quinta-feira, 25 de abril de 2019

VIDA EM CONTRAMÃO


DOR

António sofreu o abandono, sentiu a dor. Ele fora o culpado por ter desistido de acompanhar Marjorie e ter escolhido uma profissão que lhe preenchera os dias e o agarrou às noites.

Sentiu a ausência, e nos momentos tristes lembrava, com os olhos rasos de lágrimas, as noites, as longas noites de paixão.

Tudo se esfumara.

Tinha-se entregue ao trabalho vivendo o dia-a-dia com a intensidade que o fez esquecer que a mulher com que partilhara os melhores anos da sua vida, se cansara e partira.

Foram tempos difíceis que António foi enfrentado com a embriaguez do seu trabalho.

Tentou o contacto com a revista para onde Marjorie dizia escrever, contando o florir dos cravos neste País triste, mas com surpresa não obteve nenhuma pista para seguir o caminho da mulher amada. Nem o nome era conhecido.

Tentou desesperadamente obter o apoio de um colega da Polícia de Paris, mas faltavam-lhe dados e a boa vontade do colega não foi suficiente. Apenas um jornalista desconhecido, lhe falou que Marjorie teria emigrado para o Canadá.

Foram dias, meses, anos de agonia até que António passou a pensar que Marjorie fora um sonho que se esfumara.

Conheceu Luísa, colega no serviço da Polícia de Investigação, encontraram laços que os iriam unir nos anos difíceis que o futuro lhes reservara. Tiveram uma filha que passou a ser a luz.

Passaram vinte anos, Luísa não resistiu à doença e António encontrou na filha o amparo que precisava.

Passou e escrever, memórias, textos relatando os anos em que enfrentara a guerra colonial. Juntou fotografias, recortes de jornais, reportagens que Marjorie escrevera com o entusiasmo de quem se dera e vivera tempos de cólera e de esperança.

Sentia que o seu tempo se aproximava do crepúsculo. Escreveu a sua última vontade.  

Carolina, filha que ganhara uma bolsa de estudo numa universidade dos Estados Unidos., regressou a casa. Num dia em que o Pai fora despertado pelo calendário. Tinham passado quarenta anos do 25 de Abril de 1974.

 Encontrou o Pai caído junto da sua caixa de memórias, de olhos fechados e segurando a fotografia de Marjorie. O fim estava próximo.

 

 

terça-feira, 23 de abril de 2019

VIDA EM CONTRAMÃO


2 – MARJORIE

Nascera de um casamento improvável. O Pai, professor, austero e conservador nos costumes e na política e a Mãe estudante de filosofia e que militou no movimento estudantil que abanou a França nos anos sessenta.

Marjorie cresceu num ambiente familiar frio. E foi isso que moldou a sua forma de estar perante a vida e as pessoas que se cruzaram no seu caminho.

Andou perdida na Universidade. Experimentou cursos técnicos que detestou e depois de mais algumas tentativas acabou por escolher e com entusiasmo a carreira de jornalista.

Quem diria, comentavam os amigos. Uma rapariga bonita, interessante, criada no meio da alta burguesia de Paris escolher como caminho, acompanhar o mundo em constante evolução, conflitos, revoluções, afinal, perigos que uma mulher jovem não estaria preparada para enfrentar.

Marjorie deixou-se influenciar por jornalistas mais experientes que lhe contavam episódios, alguns que até haviam custado a vida ou a sanidade mental dos que os viveram. Ficava extasiada a ouvir contar reportagens sobre a guerra no Vietnam e, mais próximo a tragédia na guerra da independência da Argélia e do terramoto político que a descolonização haveria de causar no seu País.

Nos meios que também frequentava, encontros entre emigrantes Portugueses que haviam deixado o País, fugindo da guerra colonial. Aprendeu que muitos dos jovens que conhecera, cantores de intervenção, refugiados políticos, sonhavam com um País de sol e mar, livre das grilhetas da ditadura.

E foi no Abril de 1974 que à jovem repórter Marjorie foi distribuída a tarefa de relatar aos leitores do jornal, a liberdade que surgia no horizonte dum Povo triste.

E a sua vida nunca mais foi a mesma.

A revolução dos cravos que os Portugueses viviam com entusiasmo e esperança contagiou-a e decidiu ficar por Portugal.

