terça-feira, 30 de novembro de 2010

UMA HISTÓRIA DE AMORES


CAPÍTULO – IX - DESILUSÃO

É verdade, reconhecia que ela e Francisco eram muito diferentes. Ela amava a vida e cada dia era preenchido com alegria e ternura. Dava-se por inteiro, corpo e alma. Francisco era mais sóbrio e pouco expansivo, possivelmente teria entregue só o corpo e guardou a alma fechada, no recôndito do seu ser. O homem da sua vida, não era dado a grandes manifestações de paixão, reconhecia agora, mas sempre sentira, ou julgara sentir da parte dele, uma forma diferente de expressar o amor. Pura ilusão.
O que mais a feria não era a traição em si. Sabia que o amor não é eterno e que precisa de ser renovado momento a momento. O pior que podia acontecer num casamento era tornar-se um costume que não questiona. Ela sabia que em determinados momentos, quase sem se dar por isso, deixamos esfriar a paixão e ficamos vulneráveis a qualquer desafio, que nos permita fugir da monotonia do dia a dia. Mas sempre acreditou, que entre duas pessoas a conviverem durante tanto tempo, teria de existir confiança para discutir a situação.
Há sentimentos que a razão desconhece, reconhecia, mas o que mais a magoara nesta história , foi ele ter dito e escrito à amante, que não podia separar-se da mulher porque tinha pena dela. Pena, que desculpa mais horrível. Até lhe custava a crer que Francisco tivesse sentido pena de uma pessoa, que ele mesmo sempre reconhecera como sendo mais firme e determinada do que ele.
Para desculpar a sua cobardia, Francisco não havia hesitado em ignorar tantos anos de vida em comum.
Na hora em que a morte o levou, procurara na mão da mulher, o perdão da companheira que sabia ter traído e enganado, e que estava, como sempre estivera a seu lado.
Agora, a lágrima que vira no seu rosto, a ansiedade no seu olhar, o gesto final, pareciam-lhe uma hipocrisia sem sentido ou algo mais que nem se atrevia a pensar.
Não sentia raiva da mulher por quem Francisco se apaixonara, sentia sim uma enorme mágoa e um desgosto profundo por ver ruir um grande amor. Pelos vistos não era assim tão grande.
Mas resolveu continuar. Quanto mais tempo pensava no assunto, mais se convencia que ainda faltava alguma coisa.
Retirou a carta nº.5 com recebimento datado de 12 de Novembro de 1998.
Voltou a traduzir:

“ Francisco,
Fiquei realmente surpreendida com a tua carta. Se bem a entendi, vens oferecer-me ajuda financeira para manter o nosso apartamento, cujo contrato termina no final do ano.
Eu não te pedi nada e dinheiro nunca aceitarei. Tens de reconhecer que com a ajuda financeira o tu queres é comprar a tua consciência. Eu não fui um encontro fortuito de uma noite. Não sou uma prostituta que possas comprar.
Eu paguei o meu preço, mas paguei em lágrimas e dor. Isso nunca vou esquecer.
Adeus
Marjorie
New York, Novembro 4, 1998

Maria da Glória, que pensara nada mais a surpreender, não foi capaz de evitar um rictus amargo.
Francisco, o seu companheiro de tantos anos, era uma homem amoral, oferecendo dinheiro à mulher que também enganara?
Não, havia qualquer coisa que não entendia, mas Francisco não fora assim. Também reconhecia que a mulher com quem o marido a traíra, e que mostrara tanto sentimento nas cartas que escrevera, não fora uma armadilha para um homem solitário. Não, Francisco não tinha sido uma vítima.
Tivesse ele sido sincero e contado tudo e não seria ela a dificultar a separação, pois sempre entendera que o casamento não é um contrato para a vida. Preferiria ter-se divorciado, com dor mas sem azedume, seguindo cada um o seu próprio caminho.
Doí-lhe muito o comportamento do marido. Enganar, mentir fugir às responsabilidades eram defeitos que não admitia. Talvez só na hora da morte ele se tivesse arrependido e buscado o perdão. Mas tarde, demasiado tarde.
Refugiou-se no seu trabalho junto das crianças que acompanhava. Passava a maior parte do dia na Instituição, ajudando, por forma a esquecer a dor que sentia.
Mas a noite era um suplício. Só, sem uma pessoa em quem confiasse para desabafar o que lhe ia na alma, começou a perder a alegria de viver.
A transformação era tão evidente que deixou de convidar as amigas para o chá, não tinha paciência para conversas de salão e também negligenciou o que ela sempre tivera muito cuidado em manter, a sua aparência, o seu bom gosto. Até a Empregada, com uma lágrima ao canto do olho, se manifestou preocupada, oferecendo-se mesmo para ficar mais tempo como companhia.
-Glória, recusou agradecida, atribuindo o seu estado, à vivência do luto e à solidão, garantindo que era apenas uma fase e tudo iria passar.
Passar? Mas se nem ela realmente acreditava fosse assim simples...

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

UMA HISTÓRIA DE AMORES


CAPÍTULO – VIII – A FUGA

Deixou passar alguns dias. Esteve tentada a rasgar as cartas, mas o ciúme e o despeito já estavam profundamente entranhados no seu ser. Decidiu continuar até ao fim, como se tivesse de beber, a última gota, de um copo cheio de fel. Tinha o pressentimento que a história não iria ter um fim feliz.
Voltou a abrir o envelope e retirou a carta marcada com o nº 3, assinalada como recebida a 14 de Setembro de 1998.
Traduziu, com mais dificuldade porque havia palavras manchadas. Terão sido lágrimas de quem escreveu ou de quem leu, pensou?
O texto, com uma ou outra falha, dizia:

“ My sweet Francisco,
Como sabias fui a Los Angeles fazer um desfile de moda, para o costureiro do costume. Foram só três dias, durante os quais, tentei por diversas vezes ligar-te, mas fui sempre enviada para a caixa de mensagens.
Liguei para a June e o Bill W....., nossos amigos e vizinhos, mas eles não sabiam nada. Tentei falar com a tua secretária na UN, já não era a mesma , e a substituta não sabia ou não quis dizer-me onde estavas. Por fim lá me foi dizendo que tinhas sido chamado com urgência ao teu País, para consultas diplomáticas.
Quando entrei no nosso apartamento, tremia como se um vento gélido fustigasse o meu corpo. Era uma premonição do que me esperava. O teu armário estava vazio e os teus objectos pessoais tinham sido levados. Ao ver que, até as nossas fotografias, tinham sido retiradas das molduras, fiquei sem nada que pudesse lembrar-me de ti.
Senti-me só, tão só, que tudo me parecia ter sido um sonho, e que este acabara. Chorei muito, sofri de mais.
De ti, do tempo que partilhamos o nosso ninho, apenas ficaram o teu odor e as recordações.
O que eu no fundo receava, tinha acontecido. Tinhas partido, sem uma palavra, como se eu tivesse sido um encontro ocasional. Mas nós partilhamos, o nosso amor durante dois anos. Eu dei-me, como nunca pensei pudesse acontecer. Tu deves ter fingido amar-me durante todo o tempo. Isso dói, dói muito e eu não merecia esta dor.
Mas o meu pesadelo ainda aumentou. Na caixa de correio, com data 2 de Setembro, tinha uma curta mensagem, onde me dizias ir partir, para não mais voltar e o pedido “ esquece-me”. Assim, friamente.
Diz-me, porque partiste? Diz que já não me amas e que eu fui apenas uma aventura. Talvez assim eu consiga refazer a minha vida. Mas tens de me dizer que nunca me amaste.
Tu foste o grande amor da minha vida. As juras de amor eterno que me fizeste, não podiam ser mentira. Ou foram e eu acreditei?
Tua Marjorie”
New York, Setembro,5, 1998

Maria da Glória respirou fundo. Já nada a surpreendia. A dor tão profunda estava a ficar adormecida. Ler as cartas era para ela como ler um romance, do qual não queria ser protagonista.
Estava fria, distante, ausente. Só o olhar não conseguia esconder a profunda tristeza que lhe ia na alma. Aquele não era o Francisco que ela conhecera. Ou era e ela nunca se tinha apercebido?
Abriu nova carta.
Carta nº. 4, recebida a 19 de Outubro de 1988.

“ Francis
Não sei, se ter recebido a tua carta foi bom para mim, porque não a percebi. Nela juras que nunca fingiste e juras que a paixão que sentiste, era verdadeira e se mantém ainda hoje.
Mas que regressaste a casa, definitivamente. Tinhas o propósito de falar com a tua mulher, mas não tiveste coragem para o fazer. Dizes, que ela não merecia sofrer, com a tua imprudência.
Imprudência, foi assim que classificaste as nossas longas noites de amor, a ternura nos nossos gestos, a alegria e a felicidade dos momentos, tantos, que vivemos.
Se isso é uma imprudência, o que é então o amor? Fizeste uma opção clara entre mim e o dever de respeito para com a tua mulher. Não foi uma opção entre uma e outra, foi uma escolha entre o amor por mim e respeito pela tua mulher.
Não percebo, nem compreendo, e creio que ela também não compreenderia, tão estranha opção.
Por ti, eu enfrentei a minha família. Pelo amor que sentia, lutaria contra tudo e contra todos, se fosse necessário. Porque para mim o amor é a vida, não é, nem nunca será, uma imprudência. Eu disse-te, quando passamos a viver juntos, que para mim, não há meio termo. Quando amo e me entrego faço-o com todos os sentidos e que sempre pensei receber o mesmo.
Não posso perdoar a tua cobardia, mas digo com o coração despedaçado, continuo a amar-te...
Marjorie
New York, Outubro, 10, 1998

Releu a carta e voltou a sofrer, imaginando o que o Francisco dissera de si. Provávelmente, que o casamento fora, também, uma imprudência ou um equívoco, e que só por hábito e comodidade se mantivera. Cada vez mais detroçada decidiu parar de ler as cartas. Só lhe estavam a fazer mal.

domingo, 28 de novembro de 2010

UMA HISTÓRIA DE AMORES



CAPÍTULO – VII – A SEGUNDA CARTA

Abriu o segundo envelope. Também tinha anotada a data da recepção, 13 de Agosto de 1997. Francisco, gozava o período de férias de verão. Pela primeira vez, não se mostrara entusiasmado, quando lhe sugerira que fossem passear, como era costume. Dissera que fora, já ele tinha estado mais de seis meses e que, agora, o que precisava era de ficar em casa, conversando, lendo e matando saudades.
À medida que ia lendo e traduzindo o texto, da carta nº. 2, Glória sentia um maior aperto no coração, um desmoronar da esperança, ténue, que ainda teimava em manter viva.
“ Meu amor,
Não sou capaz de te explicar a sensação, que sinto ao acordar, procurar o teu corpo e encontrar o vazio.
Desperto a pensar em ti, no que fazes, e sinto a picada do ciúme, por te saber com outra.
Tenho a certeza de que ao fazeres amor com a tua mulher, fechas os olhos e é em mim que estás pensando. Quero muito acreditar.
Amo-te e desejo-te tanto. O meu corpo reclama e está sedento das tuas carícias.
Tenta vir o mais cedo possível, arranjarás com facilidade uma justificação.
A cidade do nosso amor, está muito quente, vazia, não tenho desfiles para este período e portanto nada me distrai.
Olho a tua fotografia, que me faz companhia, nas preciso de ti para apagar esta chama ardente, que me consome.
Vem depressa, eu espero-te.
A tua, sempre tua, Marjorie.
New York, Agosto, 5, 1997”

