num fim de semana a combinar, preferencialmente no final do próximo Outono. Seria altura ideal para um encontro à lareira beberricando o vinho e contando as suas aventuras.
Nesse mesmo dia,  Luís despachou os assuntos correntes e refugiou-se no seu gabinete.
Estava de pé, olhando pela janela o cair da noite. Havia alguns farrapos de nuvens que permitiam ver as estrelas.
As estrelas sempre o fascinaram, quando era miúdo falava com elas e deu-lhes nome. Mas já não se lembrava, agora reconstituíra a noite na serra, dormindo sob o céu estrelado, em que ele e Frederico contaram as suas dores, os seus projectos, enquanto bebiam cerveja e fumavam cigarro atrás de cigarro. Fora o primeiro dia das férias de fim de curso. E fora o primeiro dia de uma semana em que, por conflitos e rancores escondidos o grupo se separara.
Tinha procurado esquecer aqueles dias, onde o grupo perdeu as referências e que aguardaram com impaciência o fim das férias e o começo de uma nova vida, cada um escolhendo o seu caminho.
Ele também escolhera, não fora sequer difícil. Não podia continuar os estudos, não tinha dinheiro para isso, mas já tinha assumido que o trabalho seria o seu destino.
Logo no primeiro dia após as férias tumultuosas, apresentou-se e pediu trabalho ao Tio.
E trabalhou de sol a sol, um trabalho aqui, outro ali, mas sempre conseguia chegara ao fim da semana com dinheiro para aliviar a canseira da Mãe.
Foram dois anos difíceis mas ele nunca vacilou. Fez companhia ao irmão evitando que ele se visse só e perdido na vida. Mas ambicionava mais.
 Era preciso arriscar e convenceu o Tio a ajudá-lo a montar uma pequena empresa em Moçambique.
Mas precisava de algum capital de que nem ele nem o tio podiam dispor.
E lembrou-se do amigo rico, lembrou-se do Frederico. Em boa hora o fez, as relações de Frederico com o Pai tinham melhorado, e sem hesitação o Dr. Gustavo de Freitas aceitou dar o seu aval a um empréstimo para a execução do projecto que Luís apresentara ao Banco.
Luís ia partir para Moçambique, um jovem de vinte anos preparava-se para começar quase do nada uma estrutura capaz de responder aos desafios e à concorrência. Com ele seguiriam dois encarregados muito experientes, que eram considerados como parte da família. Tinham sido sempre o apoio do Tio e agora embarcavam naquela aventura.
Mas não queria partir sem se despedir do amigo. A ele devia não só a amizade como a força para avançar.
Foram jantar juntos, Frederico estudava Direito e Leonor, medicina. Viviam um amor que se adivinhara, como Leonor sempre dissera, tinham nascido um para o outro. E acreditaram naquele desígnio. Eram felizes, encontravam-se e partilhavam o amor e a paixão. Viviam num mundo perfeito, ainda não tinham querido perceber que tal tão existe.
Luís conhecera as dúvidas do amigo e a sua carência de afecto. Frederico seria como uma criança que vivia perdida num mundo de adultos mas ao vê-lo feliz, calmo e apaixonado percebeu que o amor move montanhas. Frederico deixara-se enfeitiçar pelos olhos verdes de Leonor e sentia-se bem. Nem parecia o mesmo jovem indeciso e distante que encontrara perdido naquela noite na serra. Acabaram a noite no apartamento de Leonor, falando do passado com saudade e do futuro com esperança.
Luís embarcou para Moçambique e não mais teve descanso. Não era fácil, não foi fácil, mas nunca desistiu. Conseguira que o irmão lhe seguisse os passos. Tinha recebido um convite para dar aulas Psicologia e aceitara. Luís foi o irmão o chefe o guia e com ele a seu lado, Paulo conseguiria ultrapassar o período de trevas.
Passaram mais três anos, onde apenas no final encontrou tempo para visitar a Mãe e o Tio. Foi uma visita em pleno Agosto e apenas por uma semana. O seu primeiro cuidado foi procurar Frederico e Leonor. Não os encontrou e ninguém lhe sabia dizer onde estariam os dois amantes. Mas era verão nada lhe causou surpresa.
A Mãe recusou sair da sua casa. Guardava as suas energias para ajudar a cuidar dos netos. Nesse caso podiam contar com ela. E olhando para o filho disse:
- A vida foi madrasta em muitos aspectos mas deu-me a fortuna de ter dois filhos, diferentes mas a que dei todo o amor. Mas para ti Luís, deixa-me formular um desejo; Que a vida te dê a mulher, a companheira que tu mereces.   
Luís conseguira aos vinte e sete anos de idade, a sua independência mesmo em termos financeiros. Estava cumprida a primeira parte da sua promessa. Foram cinco anos nos quais Luís organizara a sua vida e saldara a última prestação do empréstimo.
Veio a Lisboa, queria confirmar com o Banco a regularização do empréstimo e analisar uma proposta de linha de crédito que o Banco lhe oferecera.
Depois voltou a procurar, sem sucesso Frederico e Leonor. E como queria agradecer ao Pai de Frederico a sua ajuda, decidiu procurá-lo na Faculdade.
O  Professor Doutor Gustavo de Freitas, o pai de Frederico não tinha resposta para lhe dar.
Sabes, dizia ele, o Frederico para além dos problemas familiares que ele certamente lhe contou, confiou no amor de uma mulher e sofreu uma desilusão.
Eu não a conheci, sei que na altura ela estudava medicina e era uma excelente aluna. Acredito que esteja a frequentar algum estágio ou a exercer medicina noutro País.
O Frederico viveu quatro anos de um amor que julgava eterno, pobre rapaz, isso só existe nos filmes ou nos livros. Partiu de repente, sem dizer adeus. E nunca mais tive notícias. Têm sido anos muito duros.  
 E como se falasse consigo próprio continuou.
- Ele esqueceu-se de nós, mas na verdade fomos nós que, desde criança, nos esquecemos do Frederico. Eu assumo a minha culpa e gostaria de lhe pedir perdão. A minha mulher está cada vez mais distante. Vive noutro mundo onde não cabem sequer as recordações. Nem sei se ela se lembra de que tinha um filho e onde ele está.
Luís olhou para o rosto do Pai do Frederico. Já o tinha conhecido, um rosto severo mas agora via um velho amargurado e vencido.
Custou-lhe muito aquela imagem e saiu do gabinete quase sem o Professor se aperceber.
Com a desilusão apressou a sua viajem de regresso. Estava no Aeroporto, já despachara as malas e quando foi despedir-se da Mãe. E teve a maior surpresa quando ela lhe entregou um maço de cartas, dizendo:
- São cartas para ti, de um amigo verdadeiro. Eu recebi-as no correio, com o meu endereço mas o destinatário és tu. O Frederico, o teu amigo, pediu-me que só as devia entregar quando a tua aventura tivesse um fim feliz. Que ele tanto desejava. Acho que ele, onde quer que esteja, compreenderá, hoje é o dia.

