quinta-feira, 29 de março de 2012

O ÚLTIMO VAMPIRO EM NOVA IORQUE

3 –  UM POEMA

No caminho decidiram parar numa localidade considerada como o paraíso dos arqueólogos. Robert já conhecia os tesouros de Santa Lucía Cotzumalguapa mas aproveitou para mostrar a Ruben, dizendo:
- Vê meu amigo. Estas florestas, estes vales, montanhas, vulcões são o melhor que a tua terra tem para mostrar, lembrando que a civilização dos povos antigos foi mais espiritual e complexa do que os livros nos dizem. As palavras que nos deixaram estão nas estátuas e cada uma tem o seu significado.

É bom para o teu País que os turistas aqui venham mas para isso é preciso que eles se sintam em segurança, o que, como sabes, não é o caso.
Mas vocês, ao mesmo tempo que devem fomentar o turismo, que vos trará riqueza e trabalho, também devem defender o vosso património, a herança dos vossos antepassados. Porque se o não fizerem perderão a vossa identidade e as gerações futuras não vos perdoarão.
Aprende Ruben, a economia que vocês precisam não pode matar a vossa riqueza.
Tu, que vais procurar um futuro melhor para ti e para a tua família, sabes que não será fácil o caminho, não te iludas e nunca deves esquecer as histórias que o teu Pai te contou. Elas são a tua herança, a tua ligação à terra que te viu nascer.
Enquanto falava com o amigo, o arqueólogo examinava cada estátua, cada pedra, mesmo coberta por erva, tomava apontamentos no caderno que sempre trazia, desenhava o lugar e depois numerava os desenhos.
Ruben assistia impressionado. Robert falava com as estátuas que encontrara, que anotava como pertencendo a um templo a um monumento ou um túmulo. Estava ausente e fascinado e isso lia-se nos olhos.

Ruben estranhou a ausência de máquina fotográfica e falou disso. Robert abriu os olhos dizendo:
- Olha meu amigo, tirar fotografias como tiram os turistas, e apontou para um grupo que rodeava uma estátua no meio da selva, enquanto o guia fazia o enquadramento e tirava fotografias, para mim não é importante. Diz-me tu, aquelas pessoas, vão regressar a casa e mostrarão as fotografias aos amigos. Delas irão guardar os amigos, os passeios, mas as maravilhas da natureza e os tesouros deixados pelos antigos, estátuas, pedras, os buracos escavados nas rochas, as árvores milenares, serão apenas paisagem. Não serão sequer fotografias como obra de arte, o que eu compreendia, mas simples recordações de viagens, que o tempo apagará.
E o mistério, o encanto duma civilização desaparecida há muitos séculos, isso só poderás encontrar nos livros especializados e nas histórias contadas de geração em geração. E isso é que faz a história. E continuou:
- Um dia, ainda hei-de escrever um livro contanto a minha peregrinação pelas Américas. Guardarei um exemplar para ti, prometo.
 Por falar em livros, responde Ruben, eu tenho comigo um livro que o meu Pai me deixou como recordação ou herança. Ainda não tive tempo para o ler, mas estou certo que o Senhor o conhecerá!
- Pode ser, mas não me chames de senhor. Somos amigos ou não somos? Vá lá, mostra lá o livro!
Ruben com todo o cuidado desembrulhou o velho livro de Ruben Dário.
O amigo americano olhou para o livro, folheou e leu alguns poemas com ao mesmo entusiasmo de que falara da arqueologia. E disse:
-Ruben o teu Pai deixou-te um livro que é uma obra-prima de um dos maiores escritores da América Latina. Eu já o li, numa versão mais actualizada, pois aquele que tu trazes é bem antigo. Não me admiraria que ele já tivesse sido de um parente mais afastado, pois pareceu-me publicado respeitando a língua original. Mas o autor não é do teu País. É teu vizinho, nasceu na Nicarágua.
Aí está uma coisa que deves aprender. Ler um poema é viver cada palavra, com amor ou com raiva. Repara, eu vou dizer um poema que muitas vezes repito, nas noites em que estou só, olhando a magia das formas.
                                               NOCTURNO         (A Mariano de Cavia)
Los que auscultasteis el corazón de la noche,
los que por el insomnio tenaz habéis oído
el cerrar de una puerta, el resonar de un coche
lejano, un eco vago, un ligero rüido...