Acabou de ler, e com lágrimas nos olhos, dobrou a pequena carta e voltou a colocá-la no envelope correspondente.
Não teve coragem para continuar a ler as outras. Sentia-se vítima de um terramoto, com o mundo a cair sobre a sua cabeça. Precisava de recuperar o auto domínio. O coração estava demasiado ferido e sangrando.Não podia deixar, que fosse ele a comandar os sentidos. Era preciso parar, pensar e colocar em ordem tudo o que lera. Embora tarde, reconhecia que certos indícios de uma alteração comportamental, que notara no marido, no período em que ele vivera em Nova York e mesmo após o seu regresso, deviam ter uma origem.
No primeiro Natal, e nas férias do verão seguinte, recordava agora, viu-o mais alegre e descontraído. Comentara até com as amigas, que a grande cidade lhe estava a fazer bem. Como elas iriam rir nas suas costas, se soubessem o porquê.
Quando regressou, definitivamente, no princípio de Setembro de 1998, voltou a ser o homem calado e reservado que ela sempre conhecera. Estava com ar abatido e teve problemas com os colegas do Ministèrio. De tal forma que decidiu não ter disposição para continuar a fazer o trabalho que lhe tinha sido destinado, pediu uma licença sem vencimento e mais tarde a reforma.
Ela deveria ter sabido interpretar aqueles sinais. Não o soube, e agora como se arrependia. Percebera o cuidado do marido em alugar uma caixa postal e esconder os documentos, num local a que ela não teria acesso fácil. O Francisco, pensara em tudo para lhe esconder a traição. A mentira tem mesmo um sabor amargo, que vai sendo destilado e envenenando o nosso sangue.
Para quê continuar a mortificar-me? O que se passou tem mais de dez anos! Dez anos é muito tempo. Esteve quase decidida a não continuar a leitura. Algo porém a impelia a seguir em frente, masoquismo talvez, mas principalmente a sua personalidade forte que a impediam de deixar as coisa a meio.
Esperava, oh como esperava, que tudo tivesse sido uma aventura sem consequências, nascida pelo fascínio de uma mulher mais jovem e certamente bonita e a fraqueza de alguém que está só, numa terra estranha. Na realidade ainda se recusava a acreditar, que toda a sua vida de casada tivesse sido uma encenação.
Como era, Francisco, dizia para a fotografia:
- Estavas comigo a pensar nela ou estavas com ela a pensar em mim?

sábado, 27 de novembro de 2010

UMA HISTÓRIA DE AMORES









CAPÍTULO 6 – A PRIMEIRA CARTA

Arrumou as recordações temporais, que só lhe serviam para entender sinais, decidiu-se a abrir e ler a primeira carta.
Esta era de uma 1 folha apenas, manuscrita por mão feminina, numa letra elegante mas pouco legível e escrita em língua Inglesa. Teve alguma dificuldade na leitura, por isso resolveu traduzir o texto , deixando o espaço em branco, para uma palavra ou outra que não conseguisse perceber, e que completaria, mais tarde, interpretando-a pelo sentido da frase.
A carta era uma declaração, uma afirmação de amor.

“ Meu grande, grande amor,
Para não estar sozinha durante o período do Natal, tirei uns dias de férias e vim passá-los a casa dos meus Pais em Montreal. É daqui que te escrevo.
Gosto de estar com os meus Pais e irmãos mas a minha Mãe, já se apercebeu que eu estou inquieta e ausente.
Perguntou-me se o meu comportamento se devia a aborrecimentos com o trabalho ou se era um mal do coração.
Não consegui e não quis esconder e confessei que estava perdidamente apaixonada.
A Mãe disse-me que estar apaixonada é maravilhoso mas que pode causar dores e sofrimento se a paixão não for correspondida, ou algo correr mal. Nisso estou à vontade pois sei o quanto me amas.
Tenho muitas saudades tuas. Vivo a contar os dias que faltam, para te envolver nos meus braços, beijar-te, e gritar o meu amor.
Ainda te lembras do nosso primeiro encontro? Foi casual e fortuito num sábado de manhã, a passear no Central Park. Estava um dia cheio de sol, mas as árvores tinham começado e perder as folhas, atapetando os passeios com um manto doirado. Conversamos, deste-me o teu cartão e eu dei-te o meu número de telefone.
Confesso, que tinha a esperança de te encontrar de novo. Mas tão depressa não. Foi nesse mesmo dia, que recebi o teu convite para jantar. Aceitei com alegria, porque acreditei que o nosso encontro, tinha sido, uma partida do destino.
Eu sinto e acredito que o nosso encontro foi talhado no céu. Nós fomos feitos um para o outro e mais tarde ou mais cedo, a chama que se acendeu naquela manhã no parque, iria, teria de ir, iluminar os nossos caminhos.
Depois, bem depois, começou o nosso romance, tão forte e intensamente vivido.
Também tens saudades minhas? Sei que sim, pois a paixão que nos une, vai muito para além da razão.
Volta depressa. Preciso da volúpia dos teus carinhos, sinto falta do calor do teu corpo.
Tu és a razão do meu viver e eu sem ti, sinto-me perdida.
Aí nesse teu mundo, onde me disseste faltar-te algo, não te esqueças que o meu coração, o meu corpo fremente, são teus.
Feliz Natal.
Amo-te mais do que à vida.
A tua Marjorie.
Montreal, Dezembro, 20, 1996


Meu Deus, exclamou Maria da Glória. O suor escorria-lhe pelas fontes, o corpo tremia como árvore açoitada pelo vento bravio. As lágrimas caíram-lhe pela face e sentiu-se desamparada. Olhava à sua volta e tudo o que a rodeava lhe parecia irreal. Os quadros que haviam comprado, as fotografias do casal, o maple onde ele se sentava a ler enquanto ela cuidava da casa, tudo aparecia agora encoberto pelo nevoeiro da tristeza. Parecia que mergulhara num mundo que não era o dela, como se de um pesadelo se tratasse. Queria gritar que o que lera não era a verdade, mas os gritos não passavam de gemidos de dor, porque as palavras que lera nada escondiam. Francisco traíra e vivera mais de dez anos na sombra da traição. Como é que ela nunca se apercebera, não conseguia entender. Custava-lhe muito ter de reconhecer que, quem sabe, também ela tivesse contribuído para o que acontecera. Talvez se tivesse acomodado e deixado que a vida dos dois fosse um hábito.
Releu de novo a carta, como se procurasse, com angústia, um sinal de engano.
Mas não havia dúvidas, era uma carta escrita por uma mulher apaixonada, para alguém que lhe retibuia a paixão. Toda a vida, construída com base na confiança, na partilha, no amor, ruía agora como um frágil castelo de cartas. E o estrondo da verdade, feria-lhe os ouvidos e teimava em permaner, entranhado, no fundo do peito.
Lamentou não ter seguido o conselho do Advogado. Mas, para além da dúvida que a devorava, alimentara sempre, a esperança, de que tudo não passasse de um erro ou de uma confusão. Agora é tarde, para recriminações. O mal está feito e a dúvida deixou de o ser. Precisava de seguir em frente. Desistir agora, não era capaz. O grande choque já tinha acontecido. Tudo o resto que vier, não a iria ferir mais. Afinal, ganhar a confiança numa pessoa não é fácil, é preciso quase uma vida, mas para perdê-la, basta um instante. E ela deixara de acreditar.
Magoava-a reconhecer que Francisco, quando cá estivera no primeiro Natal, e lhe falou na hipótese de o acompanhar, não fora mais do que um acto de hipocrisia. Nessa altura, ele já vivia com outra mulher.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010


CAPÍTULO V - O SEGREDO


Deixou passar algum tempo. Precisava de arranjar algo que a tirasse de casa, do meio das recordações, agora tremidas.
Quando Francisco regressara de Nova Iorque insistira com ela para que deixasse de exercer medicina no consultório de sempre e assim tivessem mais tempo para estar juntos. Fez a vontade mas agora, tratar doentes, talvez fosse o melhor caminho.
Não quis retomar a actividade normal. Optou por se associar a uma ONG, recentemente criada e que acolhia e tratava crianças em risco. Como mulher e médica sentia-se bem, dando um pouco de si a uma causa tão nobre. Esse seu voluntariado ocupava-lhe todas as manhãs e por vezes uma ou outra tarde.
Retomou a sua rotina de café da manhã com o grupo de amigos do hospital onde trabalhara e o chá das cinco em sua casa com as amigas mais próximas, viúvas como ela. Conversavam sobre futilidades ou problemas do dia a dia, sobre a família, saúde e comentavam filmes e programas de televisão.
Maria da Glória, quase se havia esquecido, do misterioso embrulho, quando certo dia à hora do chá, a D. Etelvina apareceu triste e chorosa, porque a filha se havia desentendido com o marido e tinham decidido divorciar-se. Dizia ela para as amigas:
- Calculem que o meu genro, que tem mais de quarenta anos, tinha há largo tempo uma amante bem mais nova do que ele. Foi por puro acaso que a minha filha descobriu a traição. Encontrou-os num café, onde entrara para comprar cigarros.
Confrontou o marido, com a cena amorosa que havia presenciado, ele nem pestanejou. Disse que estava apaixonado e que o melhor era mesmo o divórcio. Os meus netos, um rapaz de vinte e cinco anos e a minha neta que vai fazer vinte e sete, casados e a viverem, ele em Londres e ela no Porto, ainda tentaram compor a relação, mas não tiveram sucesso.
Já toda a gente sabe, que a idade dos quarente aos cinquenta anos é o período mais complicado para um casamento. Os filhos estão crescidos e os homens têm tendência a querer viver outra vida, e terem outras relações. E ficam muito vulneráveis, a qualquer sorriso ou provocação, de uma mulher mais nova. Eu bem que avisava a minha filha, que deveria ter mais cuidado com o seu corpo, fazer uns tratamentos contra a celulite, tirar algumas rugas, mas ela pensava que tudo isso era desnecessário, numa relação de mais de vinte anos. Só agora me deu razão, desabafou a D. Etelvina.
Pois é, dizia a D. Antonieta, os homens em qualquer idade precisam de rédea curta. O meu Estevão, que a sua alma descanse em paz, não ia a qualquer lado sem que eu o acompanhasse, mesmo quando se deslocava ao estrangeiro, por períodos curtos. Congressos ou encontros de colegas da faculdade, eu sempre o acompanhei.
Terminado o ritual do chá e bolinhos, regressaram a suas casas, a pé ou de táxi, conforme a distância.
Quando se viu sozinha, Maria da Glória, de semblante triste e em jeito de revolta, reconhecia que a conversa da amiga tinha sido bem inoportuna. Ela que fazia tudo para não pensar no segredo, e logo veio a conversa da amiga sobre a infidelidade do genro, avivar receios e suspeitas. Na realidade e embora lhe custasse admitir, receava que Francisco tivesse tido uma ligação amorosa, e que se havia comprometido a um pagamento mensal para evitar males maiores. Não foi capaz de suportar a dúvida, cada vez mais latente e precisava de saber a verdade.
Tomou a decisão de desvendar o segredo, que acreditava estava escondido nos papéis que Francisco escondera .
Sentou-se à secretária, abriu a gaveta pegou no embrulho que lá guardara, após terem sido encontrados. As mãos tremiam enquanto o abria. Retirou um envelope em branco. Mirou-o e remirou-o e nada viu escrito por fora. Amarelecido, pensou, é capaz de ser já bem antigo. Com a faca para papel abriu cuidadosamente e retirou o conteúdo. Eram nove envelopes. Contou sete que eram de correio aéreo e reparou que em cada um estava anotado, com a caligrafia que tão bem conhecia, a data do seu recebimento. O dois últimos, não tinham qualquer indicação escrita. Pelo tacto, percebeu que naqueles dois, estariam fotografias. Vou deixar para o fim. Para entender o segredo, vou primeiro dedicar-me, às cartas.
O endereço era uma caixa postal e o remetente apenas um rabisco. Faz sentido, pensava, Francisco não queria correr o risco de que ela visse alguma carta comprometedora. Mas, o ocaso colocou-lhe nas mãos as cartas que ele, com tanto cuidado, escondera.
Abriu o envelope, com o número 1 assinalado no canto esquerdo e marcado com a data de 26 Dezembro de 1996. Nesta data o Francisco estava em Portugal a passar o Natal. Lembrava-se de o ver muito mais alegre do que habitual. Imaginara até que a sua felicidade se devesse a estar em casa e na sua companhia, após alguns meses de ausência. Agora, receava no seu íntimo, que a alegria de Francisco fosse por outros motivos.
Avivou a memória, procurando lembrar a sequência das deslocações do marido, enquanto em Nova Iorque, nos anos de 1996, 1997 e 1998. Confirmou que Francisco partira no final de Agosto de 1996, uma vez que a comissão de serviço teria início logo no mês seguinte. Voltou para passar quinze dias no Natal desse ano e três semanas para as férias de verão de 1997. Disso não tinha dúvidas.
No dia 22 de Dezembro de 1997, veio para as férias de Natal e regressou alguns dias antes do final do ano, dizendo que se tinha comprometido a elaborar um relatório sobre as reuniões de uma conferência internacional e estava atrasado e com dificuldades de o concluir a tempo. Não queria correr riscos e para os evitar precisava de mais tempo. Finalmente, o período da sua comissão terminara no fim de Julho de 1998, gastou algum tempo a arrumar as coisa, regressando definitivamente, no início de Setembro de 1998.
Enquanto ia reconstituindo o período da vida de Francisco em Nova Iorque, ia recordando algumas pequenas coisas, a que na altura não dera grande significado mas que agora lhe pareciam ter alguma razão de ser.
Durante o primeiro Natal, Francisco muito bem disposto, ainda lhe falara na hipótese de Glória o acompanhar, até porque já vivia num apartamento bem agradável. Maria da Glória escusou-se porque não tinha nada preparado, tinha compromissos com doentes que acompanhava e não podia deixar e porque, em boa verdade,não gostava sequer de andar de avião. Francisco aceitou bem as justificações e não insistiu no assunto, comentando que dois anos iriam passar num ápice e que em breve voltaria.


