segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

IN AMERICA





O COMEÇO DO FIM

Antes de abrir a caixa sentiu que um relâmpago lhe iluminava a memória. Sim, admitia saber agora quem era, reconhecer o seu passado. Era ainda algo confuso, nebuloso, vagueando entre amores e traições. Estava cansado, adivinhava que a sua vida não deveria ter sido fácil, tinha cada vez mais a consciência de que escolhera o  caminho  mais arriscado, e pagara por isso. As cicatrizes no corpo e as marcas na alma eram a prova de que a sua vida não fora pacífica.

Cerrou os olhos, pareceu-lhe ouvir gemidos e gritos de terror. Alguém pedira ajuda e no íntimo desejava ter sido o herói salvador. Mas talvez não tivesse sido assim, pelo menos algumas vezes sentia que o seu papel fora mais de carrasco. Isso era de arrepiar.

Precisava abrir a caixa e enfrentar os demónios ou as recordações que ela guardaria.
Admitiu, por momentos, esquecer a caixa com os segredos ali guardados. Sim pensou, seria como um renascer sem comprometimentos, amizades, amor e ódios, olhar o futuro começando do zero. No fundo sentia que nada o ligava ao passado. Família, amigos, amores, tudo fora um equívoco, nada restava.

Hesitou, mas como sempre fizera, deixou-se encantar pelo canto da sereia que o desafiava a continuar, e abriu a caixa, convicto que seria capaz de enfrentar os erros, as mentiras em que a sua vida fora pródiga. A aventura, como todas, teria um fim. Que estava disposto a enfrentar com o último olhar.

Foi com a mão firme que abriu a caixa. Pó, muito pó, pedaços de papel escritos numa caligrafia que, de repente, reconheceu como sua. Eram apontamentos escritos sem critério e sem regras, aliás como se lembrava, costumava escrever. Só ele seria capaz de decifrar os textos que traduziriam o caminho percorrido. Algumas páginas haviam sido arrancadas do caderno e estavam perdidas no meio do pó. Mas encontrou dinheiro, notas de cem dólares americanos bem distribuídas por maços, ligados por uma cinta dum Banco. Eram novas e folheando-as calculou que trouxera com ele uma pequena fortuna. Aquele dinheiro fez-lhe um calafrio. Seria a paga de algum serviço que prestara ou o sinal para um crime encomendado e que teria de consumar, ali, in América.
 
 

domingo, 15 de dezembro de 2013

IN AMERICA


 

SINAIS

A luz que lentamente inundara o espaço onde se encontrava, dera-lhe esperança para encontrar o caminho.

Foi a mudança que fez com o que tivesse recuperado forças ao mesmo tempo que lhe desanuviava os temores de uma noite de pesadelo.

Estava agora mais desperto mas persistia a dúvida principal. Não sabia quem era e porque estava ali.

Levantou-se e com um andar ainda pouco seguro caminhou para uma porta envidraçada, escondida num canto do que, afinal, reconhecia como um pequeno e pobre quarto de hotel. Era a entrada para uma simples mas limpa, casa de banho. Entrou e a primeira imagem que viu, foi a refletida no espelho pendurado por cima do lavatório. Ficou de olhos parados e mais uma vez o único sinal de vida foi-lhe dado por uma lágrima que lhe escorria pela face, coberta por uma espessa barba, grisalha e descuidada. E viu o rosto magro e macerado por tanto sofrimento.

Era o retrato dum desconhecido, que lhe lembrava um sem-abrigo abandonado pela sociedade. Aquele vagabundo sujo e dorido, não podia ser o que parecia. Não, ele sentia que qualquer coisa estava errada, que não se enquadrava naquele filme, nem nas difusas memórias que ainda sonhava ter.

Desviou o olhar, fixou-se no recanto envidraçado do chuveiro. Abriu a torneira, o som da água a correr deu-lhe alento. Era uma música de que já nem se lembrava e nem hesitou, deu um passo em frente e deixou que a água lhe lavasse o corpo e a alma.

Era água fria, mas sentia-a como um bálsamo que pouco a pouco lhe trazia tranquilidade. Arrancou os trapos com que estava vestido, sentiu o corpo nu e frágil, cheio de cicatrizes. Os pulsos marcados por sinais de prisão e o peito com queimaduras feitas com cigarros.

Sentiu um arrepio, não de medo mas de revolta. Fora mantido preso e torturado, onde e por quem, não sabia, mas perceber a razão seria o objetivo da vida que agora iria recomeçar.

Com mais energia e com uma centelha de raiva, embrulhou-se numa toalha e percorreu o quarto. Num recanto encontrou uma mochila, como a que se recordava de ver nos ombros dos soldados em combate. Era grande, estava cheia. Quem sabe, estaria ali guardado o segredo da sua vida.

Abriu-a e encontrou uma dádiva. Um pequeno estojo com máquina de barbear e lâminas, mais um pente e um estojo de tesouras. Também roupa limpa que retirou e espalhou pela cama. No final foi uma caixa de cartão, amarrotada que lhe despertou a atenção. Segurou-a com força mas, ao mesmo tempo que sentia um frémito de emoção. Estariam ali as respostas às suas dúvidas e tantas eram?
Sentiu medo, hesitou sim, como se fosse abrir a caixa de Pandora.
 