En los instantes del silencio misterioso,
cuando surgen de su prisión los olvidados,
en la hora de los muertos, en la hora del reposo,
sabréis leer estos versos de amargor impregnados...

Como en un vaso vierto en ellos mis dolores
de lejanos recuerdos y desgracias funestas,
y las tristes nostalgias de mi alma, ebria de flores,
y el duelo de mi corazón, triste de fiestas.

y el pesar de no ser lo que yo hubiera sido,
la pérdida del reino que estaba para mí,
el pensar que un instante pude no haber nacido,
¡y el sueño que es mi vida desde que yo nací!

Todo esto viene en medio del silencio profundo
en que la noche envuelve la terrena ilusión,
y siento como un eco del corazón del mundo
que penetra y conmueve mi propio corazón.

Ruben Dário

Olha Ruben,  vou mudar o programa. Pensei descer a costa do Atlântico, passar por Salvador, pela Nicarágua, Costa  Rica e depois o Panamá.  Mas nestes Países não espero encontrar grandes motivos de interesse para a minha pesquisa. O melhor, é na Nicarágua, mas tu já o tens. é o livro. Por isso vamos ficar uns dias  por aqui, eu quero visitar mais sítios que programei. Depois venderemos a carrinha e seguiremos a viajem num barco de cruzeiro.

No Panamá vamos tentar encontrar um barco que nos leve a Miami. Teremos que correr alguns riscos, principalmente tu, mas a vida sem riscos também não é vida.          
         

sábado, 24 de março de 2012

O ÚLTIMO VAMPIRO EM NOVA IORQUE


2 - A PARTIDA

Ruben estava ocupado com os preparativos para a viagem. Vivia com a Mãe numa casa muito simples nos arredores da cidade. Camponesa, trabalhara a terra alimentando os três filhos. O marido decidira procurar outra vida, soubera que no México teria oportunidade de trabalhar para um grande fazendeiro. Embarcou no sonho e não voltou.
 A Mãe continuara a regar a terra com o seu suor dela tirar o sustento da família. No meio da pobreza ela quis que Ruben tivesse acesso à escola e lutou para isso. Ele era o único filho varão e seria o seu amparo na velhice e o guia das irmãs mais novas.

Quando Ruben lhe contou a sua disposição de procurar o caminho que os tirasse da pobreza, a Mãe lembrou o marido e disse-lhe:
- Eu sempre acreditei que tu não pertencias a este nosso mundo. Saíste ao teu Pai que pagou com a vida ou nos esqueceu.Se acreditas no teu amigo vai, não te esqueças de nós, escreve quando puderes, eu ficarei a rezar por ti.
Ajudou o filho a preparar um saco com a roupa que tinha, um pão e uma garrafa de água. Depois foi à velha arca de madeira e tirou um livro. Toma meu filho, leva contigo. É a única recordação que o teu Pai nos deixou. Gostava de ler e foi em homenagem ao seu autor que tu recebeste o nome, Ruben. Não te separes dele, vai dar-te sorte.
Ruben abriu o livro cuidadosamente embrulhado em papel grosso. E leu o título  “Contos de Vida y Esperanza”  e o autor Ruben Dário.
Não conhecia, mas sentia que iria gostar do livro e talvez o amigo americano lhe explicasse quem fora o autor, ele não conhecia.

 A Mãe não se quis despedir do filho, pegou na enxada e partiu para o campo. Só lá longe chorou beijando um crucifixo que trazia no peito.
Era sábado, Ruben estava de folga enquanto Mercê, a namorada estava de serviço dia e noite. Melhor assim, Ruben receava não conseguir enfrentar o drama da partida. Pensou melhor e deixou uma carta de despedida.
Escrevera com sentimento, com ternura, com amizade e com amor.
Ela iria sofrer, mas Ruben não lhe pediu para esperar. Nem ele se atrevia a imaginar o seu futuro, pelo que não quis que Mercê se sentisse obrigada a esperar.
Tinham feito amor algumas vezes mas acreditava terem sido prudentes. Não partia com esse peso na consciência. Mercê era uma jovem bonita e não teria dificuldade em esquecer um amor que vinha da infância. Mas na carta deixou algumas lágrimas e um coração partido.
 Robert tinha combinado que sairiam na manhã de domingo. O local de encontro seria um hotel localizado na Avenida das Américas.
Era um lugar bom para iniciar a caminhada e Ruben esperou desde bem cedo. O amigo chegou conduzindo uma pequena camioneta de caixa aberta, parecia em bom estado, onde arrumara a bagagem, dois jogos de pneus e alguns bidões de gasolina.
Estava contente, acenou a Ruben para entrar dizendo, vem amigo vem, a estrada é longa mas o tempo é todo nosso.

