quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

UMA NUVEM NEGRA

                                            Desenho de Guilherme Camarinha
                                             Faculdade de Direito de Lisboa
                                 MANUFACTURA TAPEÇARIAS DE PORTALEGRE


CAPÍTULO XVIII

Após ter confirmado a identidade do cadáver, Luísa, a viúva, respondeu a algumas perguntas do Subinspector Gonçalves.
O Ministério Público deu entretanto o acordo à retirada do cadáver e cumpridas as formalidades, Luísa e o irmão regressaram ao Porto, tendo previamente contratado uma Agência Funerária para o transporte para Braga, onde o cadáver deveria ser sepultado.
Pedro e Carlos tomaram o comboio do fim do dia e seguiram para a cidade do Porto.
No trajecto foram ligando os factos e delineando a estratégia de investigação. Sentiam que o corpo encontrado representaria apenas a ponta do iceberg e que porfiando na colheita de informações chegariam ao núcleo do que admitiam ser uma organização criminosa. Mas estavam no princípio e o caminho não seria fácil.
Dormiram num hotel do centro da cidade, bem perto dos serviços centrais do Banco onde o Bernardo trabalhava.
E começaram logo por obter a confirmação duma suspeita. O Director de Pessoal, consultou no computador os dados do registo de pessoal, imprimiu e foi lendo.:
- O Dr. Bernardo dos Santos, começou a trabalhar neste Banco no ano de 1996, numa agência em Matosinhos, deu provas de excelente desempenho, formou-se em Economia enquanto trabalhador estudante. Em 2003, assumiu funções da Direcção Financeira Internacional, sendo responsável por um dos Departamentos.
Sem que nada o fizesse supor, decidiu em Dezembro de 2008, portanto vai fazer três anos, pedir a rescisão do contrato. Lembro-me que o pedido foi analisado numa reunião do CA, que antes de decidir promoveu uma Auditoria exaustiva de todas as operações em que o Dr. Bernardo estivera ligado. No pedido de demissão o nosso colaborador não mostrara insatisfação, não constava ter sido aliciado pela concorrência. Perante a inexistência de actos ou situações menos claras no Departamento sob sua responsabilidade, o CA optou por convocar o colaborador e tentar perceber a razão da demissão.
Nessa reunião o Dr. Bernardo confirmou apenas que se sentia cansado, receava ter uma depressão e por isso, e só por isso, precisava de mudar de vida, dando mais apoio à família. E até se comprometeu por escrito, que não iria exercer a mesma actividade em qualquer outra instituição financeira em Portugal.
E a demissão foi assinada de comum acordo.
- Diga-me Dr. Joaquim Silvestre, o compromisso assinado pelo Dr. Bernardo referia a sua renúncia ao exercício da mesma actividade num Banco em Portugal, mas nada o impedia de prestar serviços de consultoria e não só, desde que em qualquer instituição financeira fora do País, é assim que devo entender, perguntou o Subinspector?
- Tem razão senhor Inspector, é assim. E então o Dr. Bernardo que dizia estar cansado foi trabalhar num fundo financeiro sediado num paraíso fiscal e com um simples escritório de representação em Portugal, mais propriamente aqui no Porto. Mas sabe como é, fomos enganados mas ninguém gosta de o reconhecer.
- Imagino que sim, disse o Inspector, e naturalmente ele aliciou clientes importantes do vosso Banco?
- Compreenda Inspector não lhe poderei dar essa informação, pois nem a posso garantir.
- Mas o senhor sabe o nome do Fundo e a morada aqui no Porto, não é verdade?
- O Dr. Silvestre, não respondeu. Hesitou um pouco, depois entregou à Polícia o documento que imprimira e no verso escreveu algumas palavras, dizendo:
- Lamentavelmente não poderei dar mais informações o que vos disse e escrevi é tudo quanto sei.
Pedro sorriu para o colega, despediram-se e saíram para a rua. Enquanto tomavam um café, Carlos comentou:
- A mim parece-me que o nosso amigo falou bem, mas o que disse não nos vai valer de nada, a não ser que o recado que ele escreveu no papel que te deu tenha algum interesse. Será assim?
- Amigo, não te escapou nada. O homem teve medo de falar, mas escreveu o caminho. Vais ver que ainda vamos colocar gente fina em sobressalto.
Vamos fazer assim, diz Pedro. Eu não acredito que o escritório do Bernardo ainda esteja aberto. Tu vais confirmar e tenta obter informações junto dos vizinhos. A morada está aqui escrita no papel. Inventa qualquer coisa mas não fales em Polícia. Eu aproveitarei e irei falar com os colegas do Porto, pode ser que eles saibam algo sobre a actividade do dito Fundo. Tenho aqui o nome que o nosso amigo escreveu.
Depois vamos almoçar a um restaurante que não visito há bastante tempo. É o restaurante o Buraco na Rua do Bolhão. Quem chegar primeiro reserva a mesa.




segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

UMA NUVEM NEGRA

PINTURA DE GUILHERME CAMARINHA
Exposta sala de sessões da Cãmara Municipal do Porto
TAPEÇARIAS DE PORTALEGRE

