quarta-feira, 30 de maio de 2012

SIMÃO & COMPANHIA




Amanlis
GRAÇA MORAIS
Tapeçarias de Portalegre | Centro de Arte Contemporânea Graça Morais

Câmara Municipal de Lisboa
Portugal

5 - O Plano

- A voz sumida, entrecortada pelo cansaço de uma noite em branco. Mas falava como se estivesse ausente, dizendo algo e pensando outra coisa. Estava visivelmente perturbado, e as palavras eram um murmúrio:
- Tenho estado a pensar no Carlos e nas suas dúvidas. Eu sempre pensei que ele não as tinha, parecia sempre muito positivo mesmo quando os exemplos que todos os dias vimos retratados na comunicação social, são o espelho duma geração perdida.
Luís virou-se para o amigo dizendo:
- Oh Frederico, não te preocupes com o Carlos. Vê bem, a família não tem problemas económicos, nunca lhe ouvimos contar qualquer tipo de exigências, sempre foi um bom aluno, nas matemáticas o melhor, e seguir Engenharia como ele escolheu, tudo vai dar certo. Aliás, eu continuo a pensar que as dúvidas, os erros, o caminho trocado são características de quem cresceu num ambiente familiar disfuncional. Eu conheço a família do Carlos, o Pai sempre disposto a conversar sobre os caminhos da vida e a dar conselhos de quem fala por experiência própria, a Mãe presente, sorrindo e tendo sempre uma palavra ou um gesto de carinho para os amigos que ele convidava.
O Carlos tem tudo para triunfar na vida, apesar do seu feitio insolente, não é egoísta nem indiferente ao mundo que o rodeia.
- Poderás ter razão mas eu penso que o Carlos não é a pessoa decidida que aparenta. Toda a sua frieza e por vezes até desagradável conversa, é a forma que ele encontrou para se esconder. Não tem uma personalidade complexa mas tem um complexo de inferioridade. Naturalmente nem ele sabe porquê. Mas estás enganado, a insegurança do Carlos nada tem a ver com o ambiente familiar pois, acredita, todas as famílias têm os seus momentos, as suas virtudes e os seus segredos e nada têm a ver com o dinheiro que se tem ou não tem, responde Frederico.
Faz uma pausa prolongada e depois com a voz trémula, continuou.
- Tu, por exemplo, consegues jantar com o teu irmão e com a tua Mãe, sentes que o teu irmão está a caminhar para o abismo e que a tua Mãe cansada, chora em silêncio. Mas entre os três há carinho, amizade e preocupação. Não há segredos.
 Enquanto eu, na minha casa de rico, vivo e tomo as refeições sempre sozinho. O meu Pai come fora, diz que é pelo trabalho, e a minha Mãe toma as refeições numa pequena mesa da sala contígua ao quarto, vendo programas de televisão. Ela não trabalha, tem uma mulher para a ajudar e que vai todos os dias da semana. Vive desligada de tudo e nem se lembra de que tem um filho com dezassete anos. Todos os dias sai para fazer compras, mas de objectos pessoais ou coisas sem importância e depois vai à missa do meio dia. Só aquela, porque é celebrada pelo Padre que ela mais gosta. Reza e vem para casa, para o seu canto, para que ninguém dê por ela.
Pouco lhe importa o que eu como, com quem ando, onde durmo, quando não regresso a casa. Nunca me disse para convidar amigos, nem no meu aniversário. A última vez que me lembro de ter tido uma festa em casa com os colegas estava a entrar na primeira classe.
Nestes anos passados e vão mais de dez, alguma coisa se passou e eu nunca me apercebi. Deixei de ter Mãe a quem contar as minhas dúvidas, encostar a minha cabeça e receber uma carícia. Aprendi a respeitar o seu silêncio sem nunca ter procurado saber porquê. E acredita, nunca a vi chorar, mas acredito que a dor está mesmo à flor da pele.
 O meu Pai dá-me uma mesada generosa, por vezes um sorriso fugidio e pronto, o seu papel, a sua responsabilidade termina aí.
E no meio estou eu, o teu amigo Frederico, perdido numa casa grande como grande é a minha solidão a minha tristeza e a minha angústia.
Trocava contigo, talvez eu não fosse capaz de ter a força que tu demonstras ter mas, tenho a certeza, seria mais feliz. Sabia o que fazer e por quem.
Luís levantou-se, entrou na tenda e trouxe um maço de cigarros e mais duas garrafas de cerveja.
- A tua confissão despertou-me a vontade de beber mais uma cerveja e fumar mais um cigarro. A bebida tem servido também para soltar a nossa voz. Eu sinto que hoje, ao fim de tantos anos te conheci e me sinto mais amigo, mais próximo. Brindemos à vida e ao futuro. Ao meu, ao teu, ao nosso!
Frederico estendeu a mão e sentou-se ao lado do amigo enquanto acendiam os cigarros.
- Temos que ter cuidado o pasto está seco e qualquer distracção pode ocasionar um incêndio, murmurou enquanto seguia a espiral de fumo do cigarro que se perdia na noite. A espiral era como se fosse o redemoinho da sua vida.
 De repente perguntou: - O que vai ser da nosso grupo? Simão & Companhia vai desaparecer na voragem da vida ou conseguiremos estabelecer um guia para não nos perdermos?
- Tu, diz Luís, és capaz de traçar um plano para manter viva a nossa companhia. Pensa no assunto, eu estarei contigo.
- Olha lá tu não estás a tentar que eu recrie o tema daquele filme que revimos há dias, “Os Amigos de Alex”, pois não?
- Par falar verdade podia ser algo assim, ou então um pacto de sangue, à maneira das máfias, e que nos ligue nos bons e os maus momentos.
- Máfia, pacto de sangue, promessas… não, a vida dá muitas voltas e os tempos são outros. Mas podíamos criar um elo de ligação, por exemplo uma página na internet, a página do Simão & Companhia. Para aceder só sendo membro do nosso grupo.Cada um poderá escrever, dar notícias, divulgar um sítio interessante, recomendar um livro, uma poesia, uma viagem. Mas com uma limitação, deverá sempre utilizar um pseudónimo, que não divulgará.
- É uma boa ideia, combinamos um local, um dia um ano em que nos voltaremos a encontrar. Aposto que vai ser uma surpresa, um reencontro de amigos que terão seguido caminhos diferentes. Eu proponho que o nosso encontro seja em Paris, porque não, no Arco do Triunfo, ás dez horas do dia 14 de Julho de 2020!
- Vamos tentar dormir sobre esta ideia. Não tarda a noite cede o seu lugar a uma manhã com sol. Tenta dormir que eu vou tentar fazer o mesmo, propõe Frederico. Amanhã acertamos os pormenores.