Ruben despediu-se com um olhar para a montanha que o vira nascer. ´
-É bonito não é Ruben?
- Vivi parte da minha vida na sombra do vulcão. O meu Pai contava-me histórias das antigas civilizações. Falava em templos escondidos no meio da floresta, onde à noite se viam os antigos deuses fazendo sacrifícios. Contava coisas de arrepiar, como os vampiros que procuravam sangue dos pobres camponeses desprevenidos. Por isso a minha Mãe e as minhas Irmãs traziam ao pescoço crucifixos que as protegiam.

- O senhor acredita nestas histórias, perguntou Ruben?
- Sabes, as florestas, as montanhas e os vulcões da tua terra, encerram muitos segredos que ainda não foram desvendados. Eu acredito que os contos e as histórias que os povos foram contando ao longo dos séculos, terão  tido algum cunho de verdade. Mas há muitas formas de entender e aceitar a verdade.
 Vamos andando,  iremos visitando alguns lugares que a mim me interessam e ficaremos junto ao mar em Puerto Quetzal.


quarta-feira, 21 de março de 2012

O ÚLTIMO VAMPIRO EM NOVA IORQUE



Há muito tempo que pensava escrever uma história sobre este tema. Lembrei-me de uma pessoa, que me é muito querida, e que adora histórias de vampiros.
É para ela que vou tentar inventar uma história de arrepiar. Mas receio não  conseguir. Na verdade estou mais à vontade em temas que tragam alguns sentimentos de amizade, de amor, ainda que algumas histórias tenham também algum conteúdo melodramático, característica que raramente fui capaz de evitar.
Ao fim e ao cabo os vampiros existem, e para mal do mundo em que vivemos, toda a gente sabe onde os encontrar ou finge não saber.
Eles não são cegos, sabem bem sugar o sangue dos pobres e dos oprimidos. Têm-se multiplicado, são gordos e vorazes.
Mas não é desses que eu quero falar.
Eu quero contar uma história que encontrei no fundo das minhas memórias. É sobre um vampiro velho, quiçá, o último da sua espécie.
Esta é a sua história.


1 – Guatemala

Ruben Garcia nasceu na velha cidade de Guatemala, a antiga capital do País com o mesmo nome. A cidade foi berço de civilizações que os colonizadores destruíram. No meio da floresta, ficaram os restos, os túmulos, os segredos e alguns pobres indígenas que escaparam à escravatura.
Foram eles que se recolheram em locais quase inacessíveis mantendo as suas tradições e a sua liberdade.
Os exploradores vasculharam as ruínas de uma cidade próspera, roubando as esmeraldas e outras pedras preciosas. No final do saque ficaram ruínas, ossos, túmulos esventrados e segredos perdidos.
Ruben cresceu na velha cidade que se foi transformando em lugar de peregrinação turística dos turistas que procuravam sinais do seu passado.
A praça principal da velha cidade fora assim transformada num enorme bazar onde se vendiam como arte, artefactos feitos em qualquer fabriqueta, pedras preciosas, bonitas mas sem valor.

Os turistas mais ousados ficavam na cidade  admirando um dos mais aterradoras fenómenos de natureza. A poucos quilómetros da  capital, o fumo que saía das crateras dos vulcões, eram um aviso e um espectáculo para as máquinas de filmar e de fotografar.