CAPÍTULO VII

Passou a noite a desenhar esquemas, caminhos e a tecer conjecturas.
Tudo o que sabia, era tão pouco, passava em quadros que ia percorrendo num determinado sentido. O homem desconhecido fora executado.
Todavia  no seu subconsciente havia um sinal que lhe dizia que ele estaria a seguir o caminho errado, o homem ter-se-ia suicidado.
Hesitou, o raciocínio lógico não combinava com a hipótese suicídio, mas?  
Deixou pairar a dúvida, adormeceu e de manhã saiu de casa directamente para o Guincho. Preparou-se para esmiuçar o terreno e os arbustos e fendas rochosas das arribas. Não tinha equipamento de pesca mas convencera o Alfredo, um colega pescador, a emprestar-lhe o equipamento necessário. Pelo que na mala do carro levava os utensílios.
Chegou cedo, havia bastante movimento na Auto-estrada mas no sentido Cascais Lisboa e por isso apenas perdeu algum tempo a atravessar Cascais e encontrar da estrada para o Guincho.
Era uma manhã cinzenta e ventosa desagradável para quem se quisesse dedicar à pesca.
Montou a cana, lançou o fio com o anzol tão longe quanto foi capaz, mas não se saiu nada bem. O lançamento ficou curto, o anzol nem chegou à água, estava maré baixa, e ficou fixo numa fenda da rocha.
Sentou-se na beira da ravina. Só tinha dois caminhos, ou cortava o fio mas não tinha nenhum anzol suplementar ou teria que se aventurar a descer até à rocha ,onde o equipamento ficara preso. Optou por descer.
O local era mais agreste do que parecia. Escorregou algumas vezes e salvou-se agarrando a raiz de arbustos que, por sorte, resistiram ao seu peso. Desenvencilhou-se da situação e ao escalar a rocha que lhe prendia o anzol, pareceu-lhe ver  debaixo da água de numa cavidade da rocha, um objecto pequeno mas familiar. Pego nele e sorriu, acabara de encontrar uma chave típica de cacifo e tinha marcado o número B 45.
Voltou para trás, no preciso momento que uma forte e intempestiva chuvada se abateu sobre o local. A nuvem negra, como que lhe apressara a descoberta. A chuva pouco importava, cortou o fio de pesca, arrumou tudo no porta-bagagens do carro e regressou ao trabalho.  
Exultava, aquela chave abriria um cacifo que esconderia a verdade. Agora teria de que tentar reconstruir ou inventar o caminho que a vítima seguira, colando as poucas pontas que estavam completamente soltas para procurar num Aeroporto ou numa estação de caminhos de ferro o cacifo correspondente aquela chave.
Entrou no gabinete com um sorriso estampado no rosto. O agente que com ele trabalhava, tinha regressado de uma viajem de serviço e tinha novidades para lhe dar. Mas antes, riu-se com gosto da figura do colega, vestido de pescador, encharcado até aos ossos e comentou:
- Olha Pedro, para a pesca submarina o equipamento não é esse, foste enganado.
- Pois é, a pesca não é a minha especialidade, mas consegui pescar esta chave, mostrou, e que para mim vale mais do que um bom robalo. Mas vou ter de ir a casa mudar de roupa, pois apesar da excitação tenho frio.
- Vai e volta depressa, pois enquanto andaste a mergulhar nas ondas, uma senhora admitiu como possível que o cadáver fosse do ex-marido. Ela vive no Porto e calcula lá, o irmão é Polícia e mostrou-lhe a fotografia que enviaste para o comando da PSP. Ela e o irmão vieram a Lisboa e seguiram com o Diogo para a morgue. Ele telefonou há minutos e disse que a senhora identificara o cadáver.
Grande notícia Carlos, eu vou a casa mudar de roupa mas demorarei pouco tempo e não gostaria que ela prestasse declarações sem a minha presença, Tu e o Diogo esperem por mim, recomendou Pedro enquanto corria para tomar um táxi.
Pedro regressou depressa e encontrou sentada no cadeirão junto da sua secretária uma mulher lívida e com o rosto manchado de lágrimas.
-Lamento que a senhora tivesse que ver um cadáver, o que nunca é agradável, mais ainda tratando-se de alguém que conheceu bem, mas vou-lhe pedir que conte uma pouco da sua vida com o seu ex-marido, agora cadáver. É capaz de nos ajudar?
- Sim, contarei tudo que souber, mas é verdade que ver o corpo do meu marido, pai dos meus filhos me deixou arrasada. Já disse ao seu colega que reconheci o corpo que me mostraram é o do meu marido, Bernardo Augusto Esteves dos Santos.
Fomos casados quinze anos e comigo vivem os nossos dois filhos, Ana de doze e Jorge de oito anos.
Nunca nos divorciamos, mas durante mais ou menos um ano após a nossa separação, nunca mais o vi.  Bernardo deixou-se enfeitiçar por uma colega. Ficou de tal maneira fascinado que a nossa vida se tornou um inferno. Ela tomou conta do corpo e da mente do meu marido e ele passou a ser um joguete nos jogos de sedução. Esqueceu o nosso casamento e até os filhos de quem tanto gostava.
O meu marido, mesmo depois de casado e enquanto trabalhava no Banco, foi estudando e formou-se em economia. A Administração nomeou-o director dum departamento internacional, passou a ganhar muito dinheiro e a viajar pelo mundo acompanhado pela mulher que o seduziu.
Até que eu desisti. Custou-me muito, é verdade, mas não posso esquecer que quando lhe exigi que devia abandonar a nossa casa, vi no qualquer coisa nos olhos, uma sombra, uma dor, um lamento e algumas lágrimas lhe caíram. Mas ele não foi capaz ou não quis romper o encantamento em que se deixara enredar.




quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

UMA NUVEM NEGRA

                                              Lisboa   -    Original de Carlos Botelho
                                               TAPEÇARIAS DE PORTALEGRE