 
Procissão Corpus Christi
Amadeo de Souza-Cardoso
Centro de Arte Moderna
Fundação Calouste Gulbenkian
Lisboa, Portugal


segunda-feira, 28 de maio de 2012

SIMÃO & COMPANHIA


Guilherme Camarinha
São Jorge
Tapeçarias de Portalegre
Portalegre/Portugal

4 – Carlos Alberto

O cansaço e a bebida venceram a resistência dos dois amigos que haviam partilhado o ar da noite e o vento, suave, como uma música que os embalou.
Finalmente dormiam, mas por pouco tempo. Frederico acordou com uma luz que lhe incidia sobre o rosto não o deixando ver nada em redor. Deu um salto, e quase instintivamente assumiu uma posição de defesa, que aprendera nas aulas de kung fu.
A luz deixou de o encandear e conseguiu ver um vulto, que ria enquanto apagava e acendia uma lanterna.
Carlos, era o amigo inoportuno, deixou-se cair no chão, ao mesmo tempo que se lamentava, outra das suas características:
- Eh pá que raio de noite. Não consegui dormir pois o Simão ressona como um porco.
Não sei porque é que tu e o Luís arranjam sempre de maneira de ficar juntos. Até dá para desconfiar. São namorados ou quê?
- Olha Carlos, dá graças pois a ti só o Simão tem paciência para de aturar.
Tens a mania que és diferente, por vezes és tão chato que é preciso ser santo para te ouvir. E nós de santos não temos nada, por isso tem lá cautela com o que dizes.
Vai brincando com o pobre do Simão até que ele um dia perca a cabeça e te dê uma lição. A paciência tem limites, concluiu Luís manifestamente zangado.
- Vocês também não aceitam uma brincadeira? Que raio de amigos são?
Eu fiquei na tenda do Simão, só eu sei o suplício que foi ouvir o ressonar dele enquanto eu não conseguia pregar olho. Tive que sair e fui dar uma volta e para não me perder levei a lanterna.
Andei até lá em baixo, perto daquela estrada por onde viemos. Encontrei uma pedra grande onde me sentei a dar contas à vida. Agora que, devido à transferência do trabalho de meu Pai para o Porto, não tive outra opção para continuar a estudar, comecei a ficar com dúvidas. Estou convicto que escolhi o melhor caminho mas, há sempre um mas nas nossas vidas, e se não foi?
Fiquei sentado perto da estrada, ouvindo o correr de um pequeno regato. Quando o sol despontar, podemos aproveitar para tomar banho. E as miúdas se não trouxeram fato de banho, podem banhar-se em cuecas o que dará gozo de ver.
- Oh Carlos vai dormir, não tês esqueças que a Mariana é irmã do Simão e que a Leonor e a Carla são nossas amigas, não andam no engate.
-Pronto, vocês não dormiram tudo. Adeus, vou até à tenda dos suplícios.
- Para mim o Carlos foi de todos os colegas o que soube sempre o que iria fazer. Nunca falou sobre problemas familiares, tem um irmão a estudar nos EUA, já disse que o Pai lhe prometeu um carro logo que entrasse na Universidade e agora aparece com insónias porque tem dúvidas sobre o caminho. Há aqui qualquer coisa que não bate certo, concluiu o Luís.
- Sabes, responde Frederico, ele está assim porque gosta da Leonor mas não tem a certeza de ser correspondido e sabe que ela vai ficar a estudar em Lisboa. O que ele tem é medo e ciúmes.
- Sim ciúmes de ti, pois eu já entendi que tu para ela não és apenas um colega e amigo. Os olhos dela dizem muito mais.
E já agora será que elas conseguem dormir na tenda? Para dois o espaço é pouco mas elas são três. Vou espiar.
Luís parou junto à tenda e não ouviu sequer a respiração. Suspeitou que elas teriam arranjado outra solução. Foi até à carrinha, espreitou e voltou para junto do amigo.
- Frederico, as raparigas foram mais espertas, estão deitadas na carrinha e parecem sossegadas. Como é uma carrinha de nove lugares, cada uma tem espaço suficiente. Eu vou tentar dormir mais um pouco. Daqui a pouco o sol nasce e teremos de arrancar para o destino. Tenta fazer o mesmo, propõe Luís.
Frederico não respondeu, para ele o presente era de solidão e o futuro uma grande incógnita.
E passados uns minutos de calma, recomeçou a falar.