António Soares
Natacha
Museu do Chiado
Lisboa/Portugal




quinta-feira, 21 de junho de 2012

SIMÃO & COMPANHIA


Danielle Moser
Ozoud
Manufactura de Tapeçarias de Portalegre
Portalegre/Portugal


12 – DEZ ANOS DEPOIS – 5º CAPÍTULO

Simão passara o fim de semana, brincando com os filhos, conversando com a mulher e quase esquecera o telefonema do Pai relatando a visita do Carlos.
Mas algo lhe tocara. Estava sentado na sala, olhando para o pôr-do-sol que espreitava por entre as nuvens no horizonte. A vida tinha sido generosa. Dera-lhe uma família unida, dera-lhe o sabor da terra e o odor das flores e a luz do sol iluminando os socalcos da serra e acariciando as águas azuis do rio, que serpenteava entre as colinas, dera-lhe a imensidão da paisagem do Alentejo, a calma das horas mortas e a tranquilidade dos  horizontes sem fim.
Não escondia, era um homem realizado.
Mas naquele momento estava longe, voltara muitos anos atrás e recordava os tempos da juventude inquieta, os amigos, com os seus receios e os seus desafios. Afinal ele era mais velho, vivia a vida com a sabedoria dos camponeses com quem crescera, era um marco de estabilidade num grupo muito influenciado pelos sinais do tempo.
Nunca mudara o seu comportamento plácido e sereno. Fizera bem, era um homem feliz.
Sentada a seu lado, Luísa folheava as páginas de um livro. Olhava com atenção para o marido, não era habitual aquele estado de distância. Simão estava ausente e isso deixou-a preocupada.
Resolveu quebrar a nuvem que o isolara, perguntando:
- Afinal ainda não me contaste a razão porque, ontem o teu Pai tinha tanta urgência em falar contigo! Alguma coisa corre mal e que eu possa ajudar?
-Não, que ideia desculpa mas esqueci-me. Ontem o meu Pai foi contactado por um dos amigos do grupo de que perdera o rasto.
Ficaste surpreendido ou desagradado, pergunta Luísa?
- Fiquei feliz. O Carlos foi estudar para o Porto, formou-se, fez um doutoramento nos EUA, e no jantar de despedida foi-lhe servido o nosso vinho. Ele lembrou-se e no regresso e foi à Casa da Ribeira, e lá encontrou o meu Pai.
Mais um que escolheu e percorreu o caminho correcto. Teve dúvidas, quem as não teve, mas agora vai trabalhar no CERN em Genebra.
- Mas o Carlos não era aquele amigo que te conseguia fazer perder a paciência?
- Sim era, mas aquilo era tudo encenação. Ele era muito tímido mas andava perdido de amores pela Leonor que por sua vez não lhe dava atenção.
- Nunca me contaste esses amores. Também tu fazias olhinhos à Leonor? Não me admira, nunca me falaste dela!
- Uma cena de ciúmes era tudo o que eu não estava à espera. Mas não tens razão, Leonor foi um relâmpago que iluminou alguns dos rapazes, mas da realidade ela só tinha olhos e sorrisos para o Frederico. Não deve ter tido sorte, o Frederico era como a estrela que brilha ou se apaga na noite escura. Era tão livre que não conhecia limites para os seus sonhos. Quando se vive num mundo diferente é difícil compreender e aceitar. Frederico na minha opinião era um poeta e um visionário cercado por uma imensa solidão.
- Desculpa mas não percebo como de um momento para o outro dei contigo a vaguear nas nuvens à procura de quê? Sempre te conheci com os pés bem assentes na terra, por isso estranhei e, para ser franca, fiquei preocupada.
- Tens razão hoje senti-me a voltar aos anos da juventude. Houve qualquer coisa que me perturbou. Eu não acredito do destino, mas repara bem, numa semana encontro a Carla e o Carlos e a luz que nos juntou foi o brilho, o odor do vinho, do nosso vinho. Não achas estranho? Parece que há uma força que, dez anos depois, teima em nos juntar. Que força será essa?
- Talvez seja por aí que deves começar. Tens uma página na internet de muito bom gosto. O quadro da Casa da Ribeira que ilustre o rótulo das garrafas está muito bom e as informações também. Vê com o teu homem do marketing, como podem escolher um vinho como o elixir do amor, ou da amizade ou do reencontro. Não sei como, mas porque não uma imagem, mesmo desenhada do grupo dos sete? A informação viaja mais depressa do que nunca.
- Até podes ter razão mas eu não quero misturar um negócio com sonhos de adolescentes que se desencontraram.
Sem nada fazer encontrei dois, se conseguir entrar em contacto com o Luís ele saberá certamente como encontrar o Frederico e depois a Leonor.
Quando tiver um pouco de tempo procurarei nos meus cadernos do liceu que ainda guardo encaixotados na arrecadação. Quem sabe encontro a lista dos amigos com o nome completo, morada e telefone.
Se nada conseguir, olha ficarei esperando que o vinho cumpra a sua missão e faça magia.
Mas por hoje chega, amanhã é dia de trabalho, estarei muito ocupado, é altura de analisar as contas do trimestre. Também a Maria Antónia já deve poder apresentar o projecto de investimento para a nova unidade no Alto Alentejo. Tenho muita fé na ideia, mas as contas não se guiam por ideias mas pela análise custos/benefícios.
- Eu não sou economista, esse não é o meu mundo, mas crescer sem investimento na qualidade não valerá a pena, só irás arranjar dores de cabeça e prejudicar o que de bom já conseguiste. O meu Pai pode dar-te uma ajuda. Ele não se quer imiscuir, mas tem conhecimentos e bom senso, o que ainda é mais importante.
- Já tinha pensado nisso para me ajudar a ver os detalhes das propostas, que recebemos em resposta ao caderno de encargos.
Simão regressou ao escritório e levou com ele o sogro e o seu bom senso. Corria o risco de desagradar ao Pai, precisava de encontrar forma de o associar à decisão. O Pai era sobretudo entusiasmo e tinha um feitio desafiante.
Enquanto conduzia na fila interminável da auto estrada com direcção a Lisboa, foi congeminando a forma de levar o Pai e o Sogro a tomarem uma atitude conjunta e partilhada. Era o caminho a seguir. Ele daria apenas seguimento à decisão dos dois familiares.
Demorou algum tempo até concluírem a análise das propostas. O tempo começava a ficar curto pois queria ter as instalações prontas a tempo da próxima vindima.
Não conseguiu acompanhar a escolha até final, dera o seu parecer mas não o discutira. Porque, entretanto o importador russo mandara, via correio electrónico, uma mensagem mostrando o seu interesse em se deslocar a Portugal, sugerindo mesmo uma data. Faltavam menos de quinze dias.
Simão ficou preocupado, aquela visita era o resultado do investimento que fizera para entrar no mercado russo, com vinhos de qualidade superior mas que não tinham o peso das grandes marcas francesas.
Se o importador russo aceitasse comprar ele tinha a certeza do sucesso. Precisava de preparar a visita e isso deu-lhe a oportunidade de deixar ao critério do Pai e do Sogro a decisão de adjudicação do contrato para a concretização do novo investimento. Ele apenas estaria presente na assinatura.
 E fora uma decisão acertada. Os dois estiveram de acordo tendo ficado agradávelmente surpreendidos com a qualidade da proposta e com a transparência e o rigor do gerente da firma. 
No dia combinado os dois representantes da firma concorrente, foram recebidos pela secretária e acompanhados à sala de reuniões.
Enquanto aguardavam a chegada dos donos da obra, um homem ainda jovem apesar dos cabelos grisalhos, levantou-se da mesa e parou, olhando fixamente para um quadro exposto da sala. Sorriu e foi-se sentar.
Simão e os dois assessores deram então entrada na sala, cumprimentaram-se e a Secretária entregou a um dos presentes um exemplar do contrato para ser lido e assinado entre as partes. Mas um dos visitantes não pegou sequer no dossier.Levantou-se, pediu desculpa por interromper aquele momento e surpreendeu os presentes:
- Antes de assinarem o contrato quero roubar um pouco do vosso tempo. Virando-se para a cabeceira da mesa, o lugar de Simão, continuou:
- Quero contar uma história e peço apenas alguns minutos da vossa atenção:
- A história começou à muitos anos, quando um grupo de jovens estudantes criou um grupo ligado por laços de amizade. Éramos um grupo de sete amigos. Mais de dez anos atrás, eu e todo o grupo estivemos naquela casa da fotografia. Era a festa de despedida do curso liceal. Não correu bem, a semana de férias terminou e cada um seguiu o seu caminho, esquecendo a amizade que os unira. Alguns conheciam o caminho, outros continuavam cheios de dúvidas. Mas foi assim, friamente, que cada um partiu, uns mais depressa outros mais devagar, alguns com tropeções outros mais decididos, alguns temendo o futuro outros já sem esperança  Eu era um desses e o meu futuro foi guiado pela realidade.  Mas, apesar das diferenças e  antes daquele fim de semana, éramos amigos
E hoje, dez anos depois, aquele quadro com a fotografia da Casa da Ribeira despertou as minhas memórias. Eu pergunto-me, será que tantos anos passados ainda conservamos a amizade do grupo Simão e Companhia?
Eu sou o Luís Ribeiro, não me perdi nos caminhos da vida, apenas desci à terra e abracei o trabalho para meu bem e da minha família. Mas sinto de todos, mas de todos, uma imensa saudade.
Simão com a voz embargada pela comoção murmurou:
- Obrigado Luís,  este é mais um dia que não vou esquecer. 