                             


Foi no hotel onde trabalhava como porteiro, que Ruben encontrou um americano de quem se fez amigo. Chama-se Paul Roberts, seria homem para cinquenta anos de idade que dizia ser arqueólogo.
Ruben tinha pouco mais de vinte anos, trabalhava no hotel  mas sonhava com o desafio da América rica.
A pobreza se não o envergonhava mas roubava-lhe o futuro. Mercê a namorada, camareira no mesmo hotel, insistia no casamento mas Ruben encontrava sempre um obstáculo. Mas algo tinha que ser feito. Mercê disse-lhe que estava grávida e que a família não iria aceitar a sua situação. Os Pais e o rancho de irmãos eram um perigo e a Ruben só restavam dois caminhos. Ou casava ou fugia.
O americano a quem Ruben contara o seu problema sugeriu que o podia ajudar. Propunha o seguinte:
- Vais adiando um pouco mais a decisão enquanto eu preparo o meu itinerário.
Tenciono viajar por terra deste a tua terra até à cidade do Panamá. Tenho lá amigos que me ajudarão a fazer a viagem de regresso para Miami.
Vou alugar uma viatura e dentro de uma semana partiremos pela estrada que passa por
 Salvador, Nicarágua e Costa Rica. Programei oito dias para a jornada porque há lugares que tenciono visitar. Enquanto estiveres comigo não te deves preocupar. Algumas vezes eu poderei ter de me deslocar, só a uma casa ou lugar. Tu aguardarás sem fazer perguntas, que eu regresse e depois seguiremos viagem.
Pensa na minha proposta. Eu apenas te garanto o percurso até à cidade de Panamá. A partir daí, poderei ajudar mas sem garantias de te fazer entrar nos EUA.
Ruben deixou-se fascinar e em segredo preparou uma maleta e o pouco dinheiro que tinha amealhado e embarcou na aventura que o amigo lhe propusera.

terça-feira, 20 de março de 2012

PRIMAVERA

Quase sem se dar por isso, aí está a Primavera.
É por tradição a estação da alegria, do prazer dos campos verdes e das árvores em flor.
Hoje o céu está azul, lindo, o sol dá-nos o seu calor e a sua luz, mas a alegria anda esquecida.
Ontem, duas crianças, o Jorge e a Helena, irmãos gémeos, regressaram da escola trazendo com todo o cuidado o desenho em cartolina que haviam pintado na escola. Era a prenda para o dia do Pai.
Tinham desenhado um boneco colorido, gordinho, de riso aberto, segurando uma flor. Com a ajuda da Professora, escreveram no desenho,” Para o Pai” e concluíram a dedicatória desenhando dois corações bem juntinhos e uma flor que a Professora juntou. 
Estavam tão orgulhosos, não resistiram a mostrar à Mãe a prenda que tinham desenhado.
Com a inocência dos seus sete anos, nem se aperceberam que ao ver o desenho, a Mãe deixara escapar uma lágrima.
- Mãe achas que o Pai vai gostar da nossa prenda?
- Claro que vai, o Pai ficará orgulhoso por receber a vossa prenda. Mas hoje ele vai chegar mais tarde! Mas vocês vão deixar o desenho no vosso quarto, mesmo em cima da vossa mesita de cabeceira. Assim, quando regressar e vos for dar um beijo de boa noite, ficará feliz com a surpresa que vocês lhe vão guardar. É uma boa ideia, não acham?
O Pai chegou já a noite ia longa. As crianças dormiam e a mulher esperava-o com a esperança de ouvir as palavras mágicas.
Abraçaram-se sem palavras.  O dia do Pai tinha sido mais um dia sem trabalho, sem ganhar o sustento. Afinal a Primavera ainda não chegara. Talvez chegue amanhã, murmurou a mulher.
Pelos nossos filhos, não podes perder a esperança. Vai ao quarto e quando os beijares verás um sorriso feliz nos seus lábios. Estarão a sonhar imaginando a tua alegria com a prenda que com tanto carinho te guardaram.
E amanhã será um dia melhor, quem sabe, trará a primavera e a esperança.