UMA HISTÓRIA DE AMORES


CAPÍTULO IV – A DECEPÇÃO

Maria da Glória voltou a casa mais preocupada do que saíra. A esperança numa explicação aceitável e compreensível, desvanecera-se. O coração dizia-lhe que o segredo que o marido escondera tinha motivos pessoais, e isso arrepiava-a. Não podia admitir que, ao fim de tantos anos tivesse de reconhecer que, Francisco tinha segredos que guardara só para ele.
Ainda assim, saber que os movimentos em dinheiro começaram algum tempo depois do seu regresso de Nova Iorque precisamente sete meses após, já era uma indicação importante, embora inquietante.
O que se passou não sabia, mas foi de certeza naquela cidade, e sentia um mal estar, talvez uma premonição, do que pudesse vir a descobrir.
Era uma pessoa determinada e, apesar de reconhecer a bondade da sugestão do Advogado para esquecer, receava não conseguir conviver com a dúvida.
Voltou para casa, determinada a analisar todos os documentos, existentes no escritório. Aproveitaria para com a ajuda da empregada fazer uma limpeza as centenas de livros. Decidiu que tal tarefa, iria começar já no dia seguinte.
Dormiu mal. Teve sonhos menos agradáveis e acordou cedo, hesitante em continuar a pesquisa a que se propunha. Lembrou-se das palavras do Advogado e não deixou de lhe reconhecer sabedoria e bom senso. Mas a curiosidade foi mais forte. Quando a Eulália, a empregada de tantos anos chegou, já ela se encontrava sentada à secretária, vasculhando papelada antiga, rasgando o que não tinha interesse e pondo de parte documentos e cartas que queria ver com mais atenção. Criou mesmo um dossier onde, foi arquivando por data e assunto os papéis que podiam ter alguma relevância.
- Oh Drª Maria da Glória, então a senhora está hoje tão atarefada que nem se lembrou de tomar o pequeno almoço, ouviu dizer a empregada à entrada do escritório.
- Tem razão, Eulália mas como dormi mal, levantei-me cedo e vim ocupar o meu tempo a arrumar a secretária. Prepare-me qualquer coisa para eu comer, um sumo, um chá e uma torrada e depois venha para aqui, ajudar-me a limpar e arrumar os livros.
Fez uma pausa para tomar o pequeno almoço, e distribuiu as prateleiras da biblioteca uma para si e outra para a empregada, recomendando que os livros depois de limpos deveriam ser colocados no mesmo espaço.
- Eulália,faça a limpeza de forma ordenada para respeitar a ordem em que os livros estão agrupados, recomendou. Hoje, vamos despachar apenas estas duas prateleiras. Não são grandes e por isso uma manhã deve dar. Durante a semana iremos arranjar tempo para tratar das outras, seguindo o mesmo critério. Só trabalhamos da parte da manhã. Quanto ao almoço a Eulália não se preocupe, telefonaremos e encomendar do restaurante habitual. O sr. Amílcar arranjará maneira de nos fazer chegar a comida, quentinha, à hora que se indicar. Penso que em quinze dias teremos limpo, todas as estantes e os livros.
E agora mãos à obra.
O trabalho parecia bem mais fácil do que a realidade comprovou. Já era meio dia e só iam a meio.
- Eulália, enganei-me nas minhas previsões. Hoje ficamos por aqui. Depois iremos andando, sem pressas porque já me apercebi que o trabalho vai demorar mais do que eu estimei. Quando chegarmos às prateleiras mais altas, em que teremos de utilizar o escadote que está naquele canto, atrás da porta, vamos pedir ajuda, pois é mais prudente evitar descer e subir a escada.
- Se a Doutora quiser, quando for necessário, eu peço ao meu marido, para vir fazer o trabalho nas prateleiras mais altas, propôs Eulália.
- Excelente ideia, combine com ele os dias e as horas em que lhe dá mais jeito e nós ajustaremos o nosso horário em conformidade.
- Fique descansada, minha senhora, hoje à noite falo com ele. Naturalmente que só poderá fazer o trabalho aos sábados.
- Não se preocupe Eulália, se ele puder vir ao sábado, não vejo qualquer problema.
No dia seguinte, a empregada enquanto limpava o pó, dos móveis do escritório, lembrou que o marido tinha concordado em dar uma ajuda e que no próximo sábado, viria começar o trabalho. Ele sugeriu começar às 9 horas, a Doutora acha bem?
- Sim cá os espero, respondeu.
Foi, precisamente no sábado, que ao esvaziar de livros, uma prateleira bem alta, o senhor António, encontrou um envelope grande, colado com fita cola, guardado no interior dum livro de grande volume. Ao retirar esse volume para o limpar, o envelope caiu ao chão. Pegou nele, aproximou-se da secretária onde a Doutora relia uma carta, em papel já amarelecido pelo tempo, e disse:
- Minha Senhora, olhe encontrei este embrulho, metido dentro do livro grande que estou a limpar!
Maria da Glória empalideceu, estendeu a mão trémula, pegou no envelope, deu-lhe uma rápida vista de olhos. De seguida guardou-o na gaveta.
- Obrigada sr. António, isto devem ser documentos, hoje sem importância e que ali estavam guardados há tanto tempo que já me havia esquecido. Calculo que deve ser a escritura de compra desta casa, imagine.
Aparentou desinteresse, mas na realidade, o coração batia descompassadamente. Pediu à Eulália um chá de camomila e a caixinha de comprimidos que estava na gaveta da mesa de cabeceira. Tinha de tomar um calmante, pois estava a sentir-me muito cansada.
A Senhora está pálida, quer que eu fale ao médico?
- Não Eulália, isto vai já passar com o chá e o comprimido. Depois é só descansar. Tomou a tisana, engoliu o comprimido, saiu do escritório e foi-se reclinar no sofá da sala. Fechou os olhos para que a empregada não visse, que eles estavam marejados de lágrimas. Mesmo sem saber o que continha o envelope, sentiu que iria sofrer alguma decepção. O Francisco guardara, escondera, documentos num local que sabia não lhe ser de fácil acesso. Era um mau sinal de um segredo que só ele conhecia.
Mais uma vez lhe vieram à lembrança as palavras do Advogado. Um segredo pode não valer a pena conhecê-lo. Com certeza, deixando-o esquecido no meio da vida, pode ser menos doloroso que a verdade que ele esconda. Tudo passa e com o tempo iria esquecer. Bem tentou.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

UMA HISTÓRIA DE AMORES






CAPÍTULO III – DESESPERANÇA

Assim, sentada numa poltrona da sala de espera de um escritório de advogados, Maria da Glória, calma na aparência, aguardava a entrevista préviamente marcada.
Estava vestida com bom gosto, com uma ou outra jóia, de qualidade, mas sem exagerar, fazendo sobressair os traços da beleza, que o tempo não tinha apagado.
Era uma mulher atenta ao que a rodeava, sempre se habituara a olhar de frente as pessoas, com um sorriso bonito que não deixava indiferente quem com ela convivia. E na realidade, sentia-se bem nesse papel.
O escritório era de uma Sociedade de Advogados, com especialistas nas diversas áreas do Direito, pelo que o movimento de clientes era grande. Enquanto esperava, olhava o tipo de pessoas que aguardavam na ampla sala de espera, a hora de serem recebidas e exercitava-se a calcular a razão de cada um. Aquele, olhava para um senhor circunspecto, folheando uma revista que retirara da maleta, é um homem de negócios; Outro, que olhava impacientemente o relógio, e se levantava amiudadas vezes para falar ao telemóvel, em voz sussurrada, deve ter problemas de ordem fiscal; Um casal de meia idade, sentado lado a lado, mas sem trocarem uma palavra entre si, devem estar num processo de divórcio.
Estava tão entretida, no jogo de adivinhação, que nem se tinha apercebido que a hora da sua entrevista já tinha sido ultrapassada. Foi por isso uma surpresa, quando uma simpática secretária, se lhe dirigiu, dizendo:
- Srª Drª Maria da Glória, o Doutor Leandro, telefonou agora, pedindo que lhe apresentasse as maiores desculpas por estar atrasado, mas a audiência, que está a decorrer, vai demorar mais do que o previsto. Todavia, estará aqui dentro de aproximadamente três quartos de hora. Enquanto espera, a Senhora aceita que lhe sirva uma bebida, café ou um chá?
- Obrigada mas não se preocupe comigo, não preciso de nada. A menina sabe, Glória sorriu, espero que não se importe que eu me dirija a si desta forma, a minha idade dá-me certos privilégios.
- Doutora, até é uma forma bonita de me chamar, mas se preferir pode tratar-me pelo meu nome, Ester.
- Ester, que lindo nome, é bíblico, sabe? Pois bem, Ester, digo-lhe que me divirto mais aqui a observar o movimento, do que em casa sozinha, por isso não se preocupe comigo.
-Então se me dá licença vou voltar para o meu gabinete. Virei chamá-la logo que que o Doutor Leandro entrar no escritório.
Aguardou mais alguns minutos, menos do que tinha previsto, até que a secretária lhe veio comunicar, que podia entrar, pois o Doutor já estava disponível..
O Advogado recebeu-a à porta, com um sorriso de simpatia e amizade e acompanhou-a até ao cadeirão, em frente da secretária.
- Maria da Glória, antes que tudo, quero pedir-lhe desculpa do meu atraso, mas foi um imprevisto processual que atrasou a audiência. Vejo também, que conseguiu ultrapassar, na aparência pelo menos, os momentos difíceis, e apraz-me muito a sua tranquilidade e serenidade. Há dias a Filomena censurou-me por não ter arranjado ainda tempo para lhe fazermos uma visita, como era habitual, mas sabe esta vida que levo rouba-me muito tempo. Espero que nos perdoe.
- Sim , eu compreendo, a vida nem sempre nos permite fazer o que queremos. Quanto a mim, o desgosto fica mas o caminho é em frente.
- É assim mesmo. Não se entregue à dor, tem uma vida pela frente e tem todo o direito a refazer a sua vida.Mas, a Glória, procurou-me, é por algo em que a possa ajudar?
- Sim penso que sim, mas peço-lhe que entenda que o procuro mais como amigo de longa data, do que como profissional. Quer dizer, o que lhe venho é pedir é uma informação, sobre um assunto que, Francisco, como seu amigo íntimo, lhe deve ter contado e que poderá não ter nada a ver com a sua actividade. Se tiver tempo disponível, deixe-me contar uma história.
- Por quem é Maria da Glória, tem todo o tempo que precisar.
- Então é assim:
- Eu sempre entendi o casamento como sendo uma partilha, isto é não poderá nem deverá haver equívocos ou segredos. Também é este princípio de confiança que eu penso deve existir entre amigos. Pensava eu que seria assim, mas agora tenho dúvidas e isso faz-me mal. Antes de morrer, Francisco recuperou um pouco a consciência, apertou-me com força a mão e deixou correr algumas lágrimas. O seu último olhar, fixo nos meus olhos, parecia querer transmitir algo. Um pedido, uma última palavra de amor ou, quem sabe, uma confissão. Foi uma impressão tão forte que ainda hoje a sinto. Mas ele não conseguiu dizer nada, estremeceu e partiu para sempre.
- Leandro, diga-me que segredo é que o Francisco escondeu de mim durante anos e que você como Advogado, amigo e confidente, estou convencida, conhece?
Antes de responder, digo-lhe que na passada semana, fui surpreendida pela existência, há mais de dez anos, de uma ordem de pagamento mensal de 1500 Dólares para um Banco nos Estados Unidos. Nunca antes ouvira o Francisco referir-se a este movimento e no arquivo que ele, cuidadosamente, mantinha, não existe nenhum documento relacionado com esta operação.
- Dez anos, Leandro, é muito tempo, para que o Francisco, nunca tivesse tido disponibilidade para me falar disto. A conclusão é óbvia, por algum motivo ele quis esconder-me este assunto. Espero, oh como espero e desejo que o pagamento se destine a liquidar algum negócio em que o Francisco se meteu enquanto esteve em Nova York , que tivesse corrido mal e que ele para não me preocupar, mo tenha escondido.
É com esta esperança que lhe pergunto, você Leandro o que é que sabe ?
O amigo mexeu-se na cadeira, visivelmente incomodado com a questão, e respondeu com a voz algo insegura o que lhe não era habitual.
- Maria da Glória, acha que valerá mesmo a pena, saber o que, eventualmente, o seu marido lhe ocultou durante tanto tempo? Será assim tão importante? Devo dizer-lhe que o pouco sei, mas, peço-lhe pense bem. Não será mais conveniente, esquecer a existência de tal operação, mantendo-a ou não em vigor, e guardar em troca as lembranças boas que acumulou durante tantos anos de vida em comum? A Glória sabe como eu, que por vezes uma pequena mentira que se ignora, pode ser menos dolorosa do que uma verdade que se conhece.
- Eu compreendo tudo o que me disse, Leandro, e já fiz essa pergunta a mim mesmo. Contudo estou convencida que na hora da morte o meu marido me quis pedir algo e já não foi capaz de o dizer. É só esse sentimento que me faz tentar saber a verdade.
- Assim sendo, só lhe posso dizer que, quando o Francisco regressou de Nova Iorque, me procurou, para o ajudar a encontrar um modo de, transferir mensalmente, uma determinada verba a favor de alguém, que não quis identificar, mas que, vivia no estrangeiro. Recordo, que na altura esta questão me surpreendeu, mas vi que ele estava tão embaraçado e constrangido, que optei por não lhe fazer qualquer pergunta. A Glória pode achar estranho, mas foi mesmo assim.
- Leandro eu quero acreditar no que me contou. Mas também sei que os homens têm tendência para se unirem perante situações de certo melindre para o casamento. Espero, sinceramente, que não tenha sido o caso.
Não o incomodo mais, cumprimentos à família. Estou certa de que ainda voltaremos a falar sobre este caso.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