 Abel Manta
Praça Camões - Lisboa
Museu do Chiado
Lisboa/Portugal

segunda-feira, 18 de junho de 2012

SIMÃO & COMPANHIA


Guilherme Camarinha
O trovador
Manufactura de Tapeçarias de Portalegre
Portalegre/Portugal



11 – DEZ ANOS DEPOIS – 4º. CAPÍTULO

Moscovo, coberta de neve apesar de se aproximar o fim do inverno russo. Um automóvel com motorista fardado parava à porta do centro comercial mais conhecido da cidade, frequentado pelos mais ricos, e há muitos naquela cidade, outrora tão austera. O adido comercial da Embaixada acompanhou Simão na sua primeira entrevista com um importador russo de renome. Vassily Orlov, empresário que controlava o comércio de artigos importados, desde os automóveis de luxo até aos bens alimentares, incluindo nessa categoria, os vinhos mais renomados.
Era um homem muito ocupado, dizia, pelo que raramente era visitado pelos exportadores desejosos de fazer negócio. Mas num dos seus escritórios, no piso superior daquele enorme centro comercial, com vistas desafogadas sobre a avenida e de frente para o palácio do Kremlin, mantinha um escritório vocacionado para a distribuição de bebidas para abastecimento das lojas de luxo ou até para as residências da nova aristocracia russa.
O representante tinha aceite receber o produtor de vinho, credenciado por ter ganho duas medalhas de ouro e uma de prata, em recentes feiras internacionais.
Simão levava para oferecer duas caixas com meia dúzia de garrafas da colheita premiada e assim desafiar o bom gosto do importador. Tal gesto foi recebido com gosto, tendo o representante garantido que a oferta seria entregue ao senhor Orlov, logo que ele regressasse duma deslocação para exames médicos, que devia fazer periódicamente, num hospital de referência no norte da Europa.
O espaço em que se encontravam, um escritório amplo e decorado de forma que mais parecia um salão dum  palácio,  tinha  um recanto mobilado por poltronas e sofás de qualidade superior. Numa vitrina, copos de cristal brilhavam com a luz de um candelabro imperial.
Simão apresentou o seu produto, vinho branco e tinto, comercializado em garrafas numeradas de acordo com o ano da produção. Deixou um dossier com o catálogo, com preços e condições de venda.
O catálogo, bilingue, era preenchido por fotografias das vinhas do Douro e do Alentejo, onde concentrava a sua produção. Descrevia as castas utilizadas, e cada vinho era apresentado por um enólogo reconhecido, nacional e internacionalmente.
Nas páginas centrais, onde eram apresentados os vinhos premiados, cada garrafa era comentada e valorada por chefes de restaurantes laureados com estrelas Michelin.
O produto era de qualidade, Simão já ouvira isso muitas vezes, mas era preciso romper as barreiras dos afamados vinhos franceses. Para isso, optara por uma produção dirigida aos grandes apreciadores e, finalmente investira numa campanha de marketing estudada por especialistas. O catálogo e as garrafas de oferta eram exemplos de um trabalho profissional.
Terminada a apresentação, Simão recebeu os cumprimentos afáveis do director de compras que fez questão de salientar a qualidade da apresentação.
O Dr. Alberto Freitas, adido comercial junto da Embaixada era um homem com grande experiência e muito considerado. Acompanhara Simão salientando que, para um produto ver reconhecida a sua qualidade tem de ser apresentado pelo produtor com orgulho.
- É natural, dizia ele, que o importador russo demore a decidir e não devemos pressionar. Dá mau aspecto.
O senhor apresentou não só um produto de qualidade como também algo que é muito importante. Fez com que as garrafas e as embalagens gourmet, tivessem classe e fossem por isso apelativas. Significa o bom gosto de quem mostra que está interessado em vender o seu produto, mas que não a qualquer um e a qualquer preço.
Estas pessoas com muito poder e muito dinheiro não gostam de ser confrontados com vulgares comerciantes. Admito que antes de lhe propor qualquer negócio ele se mostre interessado em conhecer os lugares da produção. Se assim for  ficará conquistado.
Aprendi que um pouco de orgulho ajuda a vender um produto de qualidade. Não devemos nunca pressionar o comprador. A partir desta visita, quase de cortesia, aceite o meu conselho, regresse a Portugal e aguarde. Não se mostre nunca ansioso. Colherá os benefícios, vai ver meu caro amigo, concluiu o Adido Comercial, ao deixar Simão à porta do hotel. Que pena o senhor Embaixador estar fora, ele ficaria contente por o receber.
- Não faz mal, eu agradeço a sua ajuda, dê os meus cumprimentos ao senhor Embaixador mas por hoje ficarei no hotel. Compreenda estou cansado.
No dia seguinte seria a viagem de regresso. Muitas horas de avião, esperas em aeroportos, inspecção de bagagem e de documentos, etc. Voaria de Moscovo para Frankfurt e depois para Lisboa. Teria tempo para recuperar as emoções.
Sentou-se no cadeirão espreitando o anoitecer na cidade e um trânsito cada vez mais intenso. Já viajara por muitas cidades mas em nenhuma vira tanto tráfego de limusinas.
Nem em Nova Iorque ou nas cidades ricas dos Países do Golfo. Se o meu Avô fosse vivo e eu lhe contasse, nem acreditaria.
Chegou a Lisboa era já noite, não passou pelo escritório e tomou um táxi directamente para casa.