 

 
 

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

IN AMERICA


1)    – O DESPERTAR

A noite fora um pesadelo, um delírio de formas desconhecidas, rostos ameaçadores, olhos que brilhavam como num reino de sombras e que o enlouqueciam.

Tentou abrir os olhos, mas a escuridão era como se fosse um precipício ameaçador. Não sabia onde estava, como ali tinha chegado e pior, pior que tudo, nem sequer sabia quem era.

De olhos teimosamente cerrados, tentava pôr ordem naquela cabeça que ameaçava estalar. O silêncio era absoluto, a sua respiração e nada mais. Tentou mover uma mão, depois um braço, uma perna e parou. As dores eram fortes como se todos os ossos estivessem partidos. Com todas as forças de que foi capaz, enfrentou as dores e gemendo teimou em abrir os olhos. E então um pequeno raio de luz, muito ténue, deu- lhe esperança, deixava adivinhar uma janela.

Esqueceu as dores, o medo do vazio e levantou-se. Cambaleando ensaiou um pequeno passo, depois outro e deixou-se cair de joelhos vencido pela dor. E chorou.

Mas não desistiu, rastejou, procurando a parede e a janela. Demorou uma eternidade, mas conseguiu levantar-se com o apoio da parede lisa e fria. Ficou exausto, o frio era agora uma mistura de tremores e de suores. Mas conseguira ficar de pé.

O raio de luz aumentou de intensidade e foi-lhe mostrando o lugar onde estava. Percebeu a existência de uma cama pequena, ao lado uma mesa com candeeiro e lentamente, com os braços estendidos conseguiu caminhar até à cama onde se deixou cair como um farrapo quase inerte. Foi com mais um tremendo esforço que procurou chegar ao alcance da pequena mesa e num último esforço encontrou o interruptor e acendeu a luz. E ao ver dissipadas as sombras no pequeno espaço, sem saber porquê riu ou chorou, não era importante.

Finalmente podia ver que o pequeno quarto onde travara uma batalha e conseguira vencer.

A luz trazia-lhe a memória de outra vida, de outros momentos. Mas estava perdido e receava o futuro. Melhor seria terminar tudo, dar um grito e partir. A dúvida era uma dor que lhe corroía o peito. Desejara o fim mas o instinto de sobrevivência fora mais forte.

 Agora, sentado na beira da cama olhava em redor, vasculhando todos os recantos, como um polícia à procura das provas de um crime.

Como um Polícia?

Que raio de ideia, ou não?

 

 

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

A GRANDE AVENTURA

Hesitações, desespero, fúria tudo isso sinto cada dia que passa.

- Hesito porque tenho medo de me repetir, de dizer coisa nenhuma, uma consequência óbvia que nasceu do percurso que comecei e tentei seguir, sem estar preparado para a caminhada.
- Desespero, porque a mão me treme e as ideias, que na minha solidão, são a razão dum dia que se repete, não as posso alinhavar no caderno que me acompanha, pois o resultado é uma escrita ilegível. Afinal as ideias não resistem à tremura.
- Fúria, porque a lentidão com que consigo teclar, me faz cometer erros, apagar o que não quero e deixar-me refém dos  humores duma máquina que foge, sempre fugiu, ao meu domínio.

Apesar das dificuldades que cada vez se tornam mais evidentes, preciso de continuar a escrever sob pena de a vida ser, apenas,  uma sequência de dias, sempre iguais.
Se alguém me ler, não dê importância aos meus tropeções. Eu apenas me  tento manter à tona de água, bebendo poesia e aguardando o próximo equinócio.


                                                                EQUINÓCIO

                                Chega-se a este ponto em que se fica a espera
                       Em que apetece um ombro    o pano de um teatro
                       um passeio de noite a sós de bicicleta
                       o riso que ninguém reteve num retrato

                      Folheia-se num bar o horário da Morte
                      Encomenda-se um gin enquanto ela não chega
                      Loucura foi não ter incendiado o bosque
                      Já não sei em que mês se deu aquela cena

                     Chega-se a este ponto         Arrepiar caminho
                     Soletrar no passado a imagem do futuro
                     Abrir uma janela         Acender o cachimbo
                     para deixar no mundo uma herança de fumo

                    Rola mais um trovão       Chega-se a este ponto
                    em que apetece um ombro e nos pedem um sabre
                    Em que a rota do Sol é a roda do sono
                    Chega-se a este ponto em que a gente não sabe

                             (David Mourão-Ferreira)

Ou em alternativa  fazer uma viagem, quem sabe, procurar alguém que, por erro ou esquecimento, se deixou para trás.
Eu chorei, aliás choro com facilidade se a história é de crianças ou de velhos, mais ainda porque o filme  de que vos deixo algumas cenas, é uma bela poesia de amor, contada pelo talento de David Lynch. 
E nos revela um enorme ator, que  nos deixou pouco tempo depois de completar a sua simples viagem.