UMA HISTÓRIA DE AMORES







CAPÍTULO II – A DÚVIDA

A sua memória vagueava agora pelo passado.
O seu encontro, dera-se numa festa de amigos comuns, quando ela, jovem estagiária de medicina, bonita e alegre, reparou num jovem triste, sentado num recanto da sala. Quis o destino que se tivesse aproximado daquele homem e, intrigada, lhe tenha perguntado se não aceitava ir dançar. Para sua surpresa, ele aceitou com um sorriso tímido e envergonhado.
Não mais se largaram e sentiram uma atracção que os levou, meses mais tarde, ao casamento.
O Francisco já trabalhava. Licenciado em Direito, como era da tradição familiar, ingressara no Ministério dos Negócios Estrangeiros. Filho de família de costumes muito tradicionais, tinha perdido a Mãe e pouco tempo depois o Pai. Sentia-se só na vida, sem familiares próximos e com alguma dificuldade em arranjar amigos.
Herdara fortuna considerável, pelo que lhes foi possível comprar e restaurar a casa, que escolheram para viver.
Nas férias, viajavam muito, quase sempre de automóvel, pois ambos gostavam de percorrer os caminhos, fora do circuito habitual dos turistas. A França, com os seus Castelos e o verde dos campos era um destino percorrido vezes sem conta. Depois a Itália, das pequenas vilas e lugares escondidos.
Também não podiam deixar de visitar museus, onde pudessem admirar pintura dos períodos impressionista e expressionista, os seus preferidos.
Quando regressavam, traziam sempre um quadro, de autor desconhecido, que tivessem encontrado, numa pequena loja de antiguidades, algures, no seu percurso,ou uma estatueta, um livro, ou um ou outro artigo que lhes chamasse a atenção. E assim, iam decorando a casa.
Sacudiu os ombros, como se quisesse sair daquele sonho em que mergulhara.
Encheu-se de coragem, prometeu a si mesma que fecharia o baú das recordações, porque teria de aprender a viver sem o companheiro, e porque sentia que lhe devia isso pelo amor e partilha que sempre os havia ligado.
Aliviou o luto no vestir, voltou a ter cuidado com o corpo e essa transformação fez-lhe bem. Gostava, de novo, de se ver ao espelho. Pouco a pouco, voltou a ser a mesma pessoa elegante, disponível e determinada, como sempre fora.
A quarta feira era o dia que reservava para Eulália, a empregada que estava com eles desde o casamento, fazer a limpeza e arrumação da casa.
Ela própria costumava dar uma ajuda, mas desta vez decidiu que tinha de ler a correspondência, colocada, numa bandeja em cima da secretária, e que deixara acumular.
Muitas das cartas eram do Banco, extractos de conta, despesas pagas por débito em conta, saldos dos cartões de crédito, e até movimentos que não entendia. Nunca se havia preocupado com as questões bancárias e financeiras. Isso tinha sido sempre, tarefa do marido, mas agora tinha de aprender.
Optou por falar com o Banco para se inteirar de tudo o que dizia respeito às suas finanças pessoais, pediu uma entrevista que foi marcada para o dia seguinte.
Tampouco conhecia o seu gestor de conta mas a simpática senhora que a atendeu conhecia bem o dossier e fácilmente passou em revista todas as obrigações ligadas às contas. Como chegassem à conclusão que havia contas cuja existência já não se justificava acordaram encerrar essas e transferir os fundos para aplicações mais rentáveis. Quando a gestora lhe perguntou se a ordem de pagamento mensal de 1500 dólares, ligada à conta do marido, também era para cancelar, ficou perturbada e sentiu o coração bater mais acelerado. Recomposta da surpresa, era a primeira vez que ouvia falar naquela operação, respondeu, que era para manter, mas ligada à nova conta. E já agora, perguntou, esse assunto era tratado pelo meu marido e eu, por preguiça, ainda não pus em ordem a papelada, diga-me os dados da operação.
A gestora consultou o processo no programa de computador, mas os dados que encontrou não eram claros.
- Pois, Senhora Doutora, agora só lhe posso dizer que ela começou a ser feita já há anos. Mas eu vou pedir o dossier e posso enviar-lhe o histórico das operações.
- Agradeço-lhe muito, a sua gentileza vai poupar-me uma série de trabalho, respondeu.
Despediu-se e saiu da agência bancária, com a dúvida instalada e associada a uma estranha picada de ciúme. Não se lembrava de Francisco lhe ter, em algum momento, falado do assunto. Assim imaginava que era qualquer coisa que ele lhe quisera esconder. Mas o que mais a surpreendia era que, dez anos depois, dele ter regressado da comissão de serviço em New York, a operação continuasse a ser realizada.
Tentou convencer-se a si mesma que Francisco se esquecera. Porém, quando recebeu do Banco o dossier completo com o detalhe de todos os movimentos, e cópia das notas de débito referentes a todas as operações, a dúvida e a suspeita, ficaram, definitivamente instaladas. É que no arquivo, tão organizado, que o marido lhe deixara com os documentos bancários importantes, não encontrou um único, referente aquela operação.
Decidiu ir falar com o advogado e amigo, pois Francisco que era tão cuidadoso, não faria nada sem se aconselhar com ele. Penso que ele poderá esclarecer tudo.
Espero e desejo que sim.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

UMA HISTÓRIA DE AMORES



CAPITULO I - A SOLIDÃO

Lisboa, Fevereiro de 2009


Naquele domingo de Fevereiro, chuvoso e triste, Maria da Glória acordou bem cedo. Dormira mal, tivera sonhos desagradáveis e ao acordar sentira, agora mais do que nunca, a falta do marido.
Este falecera há menos de um mês, repentinamente, mas ela recuperara bem do choque. Já sabia que a dor do luto, se manifesta mais tarde. Nos primeiros tempos a companhia dos amigos e o trabalho com o funeral, não lhe deixaram muito tempo para pensar.
Agora, sofria de solidão, naquela casa, que havia partilhado durante trinta anos, e lhe parecia agora tão fria.Andou a percorrer o apartamento, sem se fixar num espaço. Todos eles lhe traziam recordações.
Habitava um terceiro andar, numa casa antiga, que tinham comprado aquando do casamento e que haviam mandado recuperar, e transformar ao longo da vida. Tinha uma excelente localização, na encosta da Lapa, com uma sala bem ampla, de janelas viradas ao rio.
Todavia, achava que a sala mais acolhedora, o refúgio que agora procurava, era aquela que tinham mandado transformar em biblioteca e escritório. As paredes estavam apaineladas em madeira, com divisórias bem calculadas, de forma a receberem os livros de que ambos gostavam. E eram muitos. Junto da janela, um maple de cabedal, era o lugar preferido do marido, para se sentar a preparar e saborear o cachimbo, aquele ritual que a fazia sorrir, enquanto pegava num livro e bebericava de um copo de scotch, da sua marca preferida.
Ela optava por um cadeirão, onde se anichava em almofadas, folheando uma revista ou relendo os seus livros preferidos. Poesia sobretudo. Já o Francisco, tinha uma verdadeira paixão por livros de história, filosofia e ensaios, escritos em Português, quando encontrava uma tradução, que lhe agradasse ou então em versão original desde que em Inglês Francês ou Alemão, línguas que falava fluentemente.
Foi aqui, que decidiu tomar o frugal pequeno almoço, que preparara e transportava num tabuleiro. Olhando os livros, e as fotografias colocadas na secretária, sentia-se menos só. Da secretária, pegou na fotografia do marido, que ela tinha mandado emoldurar, e lhe oferecera de presente, e mirou-a embevecida. A foto, tirada quando ele completara quarenta anos, mostrava o Francisco que ela queria guardar na memória. Elegantemente vestido, cabelo ainda farto mas a ficar grisalho nas têmporas e um discreto sorriso nos lábios e nos olhos. Adorava aquela fotografia e lembrava, quanto lhe tinha custado, convencê-lo a abandonar o ar fechado, que parecia uma defesa, como quem receia que a objectiva lhe roubasse a alma. Maria da Glória, atribuía esta atitude a um reflexo da timidez habitual no marido.
Quando lha ofereceu, lembrava agora com saudade, dissera-lhe:
- Aqui tens a foto, do meu galã favorito, e ele, esboçando um sorriso de agrado comentou que nunca vira aquele actor.

domingo, 21 de novembro de 2010

POLÍTICA? políticos!

El que no se atreve a ser inteligente, se hace político.

Enrique Jardiel Poncela (1901-1952) Escritor español.



Em jeito de despedida, falar não da política mas dos políticos é o último capítulo desta série de textos. Depois, até porque fico nauseado sempre que me lembro do tema, voltarei a escrever histórias depretensiosamente simples, histórias de amor e de desamor, enfim histórias da vida de muita gente.
Como disse o dossier político vai ficar encerrado, pelo menos até eu me recuperar da indigestão, mas antes, quero prestar uma homenagem e expressar o meu respeito pelas Instituições, Presidência, Governo, Tribunais e por fim Assembleia da República.
Naturalmente sei que a ordem Constitucional não é esta que eu indiquei, mas só o fiz porque era aos representantes eleitos pelo Povo que eu me queria, particularmente, referir.
Tenho o maior apreço pelo trabalho dos senhores Deputados. Principalmente por aqueles que nunca falaram, foram dormindo e conversando, e que são, felizmente a larga maioria. Esses ao menos passam e ninguém dá por eles o que só pode ser bom sinal. Por isso, e não é pouco, são credores da minha admiração.
Saúdo com particular apreço e simpatia os Deputados ao Parlamento Europeu. Eu sei o sacrifício que fazem estando lá, apesar de saberem que a eles e a nós ninguém liga nenhuma. Mas deles nunca ouvi uma queixa ou um lamento. Estão ao serviço do Povo e isso justifica todos os sacrifícios.
Na actual Legislatura houve momentos que perduram na memória. Eu não me irei esquecer que, quando assisti, por mero acaso, à transmissão de uma reunião da Comissão Parlamentar de Inquérito a um eventual negócio com a TVI, até pensei que estava a ver um filme com o julgamento de hereges feito pelo Tribunal do Santo Ofício. E fiquei boquiaberto porque, imaginem, até me pareceu identificar o grande inquisidor Torquemada, entre os acusadores.
Não era nada disso é claro, mas lá que parecia, parecia.
E foi nessa altura, que eu reconheci o verdadeiro valor dos senhores Deputados, mudos e sonolentos.