Morava numa moradia germinada em Oeiras, com Luísa a mulher, que abandonara a sua actividade profissional como designer, para se dedicar aos dois filhos do casal. Uma menina, Ana com quatro anos e o André, que iria fazer dois anos pelo natal.
Os vizinhos eram os sogros, não só davam apoio ao cuidarem dos netos como estavam sempre presentes enquanto ele viajava.
Por sua vez os Pais mantinham a casa de Cascais. Era naquele ambiente entre pessoas que se conheciam desde sempre que a Mãe se sentia bem. Contudo o Pai aproveitava todo o tempo livre para se deslocar para a quinta do douro acompanhando o enólogo na análise e controlo da qualidade do vinho por engarrafar.  
A irmã, o membro mais novo do grupo de amigos que se tinham perdido depois das férias de fim de ano lectivo, agora com vinte e quatro anos de idade, vivia em Londres onde frequentara uma escola de música e de dança.
Esporádicamente visitava a família, mas sempre por pouco tempo. Estava sempre na expectativa de receber um convite para integrar um espectáculo musical. Fizera tantos castings que, reconhecendo haver muita concorrência, já conseguira alguns trabalhos, pequenas participações mas que ainda assim lhe deram confiança e prazer.
Simão que sempre se sentira como o protector da irmã, fazia pressão para que ela regressasse, dizendo-lhe precisar de ajuda. Mas Mariana recusou sempre e cada vez mais ia rareando as suas visitas.
Aproveitava para ver e falar com a família e as crianças utilizando os meios informáticos, o computador ou o telemóvel última geração. Eram sempre conversas curtas e coincidência ou talvez não, o contacto era durante o dia, altura em que Simão estava no escritório.
Simão sentia saudades da irmã mas as suas viagens de negócio raramente passavam por Londres. Recordava que, apenas por uma vez utilizara o aeroporto de Gatwick para uma viajem ao Dubai, mas só conseguira ver Mariana por breves instantes.
Simão iria passar a noite em Londres, o voo para o golfo seria pela manhã e por isso esperava jantar com a irmã. Não deu certo, Mariana tinha uma pequena participação num musical em cena, que lhe ocupava quase todo o dia.
Ficou triste, estivera alguns anos sem ver a irmã e como ela mudara. A rapariga que o acompanhara nas festas, a companheira e confidente, tornara-se numa mulher linda mas, parecia-lhe um pouco misteriosa, como se quisesse guardar algum segredo. Algum namorado que ainda não quis apresentar à família. Espero que ela saiba o que faz.  
Á noite, contou a Luísa o seu encontro em Paris com uma das amigas da sua juventude. Fora uma surpresa encontrar um dos membros do grupo que se perdera. Dez anos depois, podes imaginar?
Luísa ouviu com atenção e confessou que nunca percebera porque ele não procurara os companheiros.
-Agora já tens o contacto com a Carla que vive em Paris a tua irmã está em Londres e quem está naquela cidade está mais perto do se passa no mundo, podem ajudar-te na tua procura. E não foi em Lisboa que vocês estudaram, fizeram amizade e se conheceram? Então perde um pouco do teu tempo e tenta também. Se encontrarem mais um, esse pode saber de outro e podes juntar de novo o bando.
- Mas atenção alguma coisa pode ter corrido mal a alguém. Tens que te convencer disso. Mas era giro que passados mais de dez anos se encontrassem e revivessem as vossas aventuras. Mas se o fizerem devem ser só vocês, os sete da vida airada, nem mulheres, nem maridos nem filhos, apenas o grupo que se afastou quando abandonou a adolescência e despertou para a vida.
- Tens razão, diz Simão, logo que tiver um pouco mais de disponibilidade vou tentar encontrar a agenda com os contactos que eu tinha.
Era sábado, ficou na cama até mais tarde. Luísa entrou no quarto, os miúdos ficaram a espreitar na porta e acordou Simão entregando o telefone:
- O teu Pai quer falar contigo, atendes?
 - Sim vou atender.
O Pai estava excitado, dizia-lhe ter uma novidade para dar. Simão aguardou com alguma impaciência que o Pai, depois de falar da vinha e do vinho, contasse a novidade.
- Simão, ainda te lembras dum antigo colega e amigo daquele grupo maluco que andava sempre junto?
- Pai estás a falar de quem, do Frederico?
- Não, o nome é Carlos Alberto passou pelo quinta porque, nem imaginas como ele te localizou. No jantar de despedida quando acabou o curso no MIT nos EUA, foi-lhe servido o nosso vinho e ele lembrou-se da Casa da Ribeira e de ti. E veio até à quinta à tua procura. Lembras-te dele?
-Sim claro era o maluco da matemática e teve alguns momentos menos felizes. Mas no fundo era bom rapaz, fazia-se de forte mas era só aparência.
- Ele deixou o contacto eu dei-lhe o teu telemóvel para vocês se encontrarem. O rapaz vai trabalhar no CERN em Genebra e olha que aquele centro é só para físicos de topo.
Simão desligou, respirou fundo perante as surpresas que a vida reserva. Quem havia de dizer, o vinho fora o catalisador do reencontro de dois amigos de que não sabia há mais de dez anos.
 Primeiro encontrara a Carla, agora aparecia o Carlos. Assim somos já quatro, tenho que completar o grupo das sete maravilhas. Falta encontrar o Luís, a Leonor e o Frederico, que reconhecia, foram aqueles de quem se sentira sempre mais próximo, mas também seria daquele grupo o risco de encontrar alguma surpresa.
 Oxalá me engane.