domingo, 18 de março de 2012

DIA DO PAI

Alguém se lembrou de determinar que amanhã, dia 19 de Março, seria comemorado como o dia do Pai.
Não sei se a ideia nasceu na Igreja, ou se foi uma operação de marketing para aumentar as vendas daquelas coisas que, por norma não se compram.
E lá vemos os adultos percorrendo os centros comerciais, acompanhando as crianças na procura de uma oferta para o dia do Pai.
Percebe-se que uma criança sinta orgulho em entregar ao Pai um pequeno embrulho com um cartão bonito que a Mãe o ajudou a escrever. E o Pai ficará feliz.
Todavia eu, lembro com saudade o Pai que já perdi e a quem nunca dei um presente alusivo à efeméride. Nem sei se naquele tempo já havia dia do Pai, penso que se trata de uma invenção relativamente recente. Mas algo lhe dei sempre, porque não custava dinheiro. Dei-lhe amor e razões para se sentir orgulhoso do filho.
Certo dia, corria o ano de 1965, a guerra era o meu lugar, mas vim passar férias a Portugal, aproveitando a recente carreira da TAP mas com aviões a jacto, creio ter sido o famoso Boeing 707.
O meu Pai fez algo que na altura não gostei muito, mas que hoje, tantos anos passados, reconheço o carinho, o orgulho e o amor que o meu Pai sentiu, quando publicou na página pessoal dum jornal da cidade, uma notícia que dizia, qualquer coisa como isto:
“Encontra-se na nossa cidade, em férias da guerra em Angola, o Alferes Miliciano Joaquim Lameira, filho de António Ventura Lameira, guarda-portão da fábrica Robinson”.
Pois foi Pai, tiveste muito orgulho na visita do teu filho, que sabias estar na guerra, mas eu, peço-te perdão, durante a visita nunca andei fardado e tarde compreendi a desilusão que te dei.
Ficaste triste, eu sei, mas para um jovem de pouco mais de vinte anos, esses pequenos grandes gestos sem sempre colhem a atenção que mereciam.
Mas hoje penso em ti e sou eu que sinto orgulho em ter sido teu filho. E estas simples palavras serão a minha prenda do dia do Pai.

quarta-feira, 14 de março de 2012

HISTÓRIAS SINGULARES

O CAÇADOR

Estive algum tempo afastado da escrita. Desta vez não foi por doença, mas doeu-me como tal.
Não devia ter vasculhado os papéis e as fotografias da minha passagem pela guerra colonial. Remexer no passado pode trazer memórias que o tempo havia apagado.
Não foram as fotografias que me impressionaram, foi mais as reflexões, tipo diário, que de uma forma ocasional ia passando ao papel.
A guerra colonial foi uma guerra inútil e condenada à derrota. Os chefes militares nunca ousaram desafiar a doutrina Salazarista, da pátria do Minho a Timor, contra tudo e contra todos, até à última gota de sangue.
Só com teimosia, isolado do mundo, fechado no País de onde nunca saiu, liderando um povo de carneiros podia pensar que umas centenas de soldados mal armados e um velho navio de guerra, seriam suficientes para enfrentar o exército Indiano. E daí o desastre.
Depois assistiu-se à eclosão dos movimentos de libertação, que alastravam por toda a África as nossas colónias nunca poderiam ficar incólumes.
Quando em 1961 se dão os trágicos acontecimentos no norte de Angola, o País nada havia sido aprendido das lições bem recentes.
E foi uma tragédia.
Os generais a quem coube a tarefa de defender as colónias, definiram as linhas de orientação militar, modelo clássico, para combater uma guerra de guerrilha, que só poderia ser enfrentada politicamente.
A Salazar e aos seus seguidores ficará o ónus e a responsabilidade por uma geração destruída, por milhares de mortos e estropiados física e mentalmente, e também o drama vivido pelos colonos, que acreditaram no sonho e acordaram para um pesadelo.
Esta era a síntese que retirei os apontamentos escritos de forma revoltada. Os soldados que foram para a guerra estavam impreparados e fundamentalmente mal comandados por oficiais superiores, saídos do conforto das secretárias ou do comando de unidade territoriais onde, sabiamente, se haviam acoitado.
A história julgará, eu vou encerrar as minhas memórias, rasgando todos os apontamentos escritos durante a guerra e destruindo algumas das fotografias mais dolorosas.
Todavia, decidi terminar estas histórias com mais uma, verdadeiramente singular.