Entretanto oiçam "Vesti la Giuba" da ópera "I Pagliacci", na voz de Pavarotti.




sábado, 20 de novembro de 2010

CONFUSÕES

Quando as ideias que sonhamos se misturam, o resultado é uma enorme confusão, que nos inibe e desmoraliza.
Ontem aconteceu-me isso. Havia tanta coisa que queria falar que acabei por não conseguir articular uma só ideia, por mais pequena que fosse. Nada fazia sentido. Como queria publicar algo, recorri ao baú das recordações, encontrei um texto que já nem me lembrava de ter escrito, dei-lhe uma varredela superficial e aí vai ele.
Hoje, bem ao contrário, acordei com uma ideia bem estruturada sobre o tema que queria tratar.
Todavia, enquanto bebia um café, dei uma espreitadela aos jornais, e houve qualquer coisa que li de relance, que me fez perder, de novo, o rumo. Até nem sei o que foi.
As notícias sobre a cimeira da Nato, não porque não perderia tempo a espreitar notícias que já estava farto de ouvir;
Notícias da crise, não porque essa já é velha, aliás creio mesmo, que tem séculos e na minha modesta opinião, começa com a conspiração e assassínio do Rei D. João II.
Sobre a bancarrota da Irlanda, o país modelo da União Europeia, também não foi porque, em boa verdade, tudo o que é artificialmente construído pode ruir com facilidade e daí não haver surpresas.
Eureka! Achei a notícia que me alterou os planos. Diz o jornal, cito: “ Notas máximas dos procuradores duplicaram em cinco anos.”
Não li o resto da notícia , também não vale a pena, porque todos conhecemos a excelência da Justiça em Portugal.
Eu sabia da qualidade do nossos Magistrados do Ministério Público e só quem não estiver de boa fé, pode deixar de reconhecer os estrondosos sucessos nas investigações que têm conduzido.
Já que estamos a falar de justiça, não posso deixar de saudar como um exemplo, a linguagem duma intervenção que ouvi na TV, do Presidente da Associação Sindical dos Juízes, classificando de roubo e de confisco e não sei que mais uma eventual tributação fiscal do “subsídio de renda” e a anunciada redução salarial. Parabéns senhor Juiz, os termos que utilizou são dignos de um Magistrado de alto gabarito.
Também li de revés que o Jornal Sol terá de pagar ao Dr. Rui Pedro Soares, não sei quantas centenas de milhares de Euros, por ter violado decisões de um Tribunal.
Isso já me custa, não que tenha alguma simpatia pelo jornal, que não leio, mas porque não respeitar uma decisão dos nossos Tribunais, nunca pensei fosse assim uma coisa tão grave. Como o Povo diz, na Justiça "não bate a bota com a perdigota".
Com isto tudo, o tema sobre que pensava escrever varreu-se-me! Também não se deve ter perdido grande coisa.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

UM DIA DIFERENTE PARA UM HOMEM PERDIDO

Os dias eram iguais a tantos outros. A mesma rotina das manhãs, o mesmo trabalho, as mesmas caras, jantar sozinho como sempre e adormecer a ver Televisão.
Tudo se repetia desde há quanto tempo? Já nem se lembrava com exactidão. Fez um esforço e a memória falhou. Sabia apenas que tudo se passara numa noite chuvosa e fria. Só não sabia o quê.
Mas, sabia que foi nesse dia que a sua vida mudou, tornando-se no fastidioso correr do tempo que agora vivia. Sem objectivos, sem projectos, sem dar atenção ao que o rodeava, vivendo dentro de um casulo que pouco a pouco ia estreitando e a que ele se ia moldando, mesmo sem dar por isso.
Por vezes pensava que qualquer coisa tinha de mudar, mas nunca definiu o quê e como.
Os fins de semana eram um verdadeiro martírio. Saía ao sábado para almoçar no mesmo restaurante à porta de casa, comia o que o dono lhe sugeria, depois dava umas voltas num pequeno centro comercial na rua ao lado, via as mesmas caras, olhava as mesmas montras, lanchava na mesma pastelaria onde comia sempre o mesmo bolo sem sabor, passava no super mercado e comprava meia dúzia de coisas para que, no Domingo, o dia de maior solidão,nem ter de sair de casa.
Porém, naquela sexta-feira , um dia igual a tantos outros, sentiu-se mais só no mundo. Estava frio e andava muita gente nas ruas atarefadas de loja em loja. Não percebia o porquê. Andou a vaguear perdido entre a multidão. Sem rumo e sem destino.
Mas o hábito de tanto tempo encaminhou-o para comboio do Cais do Sodré e até saiu em Oeiras como sempre fizera. Chegou a casa.
Estendido no sofá, que era também a sua cama, pois o quarto tinha a porta fechada, nem sabia porquê nem há quanto tempo, olhou para o vazio da sua vida e sentiu que tinha de se reencontrar.
Não tinha recordações, nem memórias, havia um bloqueio que nunca tinha conseguido ultrapassar.
Talvez fugindo do dia a dia, fosse encontrar a memória perdida e para isso era preciso partir.
Encheu-se de coragem, sentou-se a uma mesa e começou a apontar tudo o que tinha de fazer antes de viajar.
Ficou aterrorizado. Até para partir era preciso uma carga de trabalhos.Tinha de vender e acabar de pagar a casa onde vivia; Tinha de negociar com a entidade patronal a sua saída, pois não queria sair por uma porta pequena; Tinha de dar destino aos móveis, e aos livros, às televisões, tinha 3 aparelhos,etc. Isto é muita coisa para a minha cabeça. Desistiu.
Deitou-se mais cedo do que era habitual mas não conseguia dormir. Tomou um, dois comprimidos e caiu num sono profundo.
Mas o sono foi um doloroso pesadelo.
“Fazia nevoeiro, muito nevoeiro, a estrada era estreita mas já estava perto do destino. De repente uma camioneta fora de mão empurrou-o para a beira a o carro resvalou pela encosta íngreme e rochosa, batendo aqui e ali, virando-se uma vez e outra só parando com estrondo num penhasco mais alto. Lutou e consegui sair pela janela. Deu a volta ao carro e foi tentar abrir a porta do lado onde seguia uma mulher, cujo rosto não distinguia.
Consegui retirá-la e com ela nos braços começou a tentar subir declive acima, gritando por socorro. Ninguém ouvia. A subida era difícil, escorregava com frequência e voltava quase ao ponto de partida. Levantava-se e tentava de novo. Por mais duas ou três vezes.
Até que completamente esgotado e enregelado parou junto a uns arbustos, sentou-se e com o casaco tentou aquecer o corpo frio da mulher que transportava nos braços. A voz de tanto gritar já não lhe respondia. Tentou recomeçar a subida, mas não teve forças para mais. Tentou de novo, rastejou mais uns metros e...”
acordou estendido ao lado do sofá.
Estava perdido. Deixou-se ficar deitado, tentando colocar em ordem a sua cabeça. Ensopado em suor e com a visão a ficar nublada. Teve um minuto de discernimento e compreendeu que precisava de ajuda. Por sorte encontrou o norte e acendeu a luz. Caiu e não teve forças para se levantar. Foi rastejando pelo corredor até a porta da rua. Conseguiu pôr-se de joelhos, abrir a porta e sair para a escada. Fez um derradeiro esforço e bateu na porta do vizinho em frente. Depois desfaleceu.
Acordou, sentiu-se preso e quis libertar-se e logo um sinal sonoro começou a tocar. Olhou em redor, tudo era branco e desconhecido. Há sua volta,duas pessoas vestidas de branco tentavam colocar-lhe as ligações que arrancara.
Mas ele sentia-se bem, tranquilo, pela primeira vez em muitos meses. Sorriu para as pessoas e porque as forças lhe faltavam, murmurou:- Obrigado, hoje, finalmente foi um dia diferente. E partiu.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

FUTEBÓIS E FINANÇAS

Todos os especialistas, e há tantos, sabem que o mercado financeiro é muito susceptível em relação a quaisquer notícias, que de de maneira positiva ou negativa, afectem o negócio.
Eu, aqui há alguns anos, frequentei em New York, no já desaparecido World Trade Center, um curso sobre o mercado de futuros e opcões, dado por analistas e corretores da bolsa de capitais.
Quando perguntei como é que eles projectavam a evolução de uma determinada taxa de câmbio, um deles explicou:
-Estudamos os dados macroeconómicos do País em questão; analisamos a situação politica e social, aplicamos a equação de “Black-Scholes” e chegamos a um resultado.
Se ficarmos com dúvidas, molhamos o dedo indicador e procuramos identificar a direcção do vento. Se for Norte/Sul a moeda sobe se for Leste/Oeste desce e se for qualquer outra fica na mesma.
Dito isto, olhou para a nossa cara e riu-se que nem um doido.
É por isso que é preciso falar baixo e ter muito cuidado com o que se diz. Qualquer maluco como aquele é capaz de recomendar um aumento da taxa de juro da dívida soberana e nós cá estamos para pagar.
É por isso que o jogo de futebol Portugal/Espanha de ontem, com um resultado que até fez esquecer muitas amarguras, pode ter tido influência na taxa de juro. Se os lunáticos que fazem análise gostarem de futebol os juros podem ter descido.
Se o analista for daqueles que trabalham com o dedo molhado, e como o vendaval soprou Oeste/Este, o que é que ele terá decidido?


terça-feira, 16 de novembro de 2010

VELHARIAS

Penso que em todas as casas existe uma dependência a que se chama arrecadação. Na minha sim e ela até é bem grande.
O resultado é um acumular de velharias e depois uma enorme dor de cabeça, quando começamos a pensar o que fazer, a tudo aquilo que lá fomos arrecadando, e que na maior parte das vezes até já esquecemos.
Foi pois com surpresa que, dentro de uma caixa de cartão, por entre papelada mais ou menos sem interesse, encontrei três livros, que me transportaram mais de quarenta anos atrás.
Foram os livros que li, reli e voltei a ler, enquanto estive na guerra colonial.
O Autor é o mesmo, Jean Larteguy, e constituem uma trilogia, " Os Centuriões" os "Pretorianos" e os Mercenários".
Não me interessa o valor literário dos mesmos, tampouco a ideologia que defendem, apenas o prazer que me deram e que recordo.
Os livros são sobre três guerras. A da Indochina, da Argélia e da Coreia e as guerras, exerceram sobre mim um fascínio, que vem desde criança.
Sim, eu combati em África, fiz a minha guerra e aprendi muito sobre camaradagem, espírito de sacrifício, coragem e no meu caso, desenvolveu a capacidade de liderança. Não guardo más recordações. A guerra colonial foi o que foi, e só a distância permitirá estudar, com rigor as suas reais consequências. As tentativas que até agora se fizeram, recordo o programa do Joaquim Furtado, pecam pela falta de profundidade e por terem dado o papel principal a Generais e Coronéis, que da guerra, salvo algumas excepções, apenas sabem do que leram. Na verdade os verdadeiros protagonistas Portugueses, foram os mal armados, mal alimentados e mal preparados e por isso magníficos soldados, e os milicianos, Furriéis e Alferes que na realidade a combateram e sofreram.
Da guerra deixo-vos a banda sonora de um filme. Deliciem-se com a melodia