Praia das Maçãs
Oleo de José Malhoa
Museu do Chiado
Lisboa/Portugal


domingo, 27 de maio de 2012

SIMÃO & COMPANHIA


Museu do Azulejo
LISBOA

3 – Luís

- Não sejas assim tão pessimista, respondeu o Luís, para isso já me basta o meu irmão. Ele escolheu Psicologia mas, acabado o curso e sem emprego ou esperanças de futuro, ele é que está a precisar de consultar um bom Psicólogo. Está perdido e é uma preocupação que me atemoriza. Porque eu já me apercebi que ele sofre de dependências do álcool e talvez de uma outra droga coisa mais perigosa. Ela nada me diz mas eu sei ler a agonia nos seus olhos. E não sei o que fazer.
Apetece-me fugir, sair de casa, mas também não quero deixar a minha Mãe que tanto trabalha, dia e noite para que não nos falte a comida e dinheiro para uma cerveja.
O meu Pai, interrompeu a frase como se tivesse um nó na garganta, o meu Pai emigrou, na realidade fugiu e deixou de dar notícias. O meu irmão tinha dez anos e eu ia fazer quatro, quando de lágrimas nos olhos assistimos à sua partida. E foi mesmo de partida e para não voltar. Nem uma carta ou um telefonema. Muito menos se lembrou de enviar dinheiro.
A minha Mãe ficou assustada nos primeiros tempos, algo de mal lhe poderia ter acontecido. Mas acabou por saber a verdade, através de um amigo que voltara. O marido, o meu Pai, tinha esquecido a família que deixara chorando naquela manhã em que partira. Tinha escolhido uma nova vida!
Foi  um choque mas que não a derrubou, antes lhe deu forças para lutar e trabalhar. Na realidade ficámos órfãos de Pai desde tenra idade e nunca mais falámos no seu nome. Ainda hoje não lhe perdoei.
O meu irmão tinha uma recordação mais viva do Pai. Sofreu muito, é mais sensível, precisava de apoio e ele faltou-lhe quando mais era preciso. Ainda sonhava, dizia-me nas noites longas de inverno, que o nosso Pai iria regressar rico. E eu fingia acreditar. Pobres crianças.  
A Mãe nunca nos contou que o meu Pai havia optado por encontrar outra mulher, outros filhos, outra vida. Apenas assumiu a que a vida lhe dera um bem, os filhos, que ela assumiria.
Eu pressentia a sua dor, mas também reconheci a força que aquela mulher, a minha Mãe, nos transmitia.
O Alberto, o meu irmão, apesar de mais velho continuava a dizer na escola, que o Pai partira para muito longe e um dia iria regressar para nos levar para uma casa bonita numa cidade cheia de jardins. Era a sua resposta aos colegas que, como todas as crianças daquela idade, brincavam de forma cruel.
Da minha Mãe nunca ouvi lamentos, nem revolta nem recriminação. Apenas nunca mais voltou a falar no marido. A mão solteira arregaçou as mangas e trabalhou pelos dois. E conseguiu dar aos filhos o carinho de Mãe e a educação de Pai.
 É uma mulher extraordinária, tinha trinta anos quando a vida lhe exigiu uma responsabilidade nova. Não hesitou e foi à luta, sempre a trabalhar e quando está connosco, ao jantar tem sempre um sorriso que nos dá força. Eu tento falar do futuro e da vida, dos sacrifícios que uma Mãe solteira teve que enfrentar, mas olho para o lado e a pobre Mãe está de olhos fechados, como se dormisse, mas na realidade, eu já vi, ela está chorando, em silêncio.
Eu também não fugirei e irei assumir as minhas responsabilidades. Preciso de trabalhar para aliviar a minha Mãe e ajudar o meu irmão. Por isso, és a primeira pessoa a saber, eu não me inscrevi numa faculdade. Era mentira eu não teria dinheiro para tal.
Tenho uma promessa de um tio materno, o tio José Maria. Que arranjaria forma de eu ganhar algum dinheiro, trabalhando com ele na reconstrução e recuperação de casas. Aceitei, mas ele fez-me prometer que se um dia as coisas mudassem eu teria de tirar um curso superior. Mesmo que tal não fosse condição indispensável para ganhar o sustento da família, devia fazê-lo, pois o acto em si significava uma barreira vencida. Como o meu tio me diz, ele que não estudou, só trabalhou a vida inteira, ultrapassar uma barreira é como vencer uma batalha e subir a montanha mais alta para gritar: Vitória! Talvez o teu Pai oiça o teu grito.
- Frederico agora é que não vou mesmo conseguir dormir. Mas sinto alívio. Tu és um o meu amigo mais próximo, para os outros que continuam a dormir o sono dos justos, nós somos, como eles dizem, os intelectuais da treta.
Entretanto, vou buscar mas umas cervejas. Fiquei cheio de sede