AMADEO DE SOUZA-CARDOSO
Tela sem título
Museu Arte Moderna
Fundação Calouste Gulbenkian
Lisboa/Portugal



quinta-feira, 14 de junho de 2012

SIMÃO & COMPANHIA


Cruzeiro Seixas
Manufactura de Tapeçarias de Portalegre
Portalegre/Portugal


10 – DEZ ANOS DEPOIS – 3º. CAPÍTULO

O grupo que se juntara na despedida da adolescência, naqueles dias passados no campo, longe das luzes da cidade e dos seus desafios, não soubera gerir as sensibilidades de cada um, as diferenças, até ciúme e acabaram por destruir a unidade.
Não teria que ser assim, mas os sinais, os silêncios, o fastio eram o prenúncio do que iria acontecer. Cada um seguiria o caminho, encontraria novos amigos, novos interesses e o grupo ficaria no esquecimento.
E Carla relembrava aqueles dias passados na casa da ribeira. Ela tinha avisado do risco de desagregação, mas o conflito de personalidades, tinha feito o resto. O grupo acabou quando cumpriu sem alegria a semana das festas de despedida. Festa, lembrava ela, festa houvera pouca. O grupo que saíra de Lisboa chegou à casa de férias, na encosta duma serra sobranceira ao rio Douro, bem no coração de Trás-os-Montes, perdera o sentido da camaradagem, da amizade e nunca mais o recuperou.
A vida é pródiga em desencontros, mas as razões que tinham conduzido ao desfecho, eram tão fúteis que nem dava para compreender. Afinal, talvez não fossemos tão amigos como pensávamos.
Assim, cada um terá seguido o seu caminho e sei lá por onde andarão?
O Frederico, rapaz bonito, triste, inteligente e desconcertante, fora a argamassa que criara o grupo e também a razão do seu fim. Fora objecto de paixões juvenis mas nunca se deixara prender. Era um pássaro livre e vivia a vida como um sonho; Luís companheiro que sabia ouvir, valente e disponível; Leonor, olhos verdes de feiticeira, que pareciam brilhar com mais luz sempre que olhava para Frederico; Carlos, raciocínio frio de matemático ou apenas um jovem com medo da vida e amargurado por um amor não correspondido; Simão, mais adulto e com um espírito jovial para quem os amigos eram amigos de verdade e nunca nele se pressentira vontade e feitio para liderar e a seu lado, a irmã, a ingénua Mariana, um espírito romântico e sonhador, típico da idade.
E eu, que sempre me escondi detrás dos óculos e nunca me expus! Todavia, reconheço, também eu vivi uma paixão solitária. E como todas as raparigas, pelo Frederico!
Lembro-me de todos, já passaram dez anos, mas ao recordar o grupo da Casa da Ribeira uma imagem prevalece. Dizem que o primeiro amor, mesmo da juventude, nunca esquece. E a imagem mais forte é a desse primeiro amor, Frederico. 
Enquanto revia o grupo e na sua mente passavam, fugazes, as figuras dos companheiros, continuava sentada na secretária do escritório da sua casa nos arredores de Paris, tenho na frente o ecrã vazio do computador. Não escrevera nada desde que a sua memória a arrastara para o passado, dez anos atrás.
 Trabalhava como tradutora de Francês e Alemão, tinha como clientes principais organizações internacionais de índole diversa, desde análises económicas, trabalhos científicos na área da investigação, etc. Era um trabalho que lhe dava prazer, que realizava em casa, sem a obrigatoriedade dos horários. Geria o seu tempo, gozando a quietude de uma casa que decorara a seu gosto.
Era casada e feliz. Conhecera Francisco quando completava os seus conhecimentos da língua francesa, e acompanhou-o quando ele, economista por formação, foi admitido como técnico da OCDE.
Francisco, alguns anos mais velho, saíra sem drama de um processo de divórcio. Confessara que o seu casamento fora um erro, de que ele fora responsável.
Laura, a ex-mulher, tinha projectos de vida não compatíveis com a sua vida profissional e ele demorara a reconhecer uma evidência. Laura, um rosto tranquilo que o fascinara era uma mulher muito ligada ao ambiente familiar em que fora criada.
Era talvez ingénua e casou com ele, contra a vontade da família, apenas para esconder um segredo. Ficara grávida e assumir esse facto fora do casamento religioso seria um tremendo golpe nas convicções da família.
O casamento foi para ela não um acto de amor mas um sacrifício a que se dispusera. Nasceram gémeos e durante oito anos Francisco e Laura foram escondendo o seu progressivo afastamento. Mas quando Francisco recebeu a oferta para trabalhar na OCDE e o seu primeiro posto seria num País da África subsariana, foi o fim. Separaram-se, continuaram ligados pelos filhos e tinham uma relação civilizada, como ele gostava de dizer.
Carla gostava de passar férias em Portugal. Tinha a casa dos Pais em Lisboa, tinha irmãos e Francisco aproveitava para desfrutar durante quinze dias do prazer da companhia dos filhos. Carla também gostava de estar com os miúdos, agora já com onze anos de idade.
Estava a rebobinar parte da sua vida, olhava para o ecrã em branco do computador e nem se apercebeu que Francisco já chegara.
Era sexta-feira, habitualmente gostavam de sair para jantar ou tomar um copo com amigos, mas naquele dia deixara-se levar pelas recordações e não estava preparada.
 Deu um beijo rápido no companheiro, estendeu-lhe um exemplar do jornal que havia comprado e prometeu que seria só o tempo de mudar de roupa, não iria demorar.
Mas apesar da sua boa vontade sempre demorou mais de meia hora. Quando regressou à sala Francisco dormitava recostado no sofá.
O companheiro acordou e olhando para o relógio, estavam atrasados e era preciso sair rápido, vamos apanhar muito trânsito.
Enquanto tirava o carro da garagem, Francisco pediu à Carla para dizer à Júlia ou ao Bernardo que iriam chegar um pouco atrasados, mas para lhe reservarem mesa.
Francisco guiava algo nervoso, fugindo ao trânsito mas não dissera o destino. Finalmente encontraram uma avenida mais tranquila e Francisco achou estranho o silêncio de Carla, perguntando o porquê?
- Carla encolheu os ombros, recordações, dei por mim a recordar tempos antigos.
- Para curar as saudades nada melhor que jantar num restaurante Português. O Bernardo já conhecia e sugeriu o Quinta do Galo. É um pouco fora de mão mas já não demorara, acrescentou Francisco.
Chegaram com vinte minutos de atraso, tinham o lugar reservado, sentaram-se e Carla olhando para o vizinho do lado, sentiu que conhecia aquele rosto. Um rosto alegre, o cabelo a ficar grisalho nas têmporas, mas o riso confirmou a sua suspeita.
Tocou-lhe no braço e sorriu, o companheiro do lado levantou-se e com tanta alegria que entornou o vinho por sobre a mesa.
- Carla como é que tu vieste aqui parar?
- Simão, sim era ele o vizinho que o destino colocara a seu lado. Ainda hoje me lembrei do nosso grupo e as férias atribuladas na tua casa da ribeira.
- É a vida reserva-nos muitas surpresas. Fui eu, disse Simão, que desafiei o Bernardo para juntar um grupo de amigos para o jantar neste restaurante. É que vim apresentar o melhor vinho do mundo. O vinho tinto do Douro, Casa da Ribeira e repara no rótulo, engarrafado por Simão & Companhia.
E um abraço retardado de dez longos anos selou aquele encontro. O primeiro do grupo.
Temos muito que falar, diz Carla, gostava tanto de encontrar as ovelhas tresmalhadas!
Casa de Celestina
Pintura de
PAULA REGO