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

UM BOM PRINCIPIO


Já há alguns dias, que a nossa sempre presente e inovadora TV pública, nos vem alertanto, para um programa especial na noite de segunda feira.
-O programa “Prós e Contras” irá debater as eleições para Bastonário da Ordem dos Advogados.
Confesso e faço “mea culpa”, que cheguei a ver alguns dos programas anteriores mas, depressa cheguei à conclusão que os programas ou eram Prós ou eram Contras, as duas coisas ao mesmo tempo é que raramente se viram e porque estava farto de ver a feira das vaidades, bloqueei o acesso.
Mas este promete vir a ser aliciante. Tem todos os ingredientes para ser uma luta de capoeira, cheia de frases feitas na defesa de interesses, mais ou menos ocultos.
E de repente lembrei-me de um filme, datado de 1975, um excelente filme aliás, de Robert Altman. O filme é “NASHVILLE”, capital da música “country” e a história desenrola-se nos bastidores e na cidade, durante a realização do reconhecido festival.
Enquanto vamos ouvindo algumas canções e assistindo ao desenrolar da história, uma carrinha passa de vez em quando pelas ruas da cidade, fazendo campanha eleitoral, em nome de um candidato, “outsider”, à nomeação para a corrida Presidencial.
E recordo alguns slogans que o altifalante da carrinha, que de vez em quando aparecia numa cena, ia espalhando pelas ruas:
“Mais de 80% dos Americanos só sabe o que vai pelo mundo, pelo que vê na televisão;
Mais de 70% dos Americanos nunca leu um livro;
Como é que querem a mudança se:
Dos 450 membros da Câmara dos Representantes, 400 são Advogados!
Dos 120 Senadores, 100 são Advogados!”
Se não era assim, era mais ou menos.
Acontece, que bastante mais tarde, num outro excelente filme, “ Streets of Philadelphia” um advogado, interpretado por Tom Hanks, antes de morrer de sida, se vira para o outro colega, que o defendeu no processo judicial contra a firma de Advogados que o havia despedido, e lhe pergunta: “Sabe o que significa mil advogados, no fundo do mar, com os pés ligados por correntes?
Perante a resposta negativa do colega, explicou ” Significa um bom princípio”.
Oh senhores Advogados, desculpem lá qualquer coisinha.

domingo, 14 de novembro de 2010

ESTA FERIDA ...

Ainda me custa a compreender a razão do grito de desespero e angústia do meu texto do dia 12.
Tudo o que disse era novidade?
Evidentemente, não. Todos sabemos e não podemos esquecer a triste realidade em que vivemos.
Que o mundo está muito perigoso, como ainda há uns dias ouvi alguém referir, isso é verdade. Mas essa constatação não aconteceu de um momento para o outro.
A Sociedade onde coexistem, a mais profunda miséria e degradação com o luxo mais chocante, é palco para o aparecimento de falsos profetas.
Alguns, com uma mão no peito e outra no bolso dos crentes, vendem um porvir celestial;
Outros, ensinam a matar, como o sacrifício supremo e o caminho para a felicidade eterna.
Finalmente, outros que ainda não expiaram os erros e os crimes cometidos ao longo dos séculos, ficam calados e colados ao poder.
Até que, em qualquer País, provávelmente até numa das velhas democracias, surgirá um Salvador, bem no género dos que conhecemos do século anterior. E acreditem, como aconteceu, arrastarão consigo, milhões de seguidores.
Mas se nada disto é novo, porque é que eu me havia de lembrar de o escrever?
Foi preciso mais uma noite de inquietação, para compreender.
Houve um detonador. Novembro, o mês da maior parte dos acontecimentos dolorosos da minha vida foi o fósforo.
Foi em Novembro, do ano passado que eu senti pela primeira vez a minha fragilidade. E isso deixou-se uma ferida que tarda em sarar. Esta ferida ...






sexta-feira, 12 de novembro de 2010

APOCALYPSE, NOW ?

-Andei a lutar para manter a minha decisão de deixar de escrever, como havia anunciado no meu escrito publicado no dia 9. .
Durante esses dias não fiz a barba, para não me ver ao espelho. Tinha medo de ver um cobarde.
Finalmente rendi-me, volto a escrever. Só não sei se sou Eu que escrevo o que penso ou se escrevo o que o outro Eu me segreda. Também não importa.

- Entretanto 30 000 trinta mil crianças morrem em África, por cada dia que passa!
-Sempre ouvi dizer que a noite é boa conselheira. Não sei se será assim, porque tenho passado algumas noites atormentado por insónias. E o que vejo ou revejo nesses longos períodos nocturnos, dói-me.

Na Índia morrem diáriamente mais de 5 000 crianças, por subnutrição e doenças daí resultantes.
Entretanto no mesmo período o número de milionários Indianos duplicou!

-Uma maldição caiu sobre a a Sociedade em que vivemos e que nós criámos. E teimamos em não ver, esse vírus que corrompe, que não tem contemplações e arrasa tudo o que encontra. Não se sabe donde vem, mas não é obra do Diabo, coitado deste, é sim uma criação do homem. Não, não falo de Sida, ou da gripe suína, falo de algo muito mais perigoso, falo do Deus Mercado, que nasceu cresceu e se multiplicou com a Sociedade Global.

Na China o número de milionários triplicou nos últimos meses; dados sobre a pobreza, e saúde das crianças não são divulgados!-
E eu tão preocupado com o “escrevo não escrevo”, nem me dava conta.
Olhamos para o mundo que nos rodeia e que todos os dias entra em nossas casas, e vemos os mais ricos, G20,a discutirem entre si, uma ou outra mudança, para que tudo fique na mesma.

Entretanto no Bangladesh , enquanto alinhavo estas palavras, já morreram de fome ou doenças dela derivadas 1000 crianças.
Então, para onde é que caminhamos? E quem é que nos vai conduzir para evitar a catástrofe?
-Os Europeus, gordos e ociosos, que já nem sabem procriar, vivem numa sociedade doente, cheia de velhos temerosos e jovens desesperados, sem presente e sem futuro, governados por uma Contabilista Alemã e um xenófobo Francês. Os outros só são convidados para aparecerem na fotografia, não serão com certeza;
-Os Americanos entrincheirados nas suas tradições cada vez mais conservadoras, envolvidos em guerras de desgaste, e com a economia cheia de problemas, nunca aceitarão a responsabilidade de domar o monstro;
-Serão os Chineses ou os Indianos a fazer alguma coisa, só acredito vendo como S.Tomé.
Por isso eu, que só sei que nada sei, pergunto? -O Apocalypse é now, or later? Ainda bem que decidi voltar a escrever. Pode ser que o tempo em que escrevo me faça esquecer que eu, também tenho responsabilidades. Aliás, você também tem.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

E O FIM


Pois é. Quando se começa algo há um tempo para fazer, e outro para parar e pensar. Será que o caminho escolhido é o mais certo?
É verdade que este momento de escolha é sempre difícil. Para mim, pelo menos, foi.
De um lado o Eu racional, que vive e sente e do outro o Eu imaginário, que sonha. Este é o meu amigo John Doe.
Quando o conflito entre os dois é muito equilibrado, uma frase, um gesto, pode fazer cair a balança para um dos lados. Foi o que me aconteceu.
Há dias uma amigo, que talvez só por isso, leu alguns dos meus escritos, encontrou-me e disse que estava a gostar porque o conto "O Carteiro que Gostava de Cartas de Amor" que fui publicando em fascículos, digamos assim, lhe fizera lembrar aquele célebre folhetim radiofónico, bastante antigo, e que era conhecido como "O Romance da Coxinha", patrocinado na altura por uma conhecida marca de detergente. Este não era o nome verdadeiro mas foi o que ficou.
Eu ri, mas, confesso foi um riso muito amarelo.
É que eu também me lembrava daquele folhetim e vendo bem as coisas, pelo lado da razão, esquecendo o lado emocional, e meu amigo tinha razão.
Foi o desequilibrador.
Assim meu amigo John Doe, perdeste. Vou parar porque tomei consciência de que, se quero escrever só para mim, então devo guardar num arquivo.
Ao despedir-me, deixo-vos um adeus e um muito obrigado e, façam o favor de ligar o altifalante e ouvir o vídeo que junto. Afinal, " Avec le temps, va tout s'en va", como diz o poema de Leo Ferré.








segunda-feira, 8 de novembro de 2010

OCASO




Tinha sido um dos tais dias. Dia de reunião do CA para analisar o 1º. Semestre e previsões para o segundo.
Começara pela manhã com apresentação e discussão sectorial. À volta da mesa, sobraçando dossiers e portáteis com dados, gráficos, mapas, power point,etc. todos os chefes de divisão. Cada um defendeu os números que apresentava, mas com nervoso pouco habitual. Afinal todos estavam muito longe dos objectivos a que se tinham comprometido, para poderem beneficiar dos prémios. Ensaiavam desculpas esfarrapadas, quando qualquer pessoa com bom senso sabia que os objectivos, eram uma utopia.
Depois dum almoço ligeiro a reunião com a Comissão Executiva.
Ao tomar conhecimento da situação do negócio o CEO chegou à conclusão habitual. Virando-se para o Director Financeiro e com toda a distância e frieza que lhe eram peculiares, determinou:
- É preciso cortar nos custos fixos, promovendo a reestruturação dos serviços administrativos, implementando a estratégia de serviços partilhados, devendo muitos deles serem prestados em regime de out-sourcing e em consequência promover a redução do número de funcionários.
Ainda pediu a palavra para contestar a decisão mas, todos os intervenientes aliviados por terem encontrado um responsável, aplaudiram a decisão do Chefe. Como era vindo a ser prática corrente.
Sentiu-se cansado sem força anímica. Queria chamar a atenção para os verdadeiros problemas da Empresa mas as palavras saíram-lhe enroladas e sem força. Desistiu.
Entrou no gabinete transportando os dossiers que deitou para cima da secretária. Sentou-se na poltrona, respirou fundo e cerrou os olhos.
”É preciso reduzir os custos com o pessoal. Apresente-nos as projecções para o fim do ano já com os resultados das medidas que vai tomar. Corte a direito.” Estas palavras martelavam-lhe a cabeça e feriam-lhe os sentidos.
A cabeça latejava e parecia rebentar.
O sr. Doutor precisa de alguma coisa? Perguntou da porta entreaberta a solícita secretária.
Não, tudo bem. Traga-me um copo de água e depois pode sair. Tenha um bom fim de semana.
As dores de cabeça iam aumentando a cada momento.
”É preciso cortar nos custos. Tem de reduzir o seu pessoal. Refaça as contas e ...,” mas será que não consigo ter um momento de paz, perguntou-se? Agitado e perseguido pelos pensamentos levantou-se e começou a caminhar na sala de parede a parede. Parou um pouco,bebeu um golo de água.
Aproximou-se da janela. Abriu os estores e olhou para o sol que mansamente se escondia no horizonte.
Tem graça, pensou, ocupo este gabinete à mais de quatro anos e nunca me tinha apercebido da beleza da paisagem.
Voltou para a cadeira, virou-a no sentido da janela, continuou a olhar o lento esconder do sol, e as nuvens esfarrapadas que se iam docemente deslocando, como barcos à vela, navegando à bolina.
”É preciso reduzir custos e promover despedimentos. É preciso....”
Mas esta dor de cabeça que não me larga! Fechou os olhos e sentiu algum alívio. Abriu uma gaveta da secretária e remexeu procurando uma embalagem de comprimidos que se lembrava de ali ter guardado.
Encontrou, meteu um, dois, talvez mais na boca, empurrou com água.
Sentiu-se melhor. Ajeitou-se melhor na cadeira, abriu os olhos procurando as nuvens ou seriam barcos? que tinha visto no horizonte.
O sol mergulhou e dele apenas via alguns raios que tingiam de diversas cores o céu.
Uma luz intensa, de cor indefinida, parecia guiar os barcos ou seriam nuvens? por um caminho estreito e escuro.
Cerrou lentamente os olhos, a luz continuava a indicar-lhe um caminho pelo qual se ia deixando, levemente, transportar e a dor de cabeça ia desaparecendo. Sentiu-se ausente mas feliz.
A cabeça descaiu sobre o peito. A respiração foi ficando suave, tão suave que nem se sentia. Deixou-se ir, nos barcos do seu imaginário. Flutuando leve, leve como uma pena embalada pela brisa.