José Malhoa
OS BÊBADOS
Museu das Caldas da Rainha

sexta-feira, 25 de maio de 2012

SIMÃO & COMPANHIA



                                                   AMADEO DE SOUZA-CARDOSO
Centro Arte Moderna - Fundação Gulbenkian
LISBOA

2 . Frederico

Nem todos tinham dúvidas. Mas entre os mais hesitantes estavam os dois amigos que estendidos no mesmo cobertor cobertos pelo céu estrelado. Partilhavam aquele momento mas, de forma diferente, também comungavam as incertezas.
Ainda assim, ou talvez por isso mesmo, eram os mais amadurecidos membros do grupo de quatro rapazes e três raparigas. Tinham em comum a amizade que vinha dos bancos da escola e que os unia, apesar de comportamentos diferentes, hábitos, ambições e objectivos de vida diferentes.
 Frederico, um dos jovens deitado a contemplar as estrelas, era porventura o mais inquieto, o mais culto mas estava longe de ser o aluno exemplar. Era ombro para os outros mas ele mesmo cheio de dúvidas não pedia apoio e fora do círculo de amigos era considerado pedante e convencido. E como estavam enganados os que assim o julgavam. Na realidade Frederico era um rapaz dividido entre a realidade e o sonho.
O seu companheiro de tenda e amigo mais íntimo era o Luís, que estava de olhos fechados e com a respiração de quem dorme com tranquilidade. Mas não era assim.
Ouviu Frederico murmurar:
- Estás acordado?
- Se não estivesse agora ficaria. Mas não consigo dormir, fecho os olhos mas a cabeça não descansa. Sinto-me cansado do dia de ontem, o corpo pede repouso. Só dormi algumas, poucas horas. O resto do tempo estive acordado, pensando em coisas sem importância, tentando enganar o sono. Mas ele partiu e não voltou.
 Tu queres conversa e, afinal, eu também não me importo.
 A propósito, Frederico já te deste conta que começamos estas férias com o nosso grupo, que se conhece desde crianças, e que dentro de algum tempo cada um vai seguir o seu caminho? Será que alguma vez os nossos caminhos se cruzarão ou os sonhos, as alegrias e as tristezas que vivemos juntos, serão com o passar do tempo, meras recordações? Não sentes a angústia desta dúvida?
- Claro que sinto e foi por isso que não dormi, responde Frederico.
Eu sou a dúvida metódica. Não consigo olhar para o caminho, nem sei se o que escolhi foi uma opção certa, e confesso, estou naqueles momentos de calmaria que antecedem a tempestade. O meu Pai quer que eu siga o seu percurso mas eu olho à minha volta e interrogo-me: Será que valerá a pena? Tirar um curso de Direito como o meu Pai espera, ou não fosse ele Professor da Faculdade? Não me seduz, serei sempre olhado como o filho do professor e isso será um rótulo para a vida. E depois para que serve? Talvez trabalhar num supermercado como alguns que eu conheço! O meu Pai falou-me em seguir o caminho da Magistratura, mas nada me atrai menos do que julgar os outros interpretando códigos e leis feitas à medida. A minha noção de justiça vai para além dum ou de vários códigos. E seria, tenho a certeza um mau Juiz.
Entretanto ficou em silêncio, mergulhara de novo do sonho que o perseguia. Estava longe, na recta de uma estrada que se perdia de vista. Não havia como sair, andava em frente com a convicção que a estrada acabaria num precipício. Não sabia o que fazer, para onde ir, mas apenas sentia que o caminho não era aquele.
O mundo é tão grande, em algum lugar haveria espaço para o sonho, para a felicidade, para o amor. Mas onde?

quarta-feira, 23 de maio de 2012

SIMÃO & COMPANHIA


Foto
Serra do Marão

1 – A primeira noite  

A noite estava estrelada. Era lua nova e todas as estrelas brilhavam mais, naquela noite do mês de Agosto
Estava calor e dois amigos saíram da tenda ao mesmo tempo, estenderam um cobertor no chão atapetado de erva e ficaram imóveis olhando a imensidão do céu e saboreando a brisa ligeira que circulava entre as fragas em redor.
A noite chegara depressa e tinham optado por parar, algures numa encosta da serra do Marão. Era uma solução improvisada, para retemperar as forças, gastas depois de terem guiado desde Lisboa, por estradas secundárias.
 Estavam isolados e perdidos. Não se vislumbrava uma casa, uma luz. A escuridão caíra de repetente. Aproveitaram um lugar mais plano para montar as tendas de que se haviam prevenido. Depois conseguiram estacionar na berma do caminho, a carrinha em que se transportavam e que funcionava como apoio e com um pouco de improvisação, fora baptizada de caravana.
Estavam de passagem, ficariam por apenas uma noite, já que o destino de férias seria uma casa do meio da serra, casa rústica à beira de uma estrada que não sabiam exactamente onde ficava mas que os conduziria à aldeia, quase deserta, naquelas terras do fim do mundo. Esperavam encontrar alguém que lhes indicasse o caminho, mas nos quilómetros que haviam percorrido numa estrada terra batida, nem sinal de vida tinham encontrado.
Era uma aventura a que aquele grupo de jovens amigos tinha aderido, fugindo à tradicional viagem de final de curso.
A casa fora uma sugestão do Simão, o amigo sempre disponível e com quem os outros podiam contar. Era calmo, pachorrento mas era sobretudo coração aberto.
 Era tão disponível que o grupo, onde se cruzavam temperamentos inquietos, ambições, desilusões afectivas, convicções profundas, se baptizara como Simão & Companhia.
Eram um grupo de amigos, que se conheciam desde os bancos da escola, andavam na casa dos dezassete dezoito anos, estavam portanto na idade de definir o futuro.
E o futuro começava naquele ano, quando tivessem que começar a percorrer o caminho de cada um.
As férias num local isolado, longe de tudo, serviriam como a despedida.
Afinal seria como a passagem da juventude para outro degrau, outra responsabilidade, outros encontros e desencontros. O tempo seria inexorável, a amizade que os ligara poderia ficar pelo caminho. Por isso queriam comemorar e deixar os braços abertos. Todos por cada um.
Pintura
Maria Helena Vieira da Siva

domingo, 20 de maio de 2012

BAILADO

Durante muito tempo, antes da doença do computador que me envolveu na vertigem da escrita, concebida ao sabor da imaginação e da memória, tinha alguns momentos para me deixar embalar pela grande música.
Eram discos de vinil de 33 rotações que de vez em quando percorria mas sempre acabando a ouvir a mesma composição.
Na altura alguém, não sei como, convenceu-me a comprar uma colectânea de música dos grandes compositores clássicos, interpretada por grandes orquestras e grandes solistas.
E dessa colectânea eu ouvia com atenção quase doentia a bela música que  Tchaikovsky compôs para o bailado Quebra Nozes, designadamente o adágio para o  Pas de Deux. Era o final, a apoteose de uma tarde bem passada.
Ao piano  estava Sviatoslav Richter, a orquestra era a Sinfónica de Viena e o maestro  Herbert Von Karajan.  Era algo que não podia perder.
E foi a música que me levou ao bailado que vi, interpretado no velho Coliseu de Lisboa pelo Ballet Bolchoi. Deixo-vos um vídeo, precisamente o Pas de Deux. Espero que gostem, como eu gostei.