terça-feira, 12 de junho de 2012

SIMÃO & COMPANHIA


Eduardo Nery
Astros
Manufactura de Tapeçarias de Portalegre
Portalegre/Portugal


9 – DEZ ANOS DEPOIS - 2º. CAPÍTULO

Carlos perdera o contacto com o grupo de amigos, logo que deixara Lisboa e fora estudar para a cidade do Porto.
Fora-lhe difícil, ele aparentava ser distante mas era a sua própria maneira de ser. Não se dava porque tinha medo.
Essa inibição, custara-lhe o amor e a paixão que Leonor lhe inspirara desde os bancos da escola. Nunca confessou mas se os olhares fossem um livro muito teriam para contar. Carlos sonhava com a colega, admirava o seu jeito de olhar e de andar, seduzia-o o sorriso cristalino. Imaginava as palavras ternas que lhe quereria murmurar, as carícias, o contacto físico e até o cheiro.
A sua fixação naquela rapariga que conhecera dos doze e perdera aos dezassete anos, tornara a sua vida futura num deserto. Tinha vinte e cinco anos quando seguiu para os Estados Unidos a frequentar o MIT mas mesmo distante a imagem de Leonor continuava a povoar-lhe o cérebro.
Só o estudo o distraía. Tinha dificuldade em fazer amizades, naquela Escola onde um amigo podia ser um concorrente. Eram todos jovens e ambiciosos, lutavam pelo futuro que seria sempre, mais estudo, muita investigação, muitas noites sem dormir, alguns fracassos profissionais, êxitos também, mas acima de tudo, os anos que iria frequentar como preparação do doutoramento em física, seriam anos de solidão.
Conseguia dispor alguns minutos para utilizando as possibilidades da internet, falar com o Pai e a Mãe, ocultando algum desânimo. O irmão mais velho, que fizera o mesmo caminho, trabalhava agora no CERN em Genebra e também era um homem só. E quando conversavam, o irmão bem o avisava para não se deixar dominar exclusivamente pelo estudo e pela investigação. Não te esqueças, há mais vida para lá das paredes e salas do Instituto
Olha para o meu exemplo. Sou profissionalmente realizado mas não tenho vida própria.
Termina o curso e apresenta a tua candidatura se quiseres integrar a equipa do CERN. Não será fácil entrar mas a tua presença talvez me ajude a romper os hábitos de muitos anos e a respirar um pouco de liberdade.
Carlos esteve três anos no MIT, saiu com vinte e oito anos de idade.
A sua vida pessoal fora sempre um fracasso. Apaixonara-se e não fora compreendido ou aceite. Os amigos eram poucos e as colegas achavam que ele era óptimo para ouvir as histórias das suas paixões mas nunca para protagonizar uma delas.
Todavia não era um rapaz feio, mas era muto fechado. Chegara aquela idade e só não era virgem porque recorria a acompanhantes profissionais. Que tristeza de vida.
Na despedida foi convidado para jantar em casa de um professor, com quem estabelecera alguma proximidade. Aceitou.
O Professor era natural do Quebeque e tinha uma surpresa reservada. Era casado com uma Portuguesa, sua antiga aluna, natural de norte de Portugal.
Tinham dois filhos, o mais velho François, dez anos de idade ficara com o nome do avô paterno e uma menina, Beatriz o nome da Avó materna.
Carlos tímido como sempre, demorou a integrar-se no seio de uma família feliz.
Foi a dona da casa, Lúcia de seu nome, que lhe mostrou a alegria por encontrar um compatriota com quem podia relembrar os seus tempos de estudante na Universidade do Porto.
 Universidade do Porto repetiu Carlos, foi aí que me formei o que quer dizer que fomos, colegas?
De facto tinham uma diferença de quatro anos, Lúcia estaria a acabar o seu curso enquanto Carlos era um caloiro, foi a conclusão a que chegaram.
Mas aquele relembrar da velha cidade do Porto, do rio e das suas gentes ajudaram a criar um ambiente informal e descontraído. Carlos sentiu o calor da amizade.
Ao jantar, o dono da casa sugeriu beberem um vinho tinto e apresentou uma garrafa de vinho português, dizendo:
- Este vinho foi-nos oferecido durante as férias, em que percorremos o magnífico Rio Douro. É o meu preferido, tem o corpo com sol, o odor das flores e a leveza dos socalcos debruçados sobre o rio. Chama-se Casa da Ribeira, não sei se conheces?
- Casa da Ribeira, mas esse era o nome da quinta onde eu passei as férias de fim do curso liceal. Éramos sete amigos e nunca mais nos encontrámos. Pegou na garrafa, o rótulo era a fotografia da casa que reconhecia e o produtor assinava Simão & Companhia.
Foi como uma luz que de repente lhe iluminou o passado. E naquele dia, no estado de Massachusetts, na costa leste dos Estados Unidos, Carlos recordou o grupo de amigos. Por onde andariam?
Foi um momento de nostalgia que breve passou. Afinal ele iria passar pelo Porto e talvez conseguisse encontrar os amigos. Ficara com essa esperança.
Fernando Pessoa
Pintura de Júlio Pomar
Biblioteca Municipal da Marinha Grande
Portugal

sexta-feira, 8 de junho de 2012

SIMÃO & COMPANHIA


António Charrua
Nuvem Rosa
Manufactura de Tapeçarias de Portalegre
Portalegre/Portugal