CAPÍTULO VI

Pode ser importante senhor Manuel, respondeu o Inspector mostrando o saco de plástico.
Se tiver sorte talvez aqui possa encontrar uma história de vida e de morte.
- Mas Senhor Inspector, como é que aquilo que aí traz, parece um telemóvel quebrado, pode contar uma história?
- Pois, parece um telemóvel partido, até poderá nada ter a ver com o crime, mas na realidade é um aparelho novo que chamam i Phone. Nele haverá muito que descobrir.
Senhor Manuel, vou pedir-lhe um favor. Para seu bem e para ajudar a Polícia a descobrir quem matou e porquê o senhor não diga a ninguém que eu encontrei este aparelho. Mas mesmo a ninguém, ouviu?
Perante o ar preocupado do guarda, Pedro foi mais explícito:
- Nós nunca sabemos se não haverá gente perigosa a procura deste objecto perdido. Acredito que quem matou o fez por desconfiar que a vítima teria escondido informações neste pequeno aparelho. Não fale sobre este assunto, e mesmo se alguém, pode até ser um cliente conhecido, lhe fizer perguntas sobre a minha passagem por este lugar e se mostre curioso pela nossa conversa, o senhor diga apenas que eu lhe perguntei se o lugar das arribas era bom para a pesca e que espécies se podia encontrar.
Não lhe vou deixar o cartão, voltarei a passar por aqui amanhã e virei equipado como um pescador domingueiro. 
Tudo o resto esqueça. É muito importante para o meu trabalho e pode ser muito importante para a sua vida. Não arrisque a falar sobre o assunto e não dê a entender que esconde alguma coisa.
Eu vou seguir para Lisboa e não se admire que dentro em breve, um carro com um casal de namorados esteja parado por aqueles lados. Serão Polícias e quando partirem, algum tempo depois, serão substituídos por outro carro, que ficará até ao entardecer. Não preste atenção, finja que são os habituais namorados.
O guarda ficou assustado mas ao mesmo tempo pensou que o assunto iria morrer por ali.
O Inspector conduziu, calmamente o automóvel, como se estivesse de passeio. Só depois de cruzar Cascais tomou a direcção da auto-estrada, mantendo um andamento irregular, para despistar algum eventual perseguidor.
Nada aconteceu, chegou ao gabinete e seguiu de imediato para o Laboratório da Polícia Científica.
Entregou o saco com o aparelho quebrado, pedindo para que o mesmo fosse analisado e tudo fosse marcado com o número G nuvem negra, que passaria a ser a denominação do crime em investigação. Quero cópias de tudo o que for encontrado, quando é que pensa poder ter alguma coisa para me dar, perguntou?
O especialista riu-se, comentou que todos pediam resultados para o imediato mas ninguém lhe perguntava se tinham alguém que o pudesse ajudar.
E acrescentou:
 - Sabe Inspector o que me acaba de entregar, pode significar muita hora, muitos dias de trabalho e o resultado ser zero. Vamos ver como é que ele está. Abriu o aparelho, constatou que ele estava mesmo muito danificado, não tinha sinal, teria apanhado água e tinha a certeza que o mesmo estava protegido com chave.
Mostrou-o colega dizendo:
- Rica prenda Inspector, vai ser um tremendo desafio, vamos a ver se o consigo vencer.
- Se o senhor não conseguir, então a eventual prova foi ao ar e vou ter de começar tudo de novo, respondeu Pedro Gonçalves. E terei de mudar o nome do inquérito de G nuvem negra, para G noite cerrada. Não me faça isso amigo Dionísio. Você consegue descobrir uma agulha num palheiro.
Como tinha prometido acertou com o comando da PSP a vigilância do local. Depois abriu o correio electrónico na esperança que alguém tivesse apresentado o desaparecimento da vítima. Mas ninguém o fizera.
Todavia a GNR de Leiria informava que o rosto do morto aparentava alguma semelhança com um condutor que tinha sido controlado numa operação stop na A1, pelas quatro da manhã, quando conduzia um Mercedes a mais de duzentos quilómetros por hora. O teste de álcool dera negativo. Os documentos tinham sido apreendidos e ele notificado para comparecer no Tribunal do dia seguinte. Contudo não cumprira.
Em anexo enviavam cópia da carta de condução e do título de registo do automóvel.
O nome do condutor era Francisco Esteves Moreira e o automóvel, pertença de um rent-a-car, fora alugado no aeroporto Sá Carneiro, no Porto.
A cada momento o mistério se adensava. O nome seria autêntico? O retrato era apenas vagamente semelhante e a única certeza que  Pedro tinha era que estaria muito longe da verdade e muito dependente dos dados que o Dionísio conseguisse extrair do aparelho.
Na realidade, apenas sentia a convicção que a vítima teria sido executada nas arribas do Guincho, e antes teria conseguido atirar fora o i Phone.
Mas ali teria sido apenas o desenlace, a história viria de outros contactos, outros negócios. Temia não conseguir encontrar o fio à meada. Isso seria para ele, como se um manto de silêncio tombasse sobre o corpo de um desconhecido.


segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

                                      



                                                        Pintura de Graça Morais
                                                        Tapeçaria de Portalegre