sábado, 19 de maio de 2012

INTERLÚDIO

Nesta fase de procura de inspiração para escrever mais uma história, tenho que me recorrer a algo que me dá tranquilidade e me faz afastar as nuvens negras que nos ameaçam.
E antes do fim do dia, embriagado com as palavras ditas, as promessas por cumprir, sinto que nada valeu a pena. Fora mais um dia perdido.
Vazio, cansado só a música me traz momentos que afogam as minhas mágoas.
Hoje deixei que a nostalgia de uma guitarra, tocada com maestria, uma orquestra e principalmente a inspiração do seu autor, preenchessem este vazio.
Escolhi o adágio do concerto de Aranjuez, composto por Joaquim Rodrigo. Os dedos de Paco de Lucía completaram o momento. Gostei e quero partilhar.
Não será o concerto na totalidade, mas vale a pena ouvir, fechar os olhos e sonhar.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

CINEMA EM CASA

Agora que terminei a aventura que começou na Guatemala, onde estive em serviço e acabou na baixa de Nova Iorque, a cidade que me marcou e enquanto não arranjo maneira de inventar uma qualquer outra historieta, optei por falar de uma das minhas maiores paixões. O cinema.
Cinema em casa, tem sido o lenitivo para ver passar o tempo, à espera que um filme, um actor, um drama ou uma comédia que me desperte recordações, algumas dolorosas outras já longínquas, mas que são parte da vida.

E o filme que escolhi é apenas um gosto pessoal.

IN THE VALLEY OF ELAH, filme de 2007 dirigido por Paul Haggis.


Receio que em algum escrito anterior, tenha falado deste filme, que vi e revi e que guardei à flor da pele. Não quis confirmar porque eu sou uma pessoa de momentos e não gosto de rever o que já escrevi.

O filme conta um drama, sofrido, devastador mas que quase todos os dias se repete.
 Um Pai, veterano do Vietname, assiste ao desmoronar das convicções de um patriota como ele,  para o qual servir a Pátria e honrar a bandeira, era o dever de todo o cidadão. Perdera já um filho morto em combate na guerra do Iraque e o filho mais novo, quis honrar a memória do seu irmão e embarcou para o inferno.
Regressou mas não a casa, morreu em circunstâncias horríveis que só se compreendem por quem passou por uma guerra, sangrenta, desnecessária e injusta que, por vontade política e interesses económicos, deixou marcas numa geração.

Um filme duro mas não mais do que uma guerra é. Todavia, teve para mim o reconhecimento de um grande actor de cinema. Como  já vi escrito,Tommy Lee Jones, mostrou naquele filme, ser o maior actor dos últimos cinco anos.

segunda-feira, 14 de maio de 2012

O ÚLTIMO VAMPIRO EM NOVA IORQUE

 A LIBERTAÇÃO

Ruben ficou parado enquanto a figura caminhava, cambaleando, na direcção da porta. Antes de sair daquela sala virou-se dizendo:
- Atrás daquele painel com as imagens, encontras uma cama onde podes descansar. Amanhã terás de cumprir o teu destino, o que os espíritos da floresta da tua terra te reservaram, guardião dos segredos.
Sê forte e usa a tua coragem. Eu sou o espírito bom do velho feiticeiro índio navajo que vagueia pela terra até encontrar quem lhe dê o merecido descanso. Eu sou ainda a imagem do teu amigo que ousou penetrar na cidade perdida. Isso teve um custo, uma maldição que me atormenta nas noites de lua nova.
E hoje é o dia.
Fica atento e lembra-te das histórias que os camponeses da tua terra contavam ao redor duma fogueira.



Ruben deixou passar algum tempo, levantou-se e procurou o interruptor para acender a luz, estava a ficar mais escuro. Procurou mas não encontrou. Subiu para a cadeira, espreitou para um candeeiro suspenso do tecto mas lâmpada não havia.
- Aqui estou eu preso, condenado à escuridão e sem saber o que se espera de mim.
Teve um calafrio, as histórias que ouvira contar em criança, falavam de mortos vivos que em noites de lua nova, na escuridão mais profunda, saíam dos túmulos debaixo da terra e se transformavam em lobisomens e ou em vampiros. Seria esse o destino que lhe estava reservado?

 Tem que haver uma maneira de fugir, não posso ficar parado à espera da lua nova.
Na sua memória percorria todos os momentos,  desde que conhecera  o amigo americano em quem confiara;
- Seria Robert, homem serpente, espírito maligno ou a miragem do ser que irradiara luz e tranquilidade, perguntava-se cheio de dúvidas?
Não conseguia perceber o seu papel naquela história, mas acreditava que toda a sua aventura até Nova Iorque e até à sala onde estava cativo, fora comandada por forças ocultas, para defender um segredo. Fora o que percebera da mensagem do velho feiticeiro. E o medo crescia, tremia só de pensar que o mais provável era ser atacado por um vampiro e como dizia a lenda, tornar-se também o ser da noite, alimentando-se do sangue humano.
Cansado sentou-se no chão com as costas encostadas a uma parede bem longe da porta que pouco a pouco iam deixando de ver.
Não conseguia fechar os olhos, via sombras de figuras estranhas que estendiam os braços, parecendo pedir ajuda. Eram os mortos vivos dos seus antepassados Maias.