8 – DEZ ANOS DEPOIS

Leonor chegou a casa, um pequeno apartamento que havia escolhido na cidade de Frederiksberg, na Dinamarca. Regressava no metro depois de uma noite de serviço no Hospital. Era uma viagem relativamente rápida e valia a pena, porque acabara por escolher viver numa área tranquila.
Aprendera a falar alemão e era fluente na língua inglesa. No Hospital não tinha sentido dificuldades, os colegas entendiam o alemão e ela foi, pouco a pouco, aprendendo a comunicar em dinamarquês.
Estudara Medicina em Lisboa, fez o internato e optou na especialização pela área das doenças oncológicas. Foram muitas horas de estudo, muita investigação e sobretudo aprender a gerir a sua sensibilidade e a sua resistência, para tratar com um sorriso uma doença portadora de uma carga psicológica muito grande.
Quis ir mais além no conhecimento e recebeu o convite para um estágio no Hospital Universitário de Copenhague. Hesitou mas os colegas incentivaram-na a aceitar. Era um Hospital de referência e seria uma experiência a não perder. Além do mais, diziam, ela falava fluentemente o inglês e também o alemão e não teria grandes dificuldades de adaptação.
Acabou por aceitar. O período de estágio era de dois anos, findos os quais ou regressaria a Portugal ou teria a possibilidade de se juntar ao corpo clínico daquele hospital e continuar a investigar a área que mais a fascinava, o sistema imunitário e os transplantes.
Vivia só, e aos vinte e nove anos de idade, não tinha vida própria. Os colegas, as respectivas famílias, foram sempre de uma grande simpatia. Mas era ela que evitava os convites para jantar ou para conviver. Sempre fora muito reservada e sentindo-se uma estranha ainda mais se fechara.
Regressar no fim do estágio? Chegou a pensar nessa alternativa, mas não decidira nada, perdera os Pais e a família ficara reduzida a primos e primas com quem nunca tivera grande convivência.
Naquela manhã estava cansada fisicamente mas a mente bem desperta e interrogava-se:
- É verdade que alcancei o meu objectivo, sou profissionalmente realizada mas terá valido a pena? Qual foi o preço que paguei? O que é que eu vivi?
Amores, sim de curta duração e que nunca passaram de aventuras passageiras. Nem me lembro e não foram assim tantos.
Sentiu um mal estar.
Decidiu que tomar um banho de imersão, com a água bem quente, naquela manhã de fim de inverno, frio e gelado, lhe faria bem.
 Enquanto a água quente corria, despediu-se e sem saber porquê olhou-se no espelho. Reparou que a sua figura não sofrera grandes alterações. Sempre fora magra, seios pequenos, cintura fina, pernas altas, corpo direito e tudo isso mantinha. Não sentia o peso da proximidade dos trinta anos.
Mas, aproximou-se mais, limpou o vapor que embaciara o espelho e concentrou-se no rosto. Bem perto, e lá estavam as rugas de expressão mas não só, uma boca de lábios cheios que os homens mais atrevidos lhe diziam, mereciam ser beijados e finalmente os olhos baços e tristes.
Nem se lembrava de última vez que beijara um homem com paixão, admitia que talvez nunca o tivesse feito. Tivera relações amorosas efémeras e sem que delas guardasse alguma recordação.
Meteu-se na banheira e uma lágrima correu pela face de uma mulher só. Fechou os olhos e, de repente, lembrou-se do amor de juventude.
Frederico fora aos dezassete anos o primeiro amor da sua vida. E fora um amor intensamente vivido. Fora o primeiro homem da sua vida, o único a quem se entregara de corpo e alma. Partilharam a vida durante quatro anos. Ela estava nos primeiros anos da Faculdade, Frederico estudava Direito. Ela era decidida, ele indeciso, ela via o caminho que queria seguir, ele andava perdido sem direcção.
Mas quando juntos, eram amizade, depois o amor e por fim uma paixão avassaladora.
 Que saudades do Frederico. Por onde andaria?
Recordava o último encontro. Frederico abandonara o curso e a casa de família. Não podia contar com mais ninguém, ela era a sua luz e o seu refúgio.
- Frederico procurou por mim e eu falhei. Estava cansada e não apercebi que ele precisava de ajuda. Frederico estava mergulhado na escuridão e desiludido partiu para não mais o ver.
A água estava a ficar fria. Saltou da banheira embrulhou-se na toalha e esteve na janela a espreitar a rua. Olhava as pessoas que passavam apressadas, na sua imaginação parecia-lhe ver a figura alta e magra, cabelo claro e olhos verdes, parecia ver Frederico. Seguia-lhe os passos até os perder de vista. E ficou chorando, relebrando o passado.
Logo que Frederico a deixou, naquela noite triste, ela acreditou que o acabara de o perder. O telemóvel estava desligado, recorreu aos amigos, ao grupo que Frederico juntara na casa da ribeira no verão do final de curso secundário. Só encontrou o endereço do Luís, o amigo mais próximo do Frederico e foi pedir ajuda.
Ainda agora lhe doía a expressão que vira na face do amigo. Não era capaz de a descrever e ficou com a sensação que ele ou não sabia, ou  o mais provável, não quisera dar-lhe notícias.
Ficou só, esperando um contacto, uma mensagem um e-mail, mas nada recebeu. Passaram cinco anos, ainda acreditava no futuro mas tanta coisa se passara no mundo mas na sua vida nada mudara. Estava só e à espera.
Uma dor profunda, uma recordação que não esmorecia mas que cada vez mais a via como uma utopia.
Será isto a saudade? Será este o meu fado, perguntou-se?