Fim

sábado, 6 de novembro de 2010

PORQUE HOJE É SÁBADO

Porque hoje é sábado, não há nada para ninguém. Não trabalho.
Sim, porque isto de gastar algumas das poucas células que me restam, tem de ser bem gerido. Eu não quero ter de vir a pedir ajuda para recompor o sistema, até porque o preço das ideas está pelo hora da morte.
Por isso, desculpem os meus simpáticos leitores, em Portugal e em Singapura, isto não é piada, mas se quiserem ler qualquer coisa de interessante, terão de recorrer a outra fonte. Eu sei que não é tarefa fácil, mas fiz algum trabalho para vocês.
Convido-os a ligarem o altifalante, verem o vídeo do YouTube que se segue e ouvirem, em silêncio, este belo poema de Vinicius.
Acreditem em mim, só ganharão com a sugestão.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

AO ARREPIO

Estou cansado. Ontem, já não estava grande coisa, mas mesmo assim, ainda encontrei no fundo do baú de recordações, qualquer coisa sobre que escrever.
Hoje ainda tentei esgravatar o passado, à procura de algum episódio que merecesse a pena contar, mas foi o vazio. Página em branco.
Entretanto, para mal dos meus pecados, abri a Televisão enquanto almoçava.
A náusea e a repulsa que senti, ao ver o que certas pessoas dizem e fazem para ganhar a vida, foi tão grande que me revoltei comigo mesmo. Quem é que se lembra duma coisa assim,ver Televisão? Só alguém que não esteja no seu perfeito juízo.
Aliás, para mim, ver televisão devia pagar um imposto!
Para isso bastava que cada aparelho incluisse um “chip”, para registar o início da recepção, e as horas a que foi feita a ligação.
Como tanto se fala em inovação tecnológica, o mesmo “chip” também serviria para controlar as audiências e para os Sociólogos estudarem os gostos televisivos dos expectadores, além de que, poderia contribuir para uma melhoria do meio ambiente, com a diminuição do lixo tóxico.
O imposto que proponho, teria de ser devidamente graduado, isto é, não pode ser igual para todos os programas e conteúdos. Tem que haver uma discriminação positiva.
Por exemplo, os noticiários e os programas de debate político, deviam pagar uma taxa elevada, pela poluição que provocam. Pelo contrário, as transmissões dos debates na Assembleia da República deviam ser livres de impostos, dada a sua elevação, a sua relevância e o facto da TV não dar circo já há muito tempo.
Os programas de entretenimento, eu não sei bem o que isso é, mas acho que também devem pagar, excepto se forem transmitidos depois das duas horas da manhã e com bolinha encarnada, pois claro.
Resta o futebol e as telenovelas. Ficavam isentos, também não podemos ser fundamentalistas.
Este imposto que defendo, só tem um contra. Pode aumentar o desemprego entre os comentadores, os especialistas disto e daquilo e os aparentados.
Pode parecer uma ideia idiota, provávelmente até é, mas que era uma ajuda ao combate ao défice é evidente e, principalmente, uma ajuda à saúde mental dos Portugueses.
Ai o que me havia de dar! Senão arrepio caminho onde é que eu vou acabar?

J. Ariemal

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Relembrando

Há dias assim. Só nos vêm à memória recordações, faço mesmo sem dar por isso uma triagem, que são normalmente coisas que gosto de relembrar.
Dei por mim a fazer este tipo de raciocínio, quando li há dias, no blog que sigo, http://numaparagemdo28.tumblr.com, um artigo sobre o cinema Português.
É que muitas das minhas lembranças têm a ver com a sétima arte. Não necessáriamente com o cinema que cá se fazia.
É certo que desde muito novo, criança ainda, pois não havia classificação de filmes, fui habituado a ir ao cinema na companhia de familiares muito próximos. Íamos ver os filmes que eram projectados na nossa cidade, fosse no cine-teatro, bem bonito que está encerrado há muitos anos, mas principalmente no cine-parque ao ar livre, que hoje deve servir de armazém para qualquer coisa, que não sei nem me interessa.
E vi de tudo. Desde os filmes de corsários, género Gavião dos Mares filmado em 1940, e dirigido por Michael Curtiz, que voltei a encontrar, bastante mais tarde, no inesquecível Casablanca, até, calcule-se alguns dos dramas do cinema italiano, como “Arroz Amargo”e principalmente o “Céu Sobre Pântano”, filme que procura retratar a vida de Maria Goretti, posteriormente canonizada. Foi este o filme que mais me impressionou e não esqueci a cena em que o criminoso persegue a vítima, à volta de uma mesa, levando uma faca na mão. O resto não sei porque, por medo, devo ter fechado os olhos.
O gosto pelo cinema ficou e até hoje, o cinema italiano está muito bem representado na galeria dos meus filmes preferidos, com filmes que vi e revi mais tarde, que foram considerados como pertencendo à época do Neo Realismo Italiano, como “a Terra Treme” de Visconti, “Roma Cidade Aberta” de Rossellini e “Ladrões de Bicicletas” de De Sica, e que hoje fazem parte, com muitos outros, da história do cinema. Foi o apogeu do cinema transalpino, penso eu.
Ainda hoje são italianos dois dos filmes que mais gosto, “O Homem das Estrelas” e “ Cinema Paraíso”, ambos de Giuseppe Tornatore.
Uma pessoa amiga, conhecendo o meu interesse pela história do Império Romano, sempre me lembrava, que o local onde poderia admirar o maior conjunto de monumentos desses tempos, era a Sicília, a Magna Grécia. E ela tinha razão, como já pude comprovar.
Aliás, eu não consigo dissociar o meu gosto por muitos filmes do cinema Italiano, daquela mal afamada, mas tão bela, ilha dos três mares.
Desde logo os filmes de Visconti, a "Terra Treme" e "O Leopardo",
"Stromboli" de Rossellini e posteriormente os filmes de Tornatore, ele mesmo um Siciliano.
Até admito que foi a vontade de conhecer a ilha de Stromboli, onde Rossellini filmou, com a inesquecível Ingrid Bergman e onde ainda está de pé a casa que os mesmos partilharam, que me levou a aceitar fazer algo que não gosto muito. Andar de barco.
Na ilha, ainda desembarquei, mas à casa, o enjoo já não me deixou ir, e fiquei com pena.
Também não conhecia o filme “O Homem das Estrelas” mas, curiosamente, numa noite em que regressei duma viajem de trabalho a Messina, Sicília, vi na TV o filme pela primeira vez. E não mais o esqueci.
Ah como é bom lembrar, filmes que me marcaram, numa altura em que me parece haver uma quebra de qualidade, especialmente, nos filmes exibidos no circuito comercial.
J.Ariemal

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

O Carteiro que gostava de cartas de amor

NOTAS FINAIS
Quando nos sentamos em frente ao computador, com intenção de escrever qualquer coisa, nem que seja uma pequena nota ou história, raramente se consegue. Eu pelo menos não funciono assim.
Quando o tento fazer, fico bloqueado e a página em branco lá fica a atormentar-me.
Normalmente penso e escrevo os textos na minha cabeça e só depois os tento passar ao computador. Deixei de usar um “note book”, porque o pensamento é muito mais rápido que a mão e quando acabo de escrever, não percebo nada dos palavras garatujadas.
Esta explicação, vem a propósito do conto que ontem acabei de publicar, tão despretencioso como o seu autor, mas que tem por base uma outra história.
É sobre essa outra história, que devo e quero falar.
O tema foi sugerido por uma pessoa amiga, e outras duas , que são muito importantes para mim, convenceram-me, melhor dito, arrancaram-me a promessa, de que escreveria um conto, com esse tema.
Eu sei que o fizeram não pelas minhas qualidades literárias, mas porque ambos sabiam que o desafio feito a uma pessoa, que estava 24 horas encerrado numa casa de vidro, durante mais de uma semana, vendo apenas pessoas protegidas com capas, toucas, luvas, máscaras e protecções nos sapatos, quer dizer num quarto isolado dum hospital, era uma forma de o despertar para a vida, apagar os maus pensamentos e fazer funcionar a máquina cerebral. E resultou.
Portanto este conto foi escrito na minha cabeça uns meses antes de o passar a letra de forma.
Para essas pessoas que me são tão queridas, aqui vai agora o meu reconhecimento. Não digo, mas elas quando e se me lerem, sabem a quem me refiro.Obrigado por terem insistido. Se o resultado não é o que se podia esperar, tem pelo menos o mérito de ter sido escrito com muito amor e com alguma lágrima de permeio.
Também foi importante e por isso saliento, a presença permanente da companheira de uma vida. Esta história, também lhe deve muito.
Naturalmente, alguns dos poemas com que as cartas de amor são ilustradas, foram escritos bem depois do ano de 1954, ano em que as cartas estão datadas.
Mas isso é uma liberdade minha, até porque penso, que a poesia é intemporal.
E, afinal, uma questão de anos que importância poderá ter?