Que pesadelo estava a viver, a luz e as trevas, a amizade e vingança, o medo e a paz, tudo se confundia no seu cérebro cada vez mais perturbado.
 De olhos bem abertos conseguia afastar os medos e os fantasmas e ganhar a coragem para arriscar um caminho para tentar fugir.
A porta estava fechada e era tão forte que não reagia á força dos seus braços. Foi inspeccionar as janelas, afastando os cortinados pesados que cobriam uma parede.
Eram altas e entaipadas a tijolo. Apenas um pequeno espaço vazio, lá no alto do tapume deixava passar uma réstia de luz e um pouco de ar. Mas era tudo bem alto e não tinha como subir.
Foi ver o lugar reservado para dormir,   tropeçou numa cama no chão com alguma roupa espalhada. Feriu-se, batera com a perna no estrado que suportava a cama. Sentiu que da ferida escorria um leve fio de sangue. Ficou em pânico, o cheiro do sangue fresco podia acordar o vampiro que ele imaginava estar escondido em qualquer lugar e despertar a sua sede.
Rasgou um pano que estava sobre a cama e com ele limpou a ferida, envolvendo a perna com o resto.
O medo aumentava, tentou gritar mas a voz não se ouviu. Não podia contar com ajuda de ninguém. Estava preso aguardando o sacrifício. Esteve quase a desistir de lutar, mas parecia ouvir uma voz que o incentivava. “Não desistas, procura, não tenhas medo, arma-te com a tua força”.
Era o seu subconsciente que não desistia. Arma-te e com o quê, murmurava?

Sentou-se no chão, estava prestes a desistir, estava tão cansado. De repente lembrou-se dos conselhos do Pai, quando explicava que para defender as irmãs dos espíritos maus da floresta,  elas deveriam usar ao pescoço um colar com uma cruz de madeira. A madeira sim, era isso que ele precisava para se  defender.
E de repente tudo se tornou claro, para fazer as armas e para se defender precisava de madeira e fora no estrado de madeira que suportava a cama, que ele se ferira.
Mesmo às escuras retirou o colchão e com tacteou o estrado. Ganhou novo alento, ele era construído por ripas de madeira, que tinha a certeza, não seriam difíceis de partir. Era daquelas ripas que iria fazer as armas para se defender.
Vasculhou os bolsos do casaco. Tinha por hábito trazer uma pequena navalha que sabia ser útil para quem se vê em perigo. E a sua navalha pequena mas afiada lá estava, escondida no forro do casaco.
Mesmo sem luz conseguiu retirar as ripas. Uma partiu em dois pedaços e ligou-os em forma de cruz, utilizando as tiras de um velho cobertor que encontrara na cama. As outras foram afiadas até se tornarem lanças afiadas.
E conseguiu descansar.
Sentou-se no canto longe da porta, segurando as suas armas.
Porém sentia um cansaço muito grande, lutava para não dormir. Mas parecia que alguém lhe fechava as pálpebras e acabou por deixar fechar os olhos. De repente ouviu uma respiração ofegante que se aproximava do seu rosto e sentiu o calor do bafo que estava prestes a atingir-lhe o pescoço.
Deu um salto e empunhando as lanças, golpeou uma, duas, três vezes, o vulto negro que adivinhara. O vulto desapareceu soltando um grito aterrador. Depois foi o silêncio.
A porta ficara aberta e a luz da madrugada começara a iluminar a sua cela.
Ruben hesitou, fugir era o mais aconselhável, mas resolveu  ficar. Precisava de chegar ao fim ou nunca mais iria descansar em paz.
Afinal tudo o que vivera naquela noite que não mais esqueceria, não teria passado de um sonho, um pesadelo?
 A dúvida era como uma ferida aberta e não podia viver com ela.
Com passos cautelosos e com todos os sentidos despertos, aproximou-se da porta aberta, seguiu por um corredor vazio, subiu algumas escadas empurrou uma porta entreaberta e viu a luz do sol.
Era um terraço e voltou a sentir um arrepio de medo. Uma figura enorme, vestida de negro carregava nos braços um corpo inanimado.

 Era o Vampiro que surgia da escuridão. O sol despontou e ele dobrou os joelhos e lentamente  deixou-se cair cobrindo o corpo inanimado que abraçara.
Depois com um grito sussurrado, que mais parecia um lamento, o vampiro rodou e ficou deitado de costas enfrentando a luz do sol.
Ruben ficou parado olhando para os dois corpos.  Fora educado numa escola de Padres Missionários.  Relembrou a oração dos mortos e com a voz sumida foi rezando. Depois lançou por sobre os dois cadáveres a cruz de madeira que trazia.  E lentamente os corpos começaram a desfazer-se em pó, que um vento suave levava pelo ar.  Era já Outono, aliás o verão Índio. Era o momento final.
As suas recordações iriam desaparecendo com o tempo. Mas iria guardar para si o dia em que a sua mão fora escolhida pelos Deuses da floresta para dar descanso a duas almas condenadas.
Ele enfrentara os medos e vencera o Vampiro.
Sim, o último Vampiro em Nova Iorque partira desfeito em pó, ele fora  o instrumento da sua libertação.



FIM                             

terça-feira, 8 de maio de 2012

O ÚLTIMO VAMPIRO EM NOVA IORQUE

OS DOIS LOBOS

Ruben ficou lívido e sentiu vontade de fugir.
Olhou para a porta por onde entrara e que agora estava fechada.
Caíra numa armadilha, pensou, ficou mais atento aos movimentos do homem serpente que todavia permanecia imóvel, afundado num cadeirão esquisito, parecia um trono revestido a panos bordados, com desenhos como os que ele já vira nos livros da Escola.