CAPÍTULO V

Já o previa. O crime do Guincho seria apenas a parte visível de uma história bem mais complicada. Pedro gostava de desafios, saíra-se bem até aquele dia, mas este caso aparentava ligações perigosas. Estaria perante profissionais, que executariam ordens de uma estrutura mais escondida. Tinha essa convicção, sentia a adrenalina aumentar,mas tinha que começar quase do zero.
Tinha um corpo por identificar e dos assaltantes que foram envolvidos para desviar suspeitas um, talvez o mais importante, estava morto.
Pedro regressava ao gabinete, de transporte público e aproveitava esse tempo para recapitular.
Luís Tavares, o assaltante ferido estaria a falar verdade, dali não esperava saber mais nada. O Fernando assistira a qualquer coisa que o assustara. Porventura ter-se-ia apercebido que estava a ser conduzido para uma armadilha perigosa. Pressentiu ou viu algo que não devia, sentiu-se em perigo e conseguiu fugir, levando o companheiro. O acidente não fora um mero despiste, Fernando morrera em consequência do despiste, mas estaria condenado. O acidente apenas fora um acaso que servira aos envolvidos na trama. Mas que trama?
No gabinete já tinha o relatório do Laboratório. Apenas a confirmação que o envelope não tinha impressões digitais precisas e que os CD  virgens, nunca tinham sido utilizados e que o  CD do filme era mesmo uma cópia caseira, feita de um site clandestino, muito procurado por quem se dedicava a piratear filmes, principalmente para crianças, era o disfarce, mas na realidade contendo filmes para adultos. Nada de especial fora encontrado. Todavia o computador utilizado para copiar o filme não era um computador portável e pessoal. O técnico garantia que seria um computador ligado a um servidor, o que sugeria ter sido feito por alguém que trabalhava numa empresa com serviços informáticos, ligados a um computador central. Dava como exemplo uma Repartição Pública, um Banco ou uma Empresa prestadora de serviços.
O especialista, continuaria a tentar encontrar algum traço que pudesse seguir, até ao computador principal. Mas seria um trabalho difícil e com poucas garantias de sucesso.
O relatório da autópsia era mais preciso.
Pedro leu apenas as conclusões. O corpo apresentava ferida de bala no maxilar direito, a bala tinha sido retirada e o calibre era de 9mm. Uma arma de guerra, murmurou Pedro. E continuou lendo. O cadáver apresentava equimoses nos pulsos, bem marcadas, dando ideia de ter estado amarrado durante bastante tempo.
A hora da morte fora calculada entre as dezassete e as vinte horas.
Com toda a informação memorizada e com uma cópia do croqui do local onde o carro com a vítima fora encontrado, Pedro decidiu ir ver o local.
Ficava relativamente perto de um restaurante ladeado por uma área de areia, com arbustos em redor,que funcionava como parque de estacionamento. No restaurante não havia muito movimento, meia dúzia de carros parados e um guarda sentado numa cadeira, com o boné com o nome do restaurante.
Pedro dirigiu-se ao guarda e desafiou o guarda para uma conversa sobre o movimento daquele dia.
O Senhor Manuel não se fez rogado e confessou que o dia não estava a correr muito bem e até alguns clientes habituais ainda não tinham aparecido. É a crise, dizia ele.
Pedro acenou com a cabeça e olhando para as arribas onde o carro com o cadável tinha sido encontrado lembrou:
- É a crise, tem razão senhor Manuel, até não se vêm os carros  que ali costumavam estar estacionados a ver o mar.
- A ver o mar, aquilo são namorados e olhe que costumam ser bastantes. A semana passada, durante uma tarde, contei oito, mas ontem e hoje nem um, Sabe porquê?
- Não, não faço ideia, será da crise, e riu!
- O senhor não brinque, agora não têm aparecido tantos clientes porque esteve aí a Polícia e encontrou um carro com um homem morto. O senhor percebe, se aparece a Polícia os frequentadores daqueles locais desaparecem.
- Agora me lembro que ouvi falar desse caso. E o senhor Manuel não viu nada fora do normal?
- Sim, eu até comentei com um empregado o Jerónimo, que nunca tinha visto tantos carros encostados. Eram três. Depois dois saíram e mais tarde chegou um outro que estacionou ao lado. Passou pouco tempo, eu vi um homem a correr, ouvi um carro a arrancar e mais nada. Só soube do homem morto no carro que ficou, quando a Polícia aqui apareceu.
Entretanto do restaurante saíram dois casais que se dirigiram para o carro e o senhor Manuel lá foi a correr para ajudar a manobra e receber a gratificação.
Pedro aproveitou e foi caminhar ao longo das arribas, olhando para as marcas dos pneus e para os arbustos. Não procurava nada de especial mas quando regressava do passeio, viu qualquer coisa que brilhava nas escarpas. E foi remexer. Do bolso retirou um par de luvas, um saco de plástico, pegou no que achara, esboçou um sorriso e caminhou para o carro. O senhor Manuel estava por perto, assistiu a tudo e comentou:
- Então senhor Inspector, encontrou o que queria?

sábado, 17 de dezembro de 2011

UMA NUVEM NEGRA

                                                    NAU CATRINETA - Almada Negreiros
                                                     TAPEÇARIAS DE PORTALEGRE

CAPÍTULO IV

Logo pela manhã O Subinspector Pedro Gonçalves,  deslocou-se ao Hospital de Cascais e depois da necessária identificação, aguardou a autorização médica para interrogar o ferido Luís Tavares.
Quando entrou na enfermaria, abriu o cortinado que isolava a cama onde o ferido dormitava com a respiração tranquila.
Não esperava aquela surpresa, ele conhecia o doente, já o tinha encontrado num processo que havia investigado e lembrava-se de que ela fora condenado a cinco anos, mas pelos vistos ou fugira ou andaria em liberdade condicional.
Acordou abanando-lhe a cabeça e o Luís abrindo os olhos ia começar a protestar quando reconheceu o Polícia. Calou-se e ensaiou um gemido, que apenas fez rir o Subinspector.
- Então companheiro, a fingir que não sabes quem eu sou? Não vale a pena, eu nunca me esqueço duma cara  e tu também não.
O ferido continuava de olhos fechados mas parara os gemidos.
O Subinspector falou-lhe ao ouvido: - Tu tens uma folha de serviço bem recheada, já foste apanhado e condenado, mas talvez nunca te tivesses metido numa encrenca como a que agora arranjaste. Assassínio, com os teus antecedentes, vais ter uma estadia prolongada na prisão.
O ferido abriu de repente os olhos e fitou o interlocutor, dizendo numa voz sumida:
- Assassínio? O senhor Inspector sabe que eu nunca matei ninguém. Por favor não me acuse de um crime que não cometi. O meu sócio morreu, já soube, mas foi no acidente e até era ele que ia a conduzir. Eu não fui culpado.
- Olha lá,  tu pensas que eu estou aqui porque o teu sócio se espatifou no carro? Achas que eu não tenho mais nada que fazer? Ou estás a esquecer o desgraçado que ontem ao fim do dia, estava no carro parado no Guincho a ver o pôr do sol e vocês assaltaram e mataram?
- Garanto-lhe senhor Inspector, não sei de que crime fala. Nós vimos um carro parado, com um homem ao volante, não nos agradou o cenário e fugimos. Não roubamos nada.
-Pensas que eu vou acreditar nessa mentira? Pensa bem, é melhor contares a verdade, mas bem contada para eu ver o que posso fazer por ti. 
- Se eu contar o que se passou o senhor vai pensar que eu estou a inventar, diz o ferido com ar cada vez mais preocupado.
- Experimenta e logo te digo o que penso. Começa lá a contar a verdade, mas toda, ouviste?
- Então foi assim. E foi com os olhos nos olhos que começou a contar ao Polícia a sua aventura.
- O Fernando estava no exterior do Casino Estoril a ver se alguém se esquecia de fechar a porta do carro e fosse mais fácil roubar. Um dos porteiros começou a olhar desconfiado e ele foi ter comigo ao lado oposto ao parque de estacionamento.Acabara de chegar quando um automóvel preto,  parou para perguntar onde era a entrada para o parque.  O condutor era um homem ainda novo, forte e a seu lado uma mulher loira que dava nas vistas. O Fernando foi à frente do automóvel até à cancela do parque e quando se despediu o condutor perguntou-lhe se ele era homem para ganhar, sem perigo duzentos euros. O Fernando virou as costas e ouviu a mulher falar alto, protestando que o companheiro não servia para nada. Queres ver disse?
- Saiu do carro, e aproximando-se do Fernando refez a proposta. 
-  Ele falou no dinheiro mas não te disse que eu também sou parte do prémio. Assim já queres?
O Fernando aceitou, mas com a condição de que eu também faria parte do grupo e assim teria que ser prémio a dobrar. Ela aceitou.
Fernando seguiu do carro do casal enquanto que eu fui conduzindo o Honda  que tínha acabado de roubar. Chegados perto do Guincho,  o carro negro com o casal e o meu amigo, entrou num caminho de terra e foi parar aí a uns vinte metros de outro carro que lá estava parado. Eu  segui em frente e entrei no desvio um pouco mais além, apaguei as luzes e desliguei o motor. Depois ouvi barulho. Desci do carro e vejo o Fernando a correr na minha direcção. Foi ele a entrar para o lugar do condutor, arrancou com as luzes apagadas enquanto pela janela me chamava. Assim que me sentei, acelerou, ganhou a estrada de asfalto e de luzes apagadas acelerou tudo o que o carro foi capaz de dar. Vimos vir na nossa direcção um carro com os faróis no máximo, guiando a alta velocidade no meio da estrada e o Fernando para evitar o choque entrou na areia, despistou-se e ali acabou a nossa aventura.
Não sei mais nada, o Fernando enquanto guiava como um louco e só dizia entre dentes: Maldita a hora ou o momento em  que estes gajos nos encontraram. E depois foi o silêncio.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