O CAÇADOR DE ELEFANTES


Conheci o mais velho dos velhos de uma numerosa tribo. encostada à floresta densa que anunciava o coração de África, o caminho das montanhas e dos lagos.
A floresta era o reino dos símios de grande porte mas principalmente o reino dos elefantes.
O chefe gostava de contar as suas façanhas de grande caçador de elefantes e de crocodilos e eu, já naquele tempo, gostava de ouvir os mais velhos.
Entre o sábio velho caçador e o militar de pouco mais de vinte anos, nasceu uma amizade que recordo.
O velho chefe gostava de mim, dizia ter visto nos meus olhos o respeito e a justiça.
Por isso quando ele me convidou para uma almoço à beira de uma bela lagoa, nem hesitei. Fui eu, o Administrador do Posto e o meu guarda-costas. Três brancos, rodeados de centenas de africanos.
Não foi um simples almoço, foi muito mais.
Provavelmente entre os presentes estariam guerrilheiros, mas ali, naquele momento eu e o Administrador, não estávamos em guerra mas em paz com a nossa consciência. A amizade do mais velho dava-nos tranquilidade.
Passeámos em ombros sentados em dois palanques transportados pelos homens enquanto as mulheres e as crianças cantavam acenando com folhas de palmeira.
Foi um momento que gostei de relembrar. Afinal mesmo no meio da guerra fora possível encontrar um amigo que me ensinou a respeitar os costumes e tradições.
O velho caçador de elefantes, chefe de uma tribo importante dera-me a sua amizade. Nada pediu em troca. Eu dei-lhe o meu respeito.
Apesar dos perigos da guerra, regressamos todos. Hoje pergunto-me se tal facto não teria sido o sinal da amizade do velho chefe, o caçador de elefantes.


terça-feira, 6 de março de 2012

HISTÓRIAS SINGULARES

MEMÓRIAS PERDIDAS

Por razões que serão entendíveis, não gosto de comentar cenas da guerra colonial, situações que vi e vivi mas que guardei numa gaveta bem lá no fundo, no armazém que é a nossa memória.
Falo de algumas pequenas coisas mas tenho sempre evitado falar do drama, da dor e dos sacrifícios que foram parte naquela guerra.
Todavia e quase sem querer, abri umas caixas esquecidas, onde encontrei fotografias, cartas, relatórios e mais papelada sobre a minha passagem pela guerra.
Numa, encontrei um caderno diário, de folhas amarelecidas pelo tempo e a humidade de tantos anos passados, quase meio século.
Naquele caderno, com o entusiasmo da juventude, começara a escrever cartas que não mandei, textos com relatos de situações, bons e maus momentos, algumas reflexões e até críticas ao amadorismo com que fomos lançados naquela aventura.
Muito do que escrevi, não tem hoje sentido. Não é a História, seria quando muito a minha história pessoal, o meu testemunho.
Dei-me ao trabalho de reconstruir os escritos, mas foi uma tarefa quase inútil. Do caderno amarrotado, percebia pequenas frases, sem articulação nem continuidade.
Do que consegui irei dando nota se algo fizer sentido. Porque afinal, as palavras escritas foram folhas que o vento levou ou, talvez, pensamentos que o tempo apagou.
Hoje, em que enfrentamos desafios talvez mais exigentes, a guerra nas colónias ficou apenas para alguns estudiosos ou resumida a pequenas histórias que os que a viveram ainda tenham memória para contar.