Sim o cenário que o assustava, e ao mesmo tempo o fascinava, parecia uma cópia do trono do Imperador do império Maia.
E no silêncio que caíra sobre a sala, Ruben lembrou o que o professor de História lhe havia ensinado.
- A civilização Maia que muitos séculos atrás dominara o que era agora o seu País fora uma civilização muito hierarquizada e muito desenvolvida para o seu tempo. Havia quem defendesse que os Maias teriam sido povos que teriam emigrado do antigo Egipto, trazendo com eles a figura do Faraó, dos sacerdotes, dos escravos e também o culto dos mortos.
O Professor falava com entusiasmo daqueles índios que, liderados por um Imperador dotado de poderes mágicos incendiaram com a lava dos vulcões os acessos ao seu território na floresta, fugindo da morte e da escravidão que os soldados do conquistador Espanhol Fernando Cortez os iriam submeter. Os sobreviventes refugiaram-se nas florestas mais profundas. Para trás deixaram os seus monumentos mas também sinais do seu poder e avisos para os invasores.
E o professor assegurava que, segundo a lenda, o fogo dos vulcões era uma manifestação do poder e da magia que os Maias tinham guardado, no fundo da terra.

Ruben parou de desfilar as suas memórias que reconhecia, eram apenas lendas que passaram de geração em geração e nas quais nunca acreditara.
Mas agora sentia-se preso naquele local, dentro de um cenário construído á maneira dos Maias e começou a duvidar das suas certezas.
Estremeceu quando o homem sentado, no que lhe parecera um trono, se levantou deu alguns passos trémulos na sua direcção e estendendo os braços, lhe disse:
- Ruben, meu bom amigo, vieste ter comigo, impelido por forças boas que te guiaram, por isso não tenhas medo. Antes de te contar a tua missão, ouve com atenção.
Puxou por duas cadeiras, sentou-se numa de costas viradas contra a luz fraca da janela e apontou a outra para o amigo.
Ruben sentou-se sem pronunciar uma só palavra. No seu íntimo sentia-se como alguém que estivesse a aguardar uma sentença. O homem sentado na sua frente já não tinha a cabeça de serpente, afinal era um adorno do trono improvisado, mas também não era o rosto do amigo americano, que um dia encontrara no seu País e graças ao qual estava em Nova Iorque, naquela cidade com que sonhara, a tentar construir uma vida com mais oportunidades.
E Robert começou a falar:
- Eu disse quando te encontrei na tua cidade, que a minha vida tinha sido a procura de sinais de civilizações perdidas. E era verdade, mas faltou contar uma parte importante.
Eu e a minha mulher partilhamos o mesmo gosto pela arqueologia e pelas ciências esotéricas. Percorremos as florestas das Honduras e chegamos às margens do largo Tikal, bem no interior do teu País.
Tanto eu como a Rosemary, a minha mulher, sentimos que a cidade perdida que procurávamos há mais de dez anos, ficaria perto daquele local, tantos eram os símbolos e sinais deixados pelo povo Maia.
E, acredita a cidade existe e nós estivemos lá.
Mas era uma cidade de mortos. No meio da excitação da nossa descoberta Rosemary escorregou e caiu num poço escuro e eu não mais a vi nem ouvi.

Percorri os túneis, desci às cavernas, espreitei todos os recantos para nada. Perdido e quase a enlouquecer, andei perdido do mundo e de mim até que, um dia regressei à tua cidade e te encontrei.
Foram anos, muitos anos percorrendo florestas, subindo montes, atravessando rios. Queria fugir, tive medo e tentei regressar a casa na tua companhia.
Depois foram os remorsos por ter abandonado a minha mulher, uma força qualquer que me impedia de partir e me forçou a voltar à cidade perdida.
Desta vez encontrei a minha mulher. Era uma mulher diferente. Tornara-se um ser que vivia de noite e não podia enfrentar o sol. Mas os olhos ainda brilhavam pedindo ajuda. E eu trouxe a Rosemary para aqui, para o nosso quarto onde repousa até que numa noite de Lua nova ela possa partir comigo para as montanhas dos índios nossos antepassados.

Será lá que iremos descansar, nos braços de uma árvore, expostos ao sol e às aves de rapina, até que tudo se transforme em pó e possamos descansar desta maldição que carregamos.
Ruben é contigo que eu conto para a viajem. Sei que posso contar com a tua amizade, mas não me desiludas.
O meu Avô disse um dia o que um velho da sua tribo, um dia lhe contara:
-“ Dentro de mim tenho dois lobos. Um é cruel e mau. O outro é muito bom. Os dois lobos estão sempre à briga.
Quando lhe perguntaram qual o lobo que ganhava a briga, o ancião respondeu:
Aquele que eu alimentar.”
Ruben percebeu e mesmo sem dizer uma só palavra, acenou um sim. Não arriscava ter de enfrentar o lobo cruel e mau.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

O ÚLTIMO VAMPIRO EM NOVA IORQUE

ENCONTRO COM O VAMPIRO

Com uma viajem de tantas horas, Ruben havia perdido a noção do tempo. Acordou estremunhado com a luz que lhe inundava o quarto. O relógio marcava 9 horas, já nem se lembrava de alguma vez ter dormido até tão tarde.
Todavia não ouvia barulho nem no quarto ao lado, apesar de apenas separado por um simples e frágil tabique. Era o quarto de Dolores. Encostou o ouvido e deu por um respirar tranquilo, de alguém que dormia.
Pé ante pé e descalço desceu as escadas até ao quarto de banho que não ficava longe. A casa estava em silêncio, espreitou na sala, no corredor e não viu ninguém. Melhor assim, sem pressas.
Terminara a sua higiene pessoal, mudara de roupa e regressava ao quarto quando ao subir as escadas encontrou Dolores que o provocou:
-Hoje é Sábado, deves estar cansado assim como eu. E à noite temos que estar frescos porque a noite é para dançar, namorar, eu sei lá, para viver. E eu preciso de companhia. Ai Nova Iorque a cidade que nunca dorme e que espera por nós. De uma forma um pouco descuidada ou não, mostrava o corpo quase desnudo e um olhar atrevido.