Fez amigos, participou no despertar dum Povo oprimido. Ouviu e leu os Poetas, ouviu e aplaudiu os cantores, acompanhou os soldados.

Conheceu um jovem oficial que regressara da guerra. Chama-se António e era na altura finalista do curso de Direito da Universidade de Lisboa. Conheceu-o e começou um grande amor.

Entregaram-se à paixão que os unira e não quiserem discutir, sequer, o futuro. António ingressou na Polícia Judiciária e o mundo em que mergulhou, tempo de desespero, tempo de ódios e de crime, afastou-os. Marjorie sentiu-se uma peça quebrada da engrenagem em que o companheiro se deixara envolver. Partiu com uma ferida no coração e o futuro no ventre. Numa carta que deixou, contou a mágoa de um amor traído. Mas no afinal, também reconhecia que o amor murchara como os cravos da revolução de Abril e pedia para que ele a esquecesse. Ela seguiria o seu caminho e cuidaria do filho que levava no ventre.

A carta terminava: “ NON, JE NE REGRETTE RIEN”.

 

 

 

sábado, 20 de abril de 2019

VIDA EM CONTRAMÃO


1 – ANTÓNIO

Quando na curva descendente da vida, alguém tem a veleidade de pensar que viveu e trabalhou fazendo o que mais se gosta, haverá, um momento em que toma consciência que a vida semeara muitas armadilhas e que afinal, lhe restou uma mão cheia de nada.

Mas, quando esse trabalho envolveu o contacto com vítimas da sociedade voraz que tudo trucidou, essa situação, ou essa memória nunca se apagarão.

Recolhido em casa depois de uma estadia, dolorosa e demorada no hospital, António Pires mantinha o seu raciocínio, com algumas falhas, que ameaçavam a qualquer momento fechar os caminhos entre o cérebro e o corpo. E ele que sempre se julgara imune aos desencantos, acabara por tomar consciência da ameaça.

Lera, já não se lembrava em que livro, uma história que não mais esquecera, em que o protagonista iria tornar-se um morto-vivo. Não mais esquecera o drama de alguém que está morto para o mundo que o rodeia, mas vivo nas células do cérebro que permaneciam activas ainda que desligadas do controlo do corpo e das emoções.

Jurara, nunca aceitaria destino semelhante mas, agora perdera a força de terminar, de vez, com essa ameaça.

Era um homem que acabara de passar a barreira dos sessenta anos, que vivera intensamente, sem barreiras. A sua filosofia fora o desejo de viver intensamente e morrer na sua hora sem dor ou sofrimento para os seus.

Mas a vida é madrasta e troca as voltas.

E ele que sempre caminhara contra a corrente, estava agora deprimido, só, tão só, sentado na secretária da saleta que escolhera como sendo o seu espaço, atulhada com livros, recortes de jornal, resmas de papel onde escrevera tudo o que se lembrava duma vida agitada, difícil, cheia de obstáculos que ele torneara, passando em contramão.

Gostava daquele espaço, desarrumado, onde se movia sentindo o odor dos livros que sempre haviam feito parte do seu dia, e algumas noites de insónia e desespero. Num canto, quase esquecido, estava o computado, uma exigência que por dever de ofício tinha que consultar enquanto estava empenhado no seu trabalho, que exigia muita pesquisa, vasculhando e tentando decifrar os enigmas, as armadilhas, as mentiras, o horror, as ameaças, que para mentes doentias era o motivo de horas, noites sem descanso vasculhando na internet o pior que a sociedade da informação tinha para oferecer.

António estava doente e só. E ao pé da porta, crescendo cada dia, a ameaça do morto-vivo, aguardava o momento.

A folha de papel em que tentara começar e escrever um livro, permanecia em branco. Hesitava sobre o tema. Afinal ele tinha muitas histórias para contar, histórias que também eram os retalhos da sua vida.

Histórias sobre a guerra, histórias de amor e desamor, casamentos e divórcios. Mas a memória não o deixava sair do limbo em que se perdera.

Lembrou-se que também escondera segredos.

A caixa de cartão, guardado num recanto da estante dos livros, escondia retalhos da sua vida e seus segredos. Afinal talvez encontrasse entre os papéis a inspiração para escrever o livro.

Levantou-se e cambaleando abriu a caixa de Pandora.