 CARTA A UM AMIGO DESCONHECIDO

            Embarquei há dois dias para Angola a bordo do paquete Vera Cruz.
E é sentado numa mesa deste barco, que transporta mais de três mil jovens, empacotados, abraçados e inquietos, que estou a escrever a primeira carta.
Na realidade, não sei quando terei possibilidade de a enviar, mas, neste momento de despedida, escrever passa por ser uma forma de aliviar a tensão emocional, de um dia muito complicado.
Ao meu lado numa mesa de jogo, vários colegas estão a jogar poker de cartas. Também lá estive, mas com a sorte do costume, depressa fiquei depenado.
A excitação do dia de hoje não me vai deixar descansar e dormir, pelo que enquanto eles jogam e gritam, eu vou alinhavando estas palavras enquanto relembro o rosto dos que embarcaram, muitos onde a tristeza estava mal disfarçada, as lágrimas não contidas pelos abraços e beijos de familiares e depois, o mais doloroso de ver, o acenar dos lenços brancos, sinal de despedida.
Despedida, claro, apesar dos incitamentos, muitos daqueles jovens admitiam não voltar.
E até à saída da barra, lá ficaram aqueles vultos negros e tristes que continuavam a acenar. Naquela distância não se distinguia a família, e para nós já não era importante. Agora éramos irmãos que partiam ligados pela dúvida do regresso.
Á medida que o navio se afastava, uma estranha acalmia substituiu o riso, a bravata, o choro envergonhado. Cada um procurou o seu espaço, o seu beliche e nele se acolheu.
Só os olhos mostravam a inquietude, as palavras apenas serviam para esconder a dúvida ou fazer crescer a esperança. Uma palavra amiga, uma palmada nas costas, um sorriso e uma promessa. Tudo vai correr bem, vais ver, dizia eu a um soldado mais triste.
Ele olhou para mim, deu-me um abraço dizendo que tudo faria para regressar e ver o filho que ficara ainda no ventre da Mãe.
Não tive palavras mas o abraço tão fraterno, fez nascer uma luz nos olhos tristes daquele jovem Pai.
Interroguei-me se a preparação que dei aos soldados que iria comandar teria sido a mais adequada. Procurara sobretudo criar o espírito de solidariedade, repisando vezes sem conta, no final de cada hora de corrida e de cada marcha de dia e de noite, era sempre possível ir mais além, dar tudo, porque assim unidos, todos iriam resistir, porque todos teriam de voltar.
O mar está calmo, e o navio sulca as águas sem sentir grande dificuldade.
Ao longe, a luz da Lua reflecte-se nas águas, criando uma imagem de beleza e tranquilidade.
O barulho da mesa ao lado aumentou. As garrafas que vão despejando propiciam discussões acesas e mesmo alguma violência verbal. O oficial de serviço, um Tenente, teve de intervir e com muita dificuldade conseguiu acalmar os ânimos e o jogo acabou.
Na sua maior parte os oficiais, maioritáriamente, alferes milicianos, saíram para a coberta e ficaram na amurada fumando e em silêncio.
Amanhã vou ser eu o oficial de dia. Espero vir a encontrar os soldados perdidos no meio dos beliches que foram instalados em qualquer sítio livre. O meu colega que está hoje de serviço, já me avisou que não foi capaz de visitar algumas zonas do navio, pois o cheiro era nauseabundo. Pode ter exagerado e espero que sim.
 Encontramos muitos soldados cantando ao som de uma viola e de uma concertina e lá seguiam encafuados nos beliches, cantando e rindo.
Tive sorte, quando da elaboração do plano de embarque, tinha escolhido o melhor local para o alojamento dos soldados da Companhia, mantendo-os em espaços abertos mais arejados e perto uns dos outros. Não encontrei situações desagradáveis, e o enfermeiro que também me acompanhava na ronda, apenas teve de distribuir alguns comprimidos para  os que tinham mais dificuldade em suportar a ondulação do navio.
Estavam na maioria bem dispostos, alguns improvisaram um local para jogarem as cartas enquanto outros se tinham dedicado a visitar amigos ou conhecidos das outras unidades. E foi esse grupo que me pediu para ir ver as condições em que os camaradas de uma das companhias independentes estavam alojados. Fui com eles e fiquei impressionado. Pareceu-me que ocupavam um porão abaixo da linha de água, e de tal maneira se sentiam que uma grande parte nem tinha coragem para ir tomar as refeições. Comiam apenas o que os colegas mais afoitos e resistentes lhes conseguiam trazer.
Prometi-lhes que iria procurar a possibilidade de os realojar em melhores condições. E com alguma sorte e persistência fui descobrindo algum espaço onde ainda era possível montar mais um beliche. Ficaram apertados mas saíram da escuridão do porão.
Faltam cinco dias para o destino. A guerra estaria logo ali, à nossa espera.
Desembarcar e pisar terra firme será um momento único.
Até sempre. Adeus.
Algures, no Atlântico, em 1964,o ano de início de todos os perigos.