Ruben ficou sem reacção, mas não conseguia tirar os olhos do corpo que adivinhava.
Todavia comentou:
- Eu também gostava de ver a noite na cidade, gozando da tua companhia, mas o que me preocupa é arranjar trabalho.
- Sim claro, mas hoje é sábado, é a noite de todos os encantos e de todos os desafios. Amanhã começaremos a consultar jornais locais com anúncios. Mas só de tarde, pois acredito a noite vai ser longa.
Levantou-se, mostrou um bocado generoso do corpo, riu e foi para a toilette.
Saíram de casa, era quase meio dia, e procuraram um café restaurante que servisse o desejado brunch.
Enquanto Dolores ia falando ao telemóvel com amigos e amigas combinando o local para a noite, Ruben ia perdendo um pouco de confiança. A cidade que ele imaginara estava em outro lugar, e era lá que teria que procurar trabalho. Naquele bairro acreditava que oportunidades de trabalho não existiriam.
Mas a noite fez esquecer as suas dúvidas. Perdeu-se num clube barulhento, dançando e bebendo até ser dia. Deixara de ver Dolores e interrogava-se como ia voltar para casa, nem tomara nota da rua. Mas Dolores apareceu, pegou-lhe na mão e disse:
- Vamos lá para casa meu cavaleiro. Vamos terminar esta noite, estou exausta e parece que os dois precisamos de descansar. Não é?

Apesar do que pensava fazer, procurar trabalho, aquele mês de Agosto foi passado em passeios pelas sombras do Central Park, partilhando os dias com  Dolores. Gostavam da companhia, Dolores era uma mulher alegre e o seu sorriso contagiou Ruben. Mas ambos reconheciam terem objectivos de vida bem diferentes. Por isso iriam viver aquele mês e, talvez um dia, o destino os juntasse de novo.
Dolores partiu e Ruben dedicou cada dia. cada semana à procura de trabalho. Tantas entrevistas, tantas promessas e afinal, tantas desilusões.
Percebeu que tinha de explorar outras partes da cidade. Um dia em que o calor sufocava, apanhou o metro, uma linha que ainda não experimentara. Desceu em Times Square e por entre grupos de turistas foi descendo até fugir do movimento e escolheu descer a Brodway.
Entrou num café e numa mesa bem no interior esteve de novo a pesquisar os anúncios de ofertas de trabalho. Assinalou dois ou três e sem saber porquê, o primeiro que decidira ir apresentar-se ficava longe, num bairro assinalado como sendo Bowery e o emprego era oferecido pelo hotel com o mesmo nome.
Andou muito, no mapa parecia mais perto, murmurava. O sol já se escondera e pouco a pouco a noite ia caíndo sobre as ruas, até ao momento quase desertas.
Pensou voltar para casa, estava tão longe que demoraria mais de uma hora de metro a chegar ao quarto que mantinha em casa dos tios de Dolores.
 Voltou a ver o mapa para escolher a estação de metro mais próxima. Afinal a que ficava a dois ou três quarteirões era mesmo a estação de Bowery. Que coincidência, andara tanto, percorrera a cidade de ponta a ponta e hoje, ao fim de mais de um mês de procura viera dar ao endereço de que se esquecera.
Sim, lembrava agora,  Robert tinha dito que quisera morar numa parte velha e típica da cidade e que comprara dois apartamentos num prédio desabitado encostado ao Bowery Hotel.
Conseguiu encontrar na carteira o papel onde apontara o endereço que o amigo lhe dera. Estava já escuro mas debaixo de um candeeiro, numa esquina da rua do hotel confirmou a morada. Estava ali, e sentia com algum temor que alguém ou algo o acompanhara até ao destino.
O que o destino lhe reservava não sabia, hesitou por alguns momentos, talvez o amigo já tivesse voltado da sua aventura e ele Ruben devia-lhe uma visita.
Não fora programada, quase se esquecera, mas alguma magia o havia guiado.
Antes de entrar no hotel olhou para o prédio do amigo. Parecia vazio e até um pouco desleixado. Tocou a campainha e à segunda tentativa da chamada, premiu o botão para o terceiro andar e, surpresa, a porta abriu-se. Estava a ficar  escuro, os degraus das escadas mal se viam. Respirou fundo e cheio de coragem e devorado pela cusiosidade foi subindo até ao terceiro piso.  A porta  estava aberta, entrou e sentiu como se um vento frio lhe tivesse percorrido o corpo. Estava  numa sala grande, decorada com estátuas e pinturas que lhe faziam lembrar os mistérios das cavernas e das florestas da sua terra.











Olhava fascinado e não deu que sentado no canto mais sombrio da sala um homem estava sentado e o olhava com atenção.
Era o Robert, mas estava tão mudado que quase nem o reconhecera. Aproximou-se mas recuou, Robert era um homem serpente.

E o amigo disse-lhe com uma voz grave e arrastada, como se lhe faltassem as forças:
- Sê bem vindo meu amigo, esperava há tanto tempo, há tantos anos, pela tua visita. Mas vieste. Isso é que importa.