UMA NUVEM NEGRA




JULIO POMAR
                                                         


3º. CAPÍTULO

Com o envelope endereçado à Polícia posto de lado, o Subinspector continuava a análise dos documentos da carteira encontrada no bolso do suicida.  
Retirara tudo, mas para além de papéis sem significado, apenas encontrara o Cartão de Cidadão. Nem um cartão bancário ou um cartão de visita. Nada, parecia que a carteira teria sido rebuscada.
Carta de condução também não tinha. Cada vez mais pressentia que o que parecia ser um simples suicídio era capaz de encerrar algum mistério.
Falou para a brigada que se ocupara da vistoria do carro para esclarecer se através da matrícula haviam conseguido identificar o proprietário. A resposta não o surpreendeu. O carro tinha sido dado como roubado nos arredores do Casino do Estoril e o proprietário já o tinha confirmado. A PSP acrescentou que o cartão de cidadão em nome Bernardo Augusto Lima dos Santos havia sido dado como perdido alguns dias atrás.
O Subinspector começou a desenhar o cenário. O homem encontrado morto dentro de um carro roubado teria sido assassinado e tudo o mais seria uma tentativa de camuflagem. Como e porquê é que tinha de descobrir!
Mas, perguntava-se, quem seria afinal o morto? Descobrir a identidade teria de ser o primeiro passo. Foi à Morgue apenas para confirmar que o rosto do cadáver correspondia ao retrato do cartão de Cidadão e como já esperava, não era da mesma pessoa.
Deu instruções para que fosse localizado o titular do cartão, queria ser ele a proceder ao interrogatório e mandou averiguar se em qualquer posto das Forças de Segurança ou nas urgências dos Hospitais de Lisboa, Porto, Coimbra e principalmente Braga, houvera alguma denúncia do desaparecimento de um homem que aparentava ter à volta de quarenta anos.
Mas o que mandara fazer era rotina, não esperava grandes resultados e tomou a decisão de abrir o envelope.
Admitiu que o referido envelope tivesse sido manuseado sem luvas, ninguém pensaria em crime quando tudo parecia ser evidente. Demasiado evidente, reconhecia agora. Calçou as luvas e com todo o cuidado abriu o sobrescrito. Retirou quatro CD embrulhados em papel branco de fotocópia. Franziu o nariz, algo lhe dizia que aqueles CD seriam apenas mais uma peça do mistério que se adensava minuto a minuto.
Escolheu um e introduziu no computador e esperou. Pensava que estivesse protegido com qualquer palavra-chave mas não, era um CD completamente inofensivo. Um filme da Pantera Cor-de-rosa. Ficou enfurecido alguém andava a brincar.
Voltou a guardar tudo no envelope, meteu num saco de plástico, fechou e foi levá-lo ao Laboratório da Polícia Científica. Ainda encontrou o colega responsável contou-lhe em resumo o que sabia e pediu a pesquisa de impressões digitais e a leitura por especialistas do conteúdo dos CD, não fosse haver alguma mensagem, disfarçada no meio de filme.
Foi para casa, a mulher percebeu que ele estava naqueles dias em que era insuportável e não fez muitas perguntas. Pedro sentou-se no sofá, fechou os olhos e rebobinou as horas recentes. De repente lembrou-se que alguém lhe falara de um acidente verificado perto do local e que desse acidente resultara um morto e um ferido. Tinha gravado o número do telefone do oficial da Polícia que lhe tinha comunicado o crime, ligou e quis saber mais pormenores.
O Comissário confirmou que o ferido Luís Tavares se encontrava no Hospital de Cascais, sob prisão porque era um foragido suspeito de envolvimento em assaltos a viaturas, designadamente, viaturas isoladas no eixo Estoril, Guincho.  
Pedro desanuviou o semblante e vislumbrou uma pequena luz, que talvez o ajudasse a explicar a nuvem negra que envolvia o crime.





segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

UMA NUVEM NEGRA


                                                   José de Almada Negreiros

Capítulo II

Os assaltantes conduziram de luzes apagadas e a toda a velocidade na estrada de acesso à Malveira da Serra. Conheciam bem o caminho, já o haviam feito mais de uma vez, pois era ali que escolhiam o itinerário para a fuga após cada assalto. Sabiam que a Polícia andava à sua procura, que já terem sido identificados por vítimas de roubo e agressões sexuais e o que menos precisavam, era serem considerados suspeitos  no crime da morte do condutor do veículo abandonado nas arribas.  
O seu único pensamento era de entrar na serra de Sintra, abandonarem o carro roubado e regressarem a pé, por caminhos da serra, que já conheciam. Mas a velocidade a que conduziam foi fatal. Numa curva apertada, para se desviarem de um carro que circulava em sentido contrário com os faróis no máximo, entraram na areia que invadira parte da estrada, perderam o controlo da viatura, capotaram dando várias voltas até se imobilizarem, numa árvore.
O condutor, levava o cinto de segurança apertado, ficou preso, por momentos inconsciente, mas sentiu o cheiro do combustível derramado. O medo de incêndio deu-lhe forças para, de rastos e gemendo de dores, abandonar o carro, acabando por ficar imobilizado na ravina.
Perdeu os sentidos e só os recuperou quando os paramédicos de uma ambulância o imobilizavam e prepararam para transporte ao hospital. Na ambulância ouviu alguém falava que o outro acidentado tivera menos sorte. Fora encontrado já sem vida. O colega, o Fernando, morrera e ele fora o culpado pelo erro de condução. Perdera um amigo mas, quando a polícia o procurasse, iria afirmar que Fernando seria o chefe e ele apenas o condutor. Talvez assim fosse melhor para ele. E, no meio da tragédia, sorriu.
A Polícia foi investigar o carro parado nas arribas e encontrou o corpo já sem vida do condutor. Chamou o Comando que comunicou a ocorrência à Polícia Judiciária.
Ainda não eram oito horas da noite, o carro estava sinalizado e a Polícia Científica dera o acordo à retirada do cadáver para ser efectuada a respectiva autópsia. Encontraram a arma do crime, uma pistola caída no tapete do automóvel, e tudo apontava para um suicídio. Fizeram à colheita de impressões digitais e a recolha de todos os documentos na posse do morto e guardados nos compartimentos interiores da viatura.
O carro foi então rebocado para as instalações da Polícia.
O Inspector de serviço era o subinspector Gonçalves, um homem ainda novo, de óculos graduados, que cursara direito e acabara por optar por uma carreira de Investigação Criminal.
O morto tinha toda a documentação na carteira que não fora mexida. Começou por ver os dados do Cartão de Cidadão. O nome, Bernardo Augusto Lima dos Santos, nascido a 24 de Janeiro de 1969, natural da freguesia da Sé, concelho de Braga.
Profissão economista.
Estava a verificar os documentos da carteira quando um colega lhe foi entregar uma carta que fora encontrada junto aos documentos do carro. Era um envelope fechado, volumoso e tinha escrito o endereço. Para sua surpresa, o destinatário era a própria Polícia Judiciária.
De repente, o que parecia ser um simples suicídio, poderia ser algo mais.  
Recostou-se na cadeira, olhando para o envelope, sem saber que decisão tomar. Abrir ou entregar à Direcção?

sábado, 10 de dezembro de 2011

UMA NUVEM NEGRA

                                                             Edvard Munch

Era um sexta-feira no final de mês de Outubro do ano 2010. O dia estivera chuvoso triste e frio mas no final da tarde o sol conseguiu romper as nuvens e começou a descer no horizonte, escondendo-se por detrás do mar azul e revolto.
O vento soprava de norte e ao longe, por sobre a serra de Sintra e Bernardo, sentado ao volante do seu automóvel, deu pela aproximação duma nuvem negra, que lentamente se deslocava tingindo de escuro a encosta da serra.
Bernardo parou o automóvel num carreiro perto da estrada para o Guincho. Era o único carro à vista para os automobilistas que circulavam na estrada, e que para ele olhavam com um sorriso.
Não era surpresa ver um carro imobilizado naquele promontório. Era um lugar escolhido para encontro de namorados.
Todavia naquela tarde, quase perdido naquele local pouco acessível dentro do carro não estava um casal apaixonado.
Estava Bernardo, só com os seus pensamentos, as suas amarguras e o seu desespero. Só, apenas acompanhava a beleza do sol que se escondia.
Um condutor circulou lentamente pela berma da estrada afrouxou para dar uma espreitadela. Olhou para o amigo do lado e entenderam-se. Conseguiram ver que dentro do carro apenas estaria uma pessoa que, fumava cigarro atrás de cigarro. Não viram mais movimento e acabaram por parar longe, mas de maneira que pudessem vigiar o movimento do ocupante da viatura.
Eram dois homens, jovens de ar suspeito e a sua presença ali não era fortuita ou sequer ocasional. Andavam por ali, procurando um casal pouco previdente, que pudessem assaltar sem correr risco.
Era a sua forma de agir, já tinham sido identificados pela Polícia mas não desistiam. Trocavam de carro, roubado nas ruas de Cascais, e conseguiam despistar a Polícia.
Aquele carro isolado podia ser um alvo fácil. Esperaram que o sol se escondesse.
E o sol foi descendo e a nuvem negra começou a fazer pairar a sombra sobre o mar azul.
De repente o condutor do automóvel que vigiavam, abriu a porta e saiu para fora.
Deu alguns passos na direcção das rochas onde as ondas se desfaziam, parou acendeu mais um cigarro, que fumava lançando o fumo em espirais que se iam diluindo no ar.
Bernardo acabou o cigarro, virou-se e ficou de frente para o automóvel dos assaltantes, parado alguns metros além. Não fez um gesto sequer, olhou como se não tivesse visto, acendeu novo cigarro e entrou para o carro. No mesmo momento o sol escondera-se e a nuvem negra tomara conta do lugar.
Luís e Fernando, os assaltantes tiveram medo. Qualquer coisa lhes dizia para fugir. Ligaram o motor, engrenaram a marcha a trás para retomar o caminho principal e ao passarem mais perto do automóvel ouviram um ruído seco, que já conheciam. Ouviram um tiro. Aceleraram e fugiram.
No carro, Bernardo havia decidido mergulhar na noite, e com um lágrima furtiva, encostou a pistola no peito e disparou.
A cabeça caiu sobre o volante e premiu o cláxon. O som estridente, parecia um grito de revolta e dor, rompeu a quietude do local e tocou, tocou até que de repente se calou. Como a vida do Bernardo, também o grito se esgotara.


quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

ENCONTRO COM O DESTINO

                                               Manuel Gargaleiro

17 – NOVA IORQUE

            Paulo fugira do Paraíso que ajudara a criar. Ainda tinha dúvidas sobre o seu comportamento com as duas amigas que tinha encontrado nas férias de verão. Lamentava sobretudo não ter tido a coragem de enfrentar Li mas as feridas do passado não estavam ainda cicatrizadas.
A colega Marie com quem partilhara a execução do projecto e também o leito, cansara-se. Não teve qualquer problema em lhe dizer que gostava de ter sexo, mas com paixão e pelo menos com entrega. Paulo era apenas a parte física, nunca se entregara e parecia até sentir alívio sempre que a relação terminava.
Ela não entendia, até admitira que talvez a culpa fosse sua, ela não conseguira despertar a paixão do companheiro e logo, não seria a mulher que Paulo precisava. E daí o fim da relação seria inevitável.
Fora ainda mais frontal, dizendo que o problema de Paulo, e existiria um problema, seria de ordem psicológica, que ou ele ou enfrentava ou lhe arruinaria a vida.
Apesar do conselho, Paulo continuou metido no casulo em que se encerrara largos anos atrás. Reconheceu que a atracção por Li, fora na realidade o fascínio por uma mulher exótica, que mais tarde ou mais tarde acabaria por se esfumar. Ele fugia do amor.
E bastou algum tempo afastado para se esquecer e ter decidido acabar o que, na realidade, nem sequer tinha começado.
Falou com o Primos, arranjou um substituto, fez as malas e seguiu para Nova Iorque. Escolheu um pequeno hotel no centro de Manhattan, fez amizade com o proprietário e, quase sem querer foi convidado a dirigir o hotel. O desafio, mais um, seria o de reformular o interior mantendo a traça original, uma questão que exigia muito cuidado e bom gosto.
Paulo aceitou sem hesitar. Procurou um apartamento, encontrou um na zona de Chelsea, alugou para ele e para receber a Irmã que estaria para chegar.
Cecília chegou pelo Natal. Vinha feliz, cheia de sonhos.
Para uma jovem como ela, a cidade era um mundo para descobrir. A sua alegria e entusiasmo foram um bálsamo para Paulo. Ainda estava na fase de discussão do projecto de arquitectura, tinha algum tempo livre e passearam pela cidade.
A noite de Natal foi diferente. Pela primeira vez, ao fim de alguns anos, Paulo voltara a sentir o calor da família. Eram dois irmãos que estando sós tinham tempo para partilhar recordações. A certa altura, Cecília, a irmã rebelde, perguntou ao Irmão mais velho o que se tinha passado entre ele e o Pai para que ficassem tão distantes.
Paulo olhou nos olhos de Cecília, e assumiu contar a sua infância, as feridas não cicatrizadas, a solidão e o desespero.
Fixou o olhar longe, como perscrutando as memórias do passado e começou a falar:
- Penso que nunca ouviste falar duma irmã mais velha, chamava-se Felisbela. Era muito doente e o Pai encontrou uma raparia numa aldeia distante e levou-a para nossa casa para lhe fazer companhia. Era uma rapariga da mesma idade e foi ela que acompanhou a nossa Irmã até à sua morte e foi a minha única amiga. Eu tinha quatro anos quanto Felisbela morreu e a partir daí, fiquei ainda mais ligado a Madalena.
Mas o Dr. Frederico, o nosso Pai começou a perseguir a minha amiga. Ela era agora uma rapariga muito bonita e o nosso Pai não tinha escrúpulos. Um dia ,em que eu estava no quarto dela ouvindo uma história, ele entrou de rompante, eu escondi-me  debaixo da cama enquanto ele violou a Madalena. Eu tinha sete ou oito anos, ouvi o choro e os gritos da pobre rapariga, ninguém ouviu e eu, o seu único amigo, teve medo e ficou escondido.
O nosso Pai saiu prometendo voltar mais vezes e eu que assisti à violência, fugi e nunca contei a ninguém.
Mas um dia Madalena fugiu e eu nunca mais a encontrei. E eu passei a viver com a vergonha e o ódio.
No meu aniversário dos dezoito anos, o Pai embriagado, tentou que eu o acompanhasse num passeio. Ganhei coragem e acusei-o da violação da minha amiga. Tinha guardado aquele segredo, mas o ódio crescera e não me contive. Bati-lhe com toda a raiva acumulada ao longo de mais de dez anos.
A partir desse dia fiquei sem Pai e ele sem filho. Tudo o mais foi fingido. Mas toda a cena me perturbou e ainda perturba, tantos anos depois.
Paulo parou, olhou para a irmã que tinha o rosto coberto pelas mãos e tremia enquanto soluçava. Ela percebera o drama do irmão e apenas dissera, num abraço sentido:
 - Esquece, não te martirizes mais. O Pai está velho, já não é a mesma pessoa, faz por lhe perdoar. A Madalena, a tua amiga, certamente seguiu a sua vida e também esqueceu.
Paulo chorou, nem se lembrava de ter chorado desde aquela malfadada noite em que ainda criança, ouviu o pedido de ajuda e teve medo. Como ele desejara a morte do Pai. Com as lágrimas e o carinho da irmã, tinha finalmente escorraçado o ódio que tinha acumulado. Cecília fora o apoio que ele precisara para retomar o gosto de viver e de amar. Tinha vinte e oito anos de idade, vinte dos quais de revolta e dor.