terça-feira, 2 de novembro de 2010

O Carteiro que gostava de cartas de amor

14 – TRÊS ANOS DEPOIS

Trabalhou febrilmente para concluir os seus estudos na Faculdade de Letras de Coimbra e licenciou-se com uma das notas mais altas que havia registo.
Todavia nada na vida o distraía do seu propósito. Esquecer o passado e olhar o futuro. Não se havia adaptado à cidade. Sempre se sentira um intruso e tinha consciência que ele tinha sido o principal, senão único, responsável. Afinal, perdera-se porque não tinha tido força para resistir a espiar a vida dos outros. E isso teve um preço.
Já não lembrava o espírito inquieto que o havia levado e tentar encontrar o mundo que se escondia para lá do horizonte. Pior do que isso, era que nem sequer o havia tentado.
Decidiu voltar a Trás os Montes, como prometera, e lá sem o brilho e as luzes da cidade,mas com a tranquilidade dos grandes espaços, recomeçar a viver e partilhar o saber.
Para o conseguir decidiu optar pela carreira do ensino. Foi por isso que aceitou ser um simples professor de Português no Liceu de Vila Real.
Antes de partir, voltou ao Porto para se despedir dos Tios e confirmar que as feridas estavam cicatrizadas. Deu uma volta pela cidade e à tarde entrou no café Majestic, sítio que ele nunca mais esquecera. Estava cheio, já fazia algum frio, naquele fim de Setembro de 1957. No café já se ouvia falar do desentendimento entre o Craveiro Lopes e o Salazar. A expectativa era grande.
Dizia-se, sem medo, que a oposição iria apresentar o General Delgado como candidato e que Salazar não iria manter a confiança política no anterior Presidente e se preparava para levar a votos uma figura apagada e obediente, chamada Américo Tomás.
Mas a política não era assunto para ele. Contudo não podia deixar de reparar que havia muita agitação e que as pessoas começavam a perder o medo de falar. Algo se anunciava.
Ia sair do café, quando sentiu uma mão tocar-lhe no braço e uma voz de mulher perguntar:
- Ainda se lembra de mim?
Estemeceu, mesmo sem olhar reconheceu a voz e por momentos temeu o retorno dos velhos fantasmas. Sim claro que me lembro D. Maria Madalena, respondeu com voz trémula.
Olhou para ela, mas como estava mudada. Os cabelos esbranquiçados e revoltos, o rosto magro onde sobressaiam os olhos grandes mas pardacentos. Parecia uma figura de cera, frágil, açoitada por um vendaval.
- Foi neste café que falámos, já lão vão uns anos, acrescentou. Mas como o tempo passa por nós não é verdade?
- Sim, o tempo não perdoa. Aliás a vida também não.Vejo que está de saída e eu também. Faça-me companhia e andemos um pouco pela cidade, pediu Maria Madalena.
Andaram sem destino e em silêncio, até que Maria Madalena, virando-se de frente para ele diz:
- Sabe, Felizberto, vou confessar uma coisa que já não tem importância. Eu sabia que o senhor lia a minha correspondência com o André. Desconfiei quando o vi rondar uma morada das que eu utilizava para receber as cartas, confirmei quando me apercebi que as cartas que recebia eram abertas e fechadas um pouco desajeitadamente, mas nunca lhe quis mal por isso. Ao menos tive uma testemunha do nosso sofrimento, alguém que, se não fosse insensível, também compreenderia as nossas amarguras.
Felizberto sentiu um calafrio percorrer-lhe o corpo. Estremeceu, mas não tentou negar. Assumiu e respondeu:
- Sim li e vivi, de que maneira, todas as cartas do vosso amor. Ter aberto a primeira carta foi um acidente e depois foi o caminho que me ia levando à perdição. Demorou muito tempo, a luta que dentro de mim se travou. De um lado a inexperiência de vida e o prazer ingénuo que me dava a leitura das vossas cartas de amor. Do outro a necessidade mórbida de me alimentar com os vossos segredos e o vosso sofrimento.
Tinha guardado cópia de tudo o que tinha lido, das cartas e dos poemas. Eram o meu tesouro escondido. Quando me senti à beira do abismo, e regressei a casa como o filho pródigo, fechei tudo numa pequena caixa que lançei ao Rio, pedindo que as águas a levassem à vossa praia. Com ela lancei ao Rio a chave e uma grande parte da minha vida. Demorei muito tempo, mais de três anos, a esquecer aqueles meses terríveis que, confesso, deixaram feridas no meu peito, que só agora estão cicatrizando.
Sentaram-se num banco de jardim. Maria Madalena pegou na mão de Felizberto dizendo:
- O destino é cruel, muito cruel. Afinal não fomos só nós, os amantes trágicos, os que tanto sofremos. Também fizemos sofrer a quem teve a sensibilidade de nos ouvir ou ler. Peço perdão.
- Isso não, Maria Madalena, não me peça perdão. Sou eu que queria e deveria fazê-lo. Eu fui o intruso na vossa vida. E dessa culpa nunca me irei esquecer.
Soube pelo seu Pai que teria ido trabalhar para Paris. Na altura fiquei feliz. Agora, nem tenho coragem para perguntar o resto da vossa história e não sei sequer se terei forças para a ouvir.
- Não, Felizberto, não vale a pena. Quando, ao fim de tantos anos conseguimos algo com que sonhámos, parece que o destino se compraz em destruir tudo. As cartas de amor, que foram o nosso alimento, não mais serão escritas. Só lhe digo que quando se nasce trazemos ou não uma estrela. A estrela da vida. Eu nunca encontrei a minha, desde aquela noite em que me despedi do André, na praia dos nossos sonhos. Em que perdi o norte e me perdi.
Quando o muro se me abriu foi tarde. Paris foi apenas o enterrar definitivo dos nossos sonhos. O ruir de tudo, o ponto final. O corvo negro apenas foi o mensageiro.
“Tudo o mais foi naufrágio”, lembra-se?.
Sem dizer mais nada levantou-se cambaleando, e desapareceu na névoa que começava a cair sobre a cidade. Felizberto parecia ouvir, ao longe um ruído estranho, parecia ser um chorar às gargalhadas.
Levantou-se. As mãos estavam frias pelo que procurou o calor dos bolsos do casaco. Encontrou um papel dobrado. Abriu e reconheceu a mão trémula que o havia escrito. Maria Madalena, deixara-lhe, escondido no bolso, um adeus de despedida.
Hesitou. Teve medo de reabrir feridas recentes. Compreendera que os dois amantes, cujo tormento acompanhara, não se tinham reencontrado.
André teria tido a morte pressentida; Maria Madalena a loucura de continuar a viver despida de sonhos. Como um náufrago.
Desdobrou o papel, sentia que lhes devia isso. Mais um poema. E à luz do candeeiro da rua, sentindo o vento frio que lhe apagava a chama, que de novo lhe incendiava o corpo, parou e leu o poema final.



O CORVO

Quando o meu corvo, trémulo, doente,
-Como quem sofre as minhas agonias-
Naquela noite veio, amargamente,
Dizer-me, soluçando, que morrias,

Percebi-lhe no olhar as nostalgias
Da noite negra, sem luar, fremente,
Aonde as suas asas luzidias
Tomaram cor misteriosamente...

E à luz medrosa do candeeiro exausto,
Bebendo a minha dor num longo hausto
Mais triste que o soluço das nortadas,

Analisei a mágoa de nós dois
Para ver qual sofria mais ... depois ...
Céus! Desatei chorando, às gargalhadas!
(José Duro)

Dobrou o papel, guardou-o no bolso como quem guarda uma recordação, uma memória. Deambulou pela noite fria e húmida. O romper do sol, ainda tímido deu-lhe algum alento. Seguiu na sua direcção e encontrou o seu caminho de regresso a casa.



F I M
J. Ariemal
Agosto, 2010

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

O Carteiro que gostava de cartas de amor

12 – O FILHO PRÓDIGO

Felizberto, arrumou os papéis, pegou uma caixa de madeira com uma pequena fechadura, onde guardava cópia das cartas e dos poemas, que havia interceptado entre os dois infelizes amantes e levou-a com ele. Queria ler pela última vez e depois lançá-los ao rio, para que este os levasse à praia dos sonhos.
Os tios estavam de férias no Minho e assim foi-lhe fácil arrumar as poucas coisas que possuía, numa velha mala de cartão e tomar o transporte para o regresso a casa. A camioneta parou para almoço num parque perto do rio Douro. Passeou ao longo da margem, fechou à chave a pequena caixa com os seus segredos, e largou-a na corrente. Ela flutuou e na curva do rio, muito lentamente, afundou-se. Depois pegou na chave, levou-a aos lábios e lançou-a à distância. Por momentos ficou olhando o rio que transportava parte da sua vida e sentiu um aperto no coração, como quando se perde alguém que se ama. A seguir, inclinou-se junto à margem, e com as mãos em concha, lavou o rosto, para disfarçar as lágrimas que não conseguira conter.
Chegou a casa como um filho pródigo. Em silêncio de mãos vazias e coração ferido.
Começara a escurecer, entrou e foi encontrar a Mãe deitada sobre a cama, de olhos fechados e com uma respiração tão suave que quase nem ouvia. Ia sair quando esta o chama e lhe estende a mão. Felizberto, apertou-a com força entre as suas, mergulhou o rosto no peito que o criara. Não soltou uma lágrima mas ficou assim até que a Mãe lhe levantou a cabeça e se fixou nos seus olhos.
- Meu pobre filho, murmurou, como é que a vida te tratou tão mal? Não, não digas nada. Voltaste para te despedires da tua velha Mãe, e isso é que importa. O resto, as tuas dores, os teus desenganos vais ter de ser tu a resolver. Eu já cá não estarei para te ajudar. Olha meu filho, vê se te lembras duma história bonita, daquelas que me sabias contar, para me fazer sonhar e dar conforto na viajem que se aproxima.
Felizberto, sentou-se na cama e quase sem dar por isso pôs-se a dizer, lentamente e com a voz entrecortada por soluços, “uma história de amor feliz”.

“Ela Chamava-se Madalena como a companheira de Jesus, ele dava pelo nome de André, um dos seus discípulos.
Eram jovens de dezoito anos quando se conheceram. Prometeram-se um ao outro para toda a vida e sonharam uma vida feliz.
Mas sonhos são sonhos e por vezes a realidade é cruel.
Madalena era filha de gente rica e importante e ele, orfão de Pai, era pobre entre os pobres.
Decidiram enfrentar as críticas e as desaprovações. Juntos sentiam-se capazes de saltar as barreiras, derrubar o muro que os cercava e alcançarem o direito a ser felizes. Mas o muro era demasiado alto e separou-os durante muitos anos. E eles ficaram sós, vivendo cada um em seu mundo.
Lutaram, sofreram a dor da ausência e da saudade. Mas nunca traíram o amor que tinham jurado. E, finalmente, puderam encontrar-se. O amor venceu, a esperança não foi uma ilusão, e eles foram felizes para sempre. “

Quando acabou, cerrou os olhos da Mãe, e quando lhe pareceu ver nos lábios um sorriso de tranquilidade, deixou que finalmente as lágrimas lhe corressem. Em silêncio, pediu perdão a Madalena, mas tinha a certeza que ela compreenderia a bondade da história que acabara de contar.
Esteve assim, imóvel e sofrendo, até ouvir o barulho duma motoreta que parava à porta. Uma voz de mulher jovem chamava:
- D. Lucília, sou eu a Amélia, venho trazer-lhe a ceia. Posso entrar?
Felizberto, levantou-se saiu e viu uma rapariga com um cesto na mão. Quando o viu, a rapariga percebeu no seu olhar que a amiga já não estava entre eles. Sentou-se num banco debaixo da figueira, pousou o cesto, tapou a cara com as mãos e começou a soluçar :
- Pobre D. Lucília, dizia em voz baixa, ela pressentira que a sua hora ia chegar, pois ontem quando nos despedimos, deu-me um abraço tão forte como se fora o último, formulou um desejo e fez um pedido. O desejo era ver o filho e o pedido era para eu tomar conta dos animais.
Enxugou as lágrimas, olhou para o homem na sua frente e perguntou?
– O senhor é o Felizberto o filho da D. Lucília, não é verdade? Ela estava doente já há muito tempo mas não queria que o filho soubesse, porque não o queria fazer sofrer. A sua Mãe só teve um objectivo na vida, vê-lo feliz. Ainda a encontrou com vida?
Felizberto acenou que sim e que foi ele que lhe cerrou os olhos. Foi sentar-se no seu antigo lugar, olhando para o horizonte que já mal se percebia.
Agora estava só no mundo e devia à memória da sua mãe a lição por todos os sacrifícios e humilhações que ela tinha enfrentado, sózinha. E ele chegara mais pobre e só do que partira.
- Voltou-se para a rapariga e pediu desculpa:
- Eu nem a cumprimentei, e em boa verdade nem sei quem é a menina!
- Chamo-me Amélia, e não me chame de menina porque tenho a sua idade. Há cerca de um ano, vim viver com a minha Mãe doente, naquela casa junto ao moinho. Dava-me muito bem com a D. Lucília e era a ela que eu recorria para me dar uma ajuda quando eu precisava ou para me dar um consolo quando, nos momentos de fraqueza, não tinha nem força nem vontade para continuar a cuidar da minha pobre doente. Ela falava-me muito do filho, que tinha ido para a cidade e que lá tinha um trabalho muito bom, andava na universidade e tinha muitas amizades. Quando mo dizia tinha no rosto, precocemente envelhecido, um sinal de tanto orgulho e felicidade. Mas se ela tivesse visto, como eu vejo agora, o seu rosto macerado e os seus olhos baços, duvido que acreditasse na sua felicidade.
- Mas Amélia, ela ainda viu e isso dói-me mais do que tudo. Saí daqui disposto a conquistar o mundo. Volto vencido, despojado dos meus ideais e de coração vazio.
Felizberto acompanhou o corpo do ente querido, até há última morada. Quando o caixão desceu à cova, pegou num torrão de terra dura e áspera que esfalerou e espalhou pela sepultura. Como oração dizia, baixinho, “da terra nasceste e a terra te reclama”. Ao mesmo tempo, embrulhando uma flor silvestre, lançou à cova, um poema que havia copiado e guardava no bolso.

(SÃO MORTOS OS QUE NUNCA ACREDITARAM)

São mortos os que nunca acreditaram
Que esta vida é sómente uma passagem,
Um atalho sombrio, uma paisagem
Onde os nossos sentidos se poisaram.

São mortos os que nunca alevantaram
De entre escombros a Torre de Menagem
Dos seus sonhos de orgulho e de coragem,
E os que não riram e os que não choraram.

Que Deus faça de mim, quando eu morrer ,
Quando eu partir para o País da Luz,
A sombra calma de um entardecer,

Tombando, em doces pregas de mortalha,
Sobre o teu corpo heróico, posto em cruz,
Na solidão de um campo de batalha!

(Florbela Espanca)

Passou os restantes dias de férias percorrendo os caminhos das suas recordações de infância. Esse voltar às origens, deu-lhe uma tranquilidade de espírito que já não sentia havia muito tempo. Depois procurou Amélia. E frente a uma jovem em lágrimas, disse:
- Não chores. A minha Mãe levou-te no coração. Eu não posso, não tenho coragem para te dizer mais nada. Só um pedido. Espera por mim. Eu vou voltar.
No final do mês de Setembro, e como se havia comprometido, assistiu à tomada de posse do novo Director. Para surpresa de todos, recusou o lugar de sub-director e aceitou um lugar bem mais modesto em Coimbra. Era agora um simples carteiro.