sábado, 3 de março de 2012

HISTÓRIAS SINGULARES

Beber água do rio Bengo

A primeira vez que visitei Luanda, foi nos inícios do ano de 1962.
Foi uma viajem desportiva. Praticava a modalidade de remo no Clube Ferroviário de Portugal, fazia os treinos nos tanques em Xabregas orientados pelo saudoso mestre Acácio. Éramos 4 amigos, e estávamos no primeiro emprego. Foi a CP que, apesar do nosso destino ter sido já decidido, a guerra colonial, nos deu a primeira oportunidade de trabalho e com a garantia que, findo o período militar, podíamos regressar ao emprego.
Não éramos uma equipe muito competitiva. Trabalhadores de escritório, sem prática o que nos faltava em técnica e força sobrava-nos em vontade.
E foi com surpresa que o Clube TAP, secção de remo, nos convidou a partilhar uma viajem a Luanda para uma regata comemorativa do aniversário do Clube Nun’Álvares de Luanda.
Foi uma oportunidade imperdível. Seria a primeira vez que íamos andar de avião, e como era prática naquele tempo, lá seguimos bem vestidos e engravatados.
Foi no super-constellation,  da TAP e o tempo de voo, considerando escalas a que era obrigado foi de aproximadamente dezoito horas.

Muito tempo? Quando se tem vinte anos e se parte numa aventura, a distância não existe.
Foi com alegria que encontramos Luanda, alegre e bonita, já a recuperar dos primeiros meses da guerra, reafirmando a vontade de resistir, apesar dos massacres que a UPA havia praticado na sua descida da fronteira até bem perto da cidade.

Ouvimos contar as histórias mais horrendas de que não vale a pena falar.
Enquanto se aguardava o dia da regata, fomos visitar a famosa fazenda Tentativa, mais os campos de cana de açúcar que alimentavam a refinaria, e a Barragem das Mabubas que fornecia a energia eléctrica à cidade.
Fora ali, a apenas algumas dezenas de quilómetros de Luanda, que os soldados e a população em armas tinham conseguido parar o morticínio.
Foi durante essa visita que um Português, daqueles de antes quebrar que torcer, que sentia aquela África como sua, a exemplo dos antepassados que haviam lutado e sobrevivido nas terras duras do planalto Transmontano, olhou para mim e me avisou:
- Sinto que bebeste água do Bengo, irás voltar a esta cidade. Toma nota do que eu te digo. Nos teus olhos eu pressinto que vais gostar.
Não eram precisos grandes dotes de adivinhação. A guerra iria encarregar-se do caminho mas, mesmo assim respondi que sim, que gostaria de voltar.
Na verdade nunca esqueci as palavras daquele homem curtido pelo sol dos trópicos.
Um ano depois, era soldado e em meados de 1964 desembarcava com os meus companheiros em Cabinda, inesperadamente, pois o nosso destino era mesmo Luanda e depois o Norte de Angola.
Mas em Cabinda a guerrilha estava muito activa e o nosso destino foi mudado.

Mas Cabinda não era Luanda e eu sentia que tinha que cumprir a promessa que fizera ao meu amigo.
E numa oportunidade, havia alguma acalmia no teatro de operações, fui autorizado a passar uma semana em Luanda. O avião militar em que iria viajar teve de proceder à evacuação de feridos num ataque inesperado e fiquei sem transporte. Alguém me aconselhou um barco que iria partir ao cair do dia.
Não hesitei, corri para o porto, cheguei á justa, saltei para o barco que imediatamente começou a navegar.
Era um barco à vela apenas com um pequeno motor. Mal entrei fiquei doente com o balanço e sentado no chão junto à amurada, ia olhando o movimento das águas e as barbatanas de tubarões que costumam visitar aquela zona. Sujo e molhado, sem forças para me levantar, foi assim que o patrão do navio  me encontrou no meio da bagagem e caixas de mercadorias,que transportava. Viu os galões de oficial, alferes, e lá me conseguiu acomodar na minúscula cabine do leme.
E cheguei a Luanda. Como havia prometido, voltara.
O fascínio daquela cidade, não mais me largou. Voltei para passar férias em 1966.
Os tempos mudaram, muitas coisas aconteceram. Mas o efeito da água que bebi no primeiro dia que pisei a terra de Luanda, manteve-se. Voltei algumas dezenas de vezes, a partir de 1978.
A cidade não era a mesma, é certo, mas para mim o fascínio não desaparecera.

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