José Malhoa
Fado
Museu José Malhoa
Caldas da Rainha/Portugal

terça-feira, 5 de junho de 2012

SIMÃO & COMPANHIA




Costa Pinheiro
O POETA
Manufactura de Tapeçarias de Portalegre
Portalegre/Portugal




7 – DESAFIOS

Com movimentos algo nervosos, por caminhos de terra batida, tendo no horizonte a casa da ribeira, Simão conduzia a carrinha. Não queria perder o rumo e lembrava que numa curva acentuada iria encontrar um desvio para acesso à estrada principal, a estrada que o conduziria a Alijó.
Respirou fundo quando viu que estava no percurso certo. A casa ficava numa encosta alguns metros acima da estrada e distância para vila não seria superior a dez ou doze quilómetros.
Encontrou o acesso onde o Pai assinalara numa tabuleta Casa da Ribeira, estacionou, respirou fundo e virando-se para os amigos, exclamou, chegámos.
Os amigos começaram a descer da carrinha, deram uns passos para desentorpecer as pernas e retiraram as bagagens enquanto Simão abria a porta, ligava o quadro eléctrico e a torneira de água.
- Vá, entrem e vamos distribuir o alojamento e as tarefas individuais.
- A casa tem a sala comum, esta onde nos encontramos, tem mais um quarto anexo, dá para duas pessoas e quarto de banho; No primeiro andar tem três quartos de casal e mais uma casa de banho. A porta que está ali ao fundo da sala, perto da lareira dá para uma cave que funciona mais como adega.
Sejam bem-vindos a esta casa, que me trás tantas recordações. Estou convencido que irão gostar dos dias que aqui iremos passar. Mas confesso, olhando para a vossa cara vejo indiferença, fastio e desilusão.
 Lamento que a ideia do Frederico, que vocês aceitaram e a que me liguei com entusiasmo, propondo ceder uma casa de férias da família, este casarão que parece não vos ter entusiasmado, tenha sido uma decisão irreflectida e pouco pensada. Mas como eu já vos disse esta manhã, regressar ao ponto de partida não me custará nada. Basta dizerem
Agora dou-vos tempo para reflectirem e tomarem uma decisão. Saliento duas ou três coisas que me parecem importantes:
- A casa que vos acolhe tem todas as condições para uma estadia agradável, mas tem um senão. Não haverá empregadas para fazer a cama, para fazer comida e para as limpezas. Nós somos sete, podemos cumprir essas tarefas, se decidirem ficar, mas só em trabalho de equipa.
Eu já escolhi o meu alojamento, é o quarto aqui em baixo, pois era o meu quarto em vida dos meus Avós. Esse não será para partilhar. Ficarei nele, revivendo as minhas recordações.
Agora pensem e digam qualquer coisa, nem que seja para eu me calar.
No grupo que partira unido, bem disposto, notavam-se agora alguns sinais de ruptura.
Olhava uns para os outros mas ninguém assumia que as palavras pouco felizes do dono da casa haviam causado surpresa e desconforto.
E foi uma rapariga a quebrar o silêncio.
 Leonor:
- Parti da Lisboa com a perspectiva de uns dias de férias diferentes. Iríamos estar juntos, partilhando as nossas preocupações, os nossos anseios até as nossas certezas. É isso que tornariam mais fortes os laços de amizade, logo agora que deixaremos a idade da inocência, quando tudo era simples, e atingimos o tempo dos desafios, das desilusões, da fraqueza e, espero para todos ,o sucesso no caminho que escolherem percorrer.
Andámos perdidos mas chegamos a esta casa de portas abertas, onde podemos respirar o ar da montanha e beber a água fresca dos riachos e logo no primeiro dia paramos na porta com dúvidas sobre ficar ou partir.
Confesso que não percebo e digo-vos que esta insegurança me assusta. Já cheios de dúvidas no primeiro dia do resto das vossas vidas? Assim ,como é que vai ser o futuro?
Virando-se para Frederico, foi mais firme:
- Frederico, tu que sempre fosses o líder deste grupo, sem protagonismo é certo, deixando para outros essa função; Tu em que eu me habituei a ver o amigo com que podia contar, também hesitas?
Podia perceber as dúvidas se colocadas por outra pessoa mas de ti, esperava muito mais. E isso dói-me, acredita, estou a ser sincera.
Eu decidi ficar, farei o trabalho que for necessário, sem resmungos ou queixumes. Não tenho por hábito desistir e também, desta vez, não o farei!
Carlos Alberto que se havia afastado da polémica, como sempre fizera, alvitrou:
- Pode ser tarde, mas porque é que em vez de estarmos a discutir o assunto não o resolvemos de uma forma democrática. Proponho que se decida por voto secreto.
- Tinha que ser, nunca te ouvi dar uma opinião sobre nada, mas também sei que qualquer que seja a decisão dos presentes, tu estarás sempre hesitante entre o sim e o não, diz Luís manifestamente irritado.
- Eu sinto que o Simão ficou triste porque eu e o Frederico bebemos de mais a noite passada e ainda não recuperamos duma noite difícil. Mas a bebida foi o catalisador que soltou as nossas emoções. Hoje eu e o Frederico somos mais amigos, não temos segredos e esperava que todos pudessem dizer o mesmo. Simão, eu fico, por favor fica também e esquece a ideia descabida da votação. Afinal somos ou não capazes de enfrentar o nosso destino ou iremos sempre precisar que alguém decida por nós?
Mariana triste olhava para o irmão, fez-lhe uma carícia dizendo que também ela gostaria de ficar.
Carla, nunca ninguém a tinha ouvido comentar situações tão fúteis, era talvez mais fria e mais adulta, foi breve mas utilizou palavras duras:
- Afinal, melhor teria sido ir apanhar umas bebedeiras, fumar os charros, cometer toda a espécie de disparates e fingir que nos divertimos à brava. Porque é que não fomos para Ibiza ou para Lloret de Mar? Qualquer desses lugares, no meio de uma turba de jovens perdidos, não teria de enfrentar um dilema como aquele que aqui foi suscitado.
E eu que julgava que nas éramos amigos, adultos, com dúvidas, mas quem as não tem?
Afinal comportamo-nos com um grupo de adolescentes iguais a tantos outros.
E então vamos a votos se é assim que querem e não se esqueçam, oitos dias passam a correr e quando formos embora o grupo ficará ferido, hoje nesta casa, neste momento e nunca mais será o mesmo.
O silêncio alastrou pela casa como uma cortina de fumo. De repente Frederico saiu da sala, andou alguns metros pela rua e sentou-se num banco do pequeno jardim. Estava ausente, olhos fixos sem brilho e com um sabor amargo nos lábios. Nada dissera e nada lhe ocorria para dizer.
Leonor sentou-se ao lado e num gesto de ternura afagou a mão do companheiro.
- Frederico ao menos tu sabes que eu gosto de ti. Sempre gostei e gostarei. Acalento a esperança que o nosso caminho se cruze. Não te quero perder, tu és meu.
Vem para dentro, és o farol dos teus amigos perdidos numa pequena tormenta sem importância. Assume o que sempre foi o teu lugar. Todos esperam isso de ti.