FIM




domingo, 4 de dezembro de 2011

ENCONTRO COM O DESTINO

                                                              PAULA RÊGO

16 - VOLTAR DE PÁGINA

A noite havia sido uma provação. Sonhara tempos passados, ela e a Mãe, faziam a festa e eram felizes. Não havia mais nada nem ninguém que perturbasse aquela união tão forte entre as duas.
Acordou estremunhada, o sonho acabara e olhava em redor da sua vida vazia. O dia amanhecera com uns tímidos raios de sol a iluminarem a neve nos telhados, nas ruas e lá ao longe o pico das montanhas.
Preguiçou, ainda era muito cedo, não havia movimento nas ruas, mas de repente Bárbara sacudiu o torpor, afastou as lembranças e preparou-se e saiu de casa, vagueando ao longo do cais. Encontrou aberto um café que já conhecia, entrou encomendando o pequeno almoço e sentou-se na mesa do costume. Os empregados estavam alegres e felizes. Os sorrisos fizeram-na sentir menos só.
Aproveitou para continuar a ler o pequeno diário que a Mãe deixara.
Voltou a página.
Não era um diário cronológico era sim um história de vida, sem datas, só dias passados entre a alegria, pouca e a tristeza, muita.
Alguns dos textos não eram legíveis, muitas palavras manchadas, frases riscadas com força como se a Mãe tivesse querido riscar a própria vida.
Recomeçou a ler e com tal força que, acabou por assumiu a protagonista. Não estava a ler mas a viver, devorando as frases com vontade de chegar ao fim. Sabia o que a Mãe lhe havia contado, reconhecia que a verdade podia doer, mas de uma vez por todas tinha que saber. Não era Bárbara de vinte e quatro anos de idade, era a  voz da Mãe, uma jovem adolescente, que sangrava aquelas palavras escritas.
E recomeçou!
“ Com a morte da pobre Felisbela, por quem chorei lágrimas sentidas, pensei que os meus serviços iriam ser dispensados.
Não foi assim, tinha treze anos de idade mas passei a desempenhar os serviços de ajuda na cozinha e na limpeza da casa. Quando, depois de um dia de trabalho, regressava ao meu refúgio, levava comigo o desespero, o cansaço e a vontade de ser livre. Mas sobre as grades da cama tinha uma campainha que tocava de dia ou de noite, sempre que alguém precisava dos meus serviços.
Pele primeira vez, conheci a família que servia.
A Senhora era tão fria como um bloco de gelo, até para um filho de dois anos, gerado sem amor e permanentemente indisposta com outro filho que carregava no ventre.
O marido Dr. Frederico, era um homem mais simpático mas passava o tempo em viagem, dizia, cuidando das propriedades da família.
Conheci uma simpática senhora, a Dona Mercedes, tia da dona da casa e que era convidada de vez em quando, como ela me dizia, apenas para completar o lugar, eventualmente, vazio na mesa.
A Dona Mercedes fora professora. Gostava de mim e eu gostava dela. Foi com ela que, às escondidas fui lendo e estudando. Tinha quinze anos de idade e a Dona Mercedes preocupava-se com o meu futuro. Falou-me muitas vezes que teria que evitar o Dr. Frederico. Ele não é boa gente a aproveitará a tua inocência para abusar de ti. Tem sempre a porta do teu quarto fechada e sem não tiveres chave utiliza a cadeira como segurança. Ao ouvires alguém tentar entrar, grita com toda a força, alguém te poderá ajudar.
Eu confiei naquela bondosa senhora e contei o meu desejo de fugir. Ela deu-me um cartão com a morada da filha, e algum dinheiro, recomendando que devia fugir de casa e procurar a morada da filha. Ela me ajudaria.
Dona Mercedes pediu ajuda para a criança perdida naquela casa. Era o filho dos Patrões,  uma criança triste com pouco mais de quatro  anos e eu passei a ser para ele o colo amigo, que ele nunca conhecera.
Ele era o irmão que eu não tivera e a quem contava as histórias que ia lendo nos livros que a Dona Mercedes me dera.
Mas Dona Mercedes partiu, e eu fiquei chorando. Só o Paulito pegava na minha mão e me pedia para não chorar. E dizia entre lágrimas que estaria sempre comigo.
Deveria ter fugido naquele dia. Mas tive medo e deixei-me ficar presa nos braços de uma criança.
Mais tarde, o Dr. Frederico passou a vigiar-me de perto, com o pretexto de também acompanhar o filho. À noite e  por mais do que uma vez, dei por ele rondando a porta do meu quarto. Mas eu tinha seguido o conselho da Dona Mercedes, a porta estava fechada e trancada com uma cadeira.
Foram dois anos de pavor, de inferno. Até que um dia, tinha acabado de fazer dezasseis anos
Bárbara parou. A frase ficara inacabada e a seguir o vazio.
As páginas seguintes tinham sido arrancadas, mas teve um pressentimento de que conseguiria completar a história de Madalena, a sua Mãe. Precisava apenas de juntar alguns detalhes e confirmar com outra pessoa. E sentia que essa pessoa teria de ser o Paulo José, que ela conhecera no Canadá durante as férias de verão. Não queria saber mais pormenores, só o suficiente para fechar o livro das recordações. A atracção que sentira por Paulo era a voz do sangue, disso deixara de ter dúvidas. Paulo seria seu irmão de Pai.
Foi um dia de Natal que nunca mais esqueceu. Mas pouco a pouco a sua vida iria retomar o seu caminho e o coração estava agora livre.
Pensava como a vida nos reserva surpresas. Decidira partir para bem longe mas foi de facto, ao encontro com o destino. E como a Mãe lhe aconselhara, iria fazer por esquecer,  desta vez disposta a correr ao encontro do amor.


quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

ENCONTRO COM O DESTINO

                                                    Júlio  Resende

15 – DE VOLTA AO PASSADO

As confissões alimentaram o germe da desconfiança entre as duas amigas.
A chinesa LI ficara muito surpreendida ao saber que a amiga teria sido confidente do homem,
de quem se tinha enamorado. E que nada dissera.
Não considerava essa omissão uma razão para sentir ciúme. Já havia reconhecido que Paulo fora apenas um encontro fortuito, que não teria, como não teve, um sinal de paixão. Tinha sido uma lembrança que depressa iria esquecer.
Mas, passou a olhar para Bárbara de forma diferente. Não mais a passou a ver como uma amiga em quem pudesse confiar, e o mal ficou.
Também Bárbara sentira que a amiga, lendo apenas parte da carta de Paulo, estava a testar alguma reserva ou a sua sinceridade. Desconfiava que Li tentara confirmar suspeitas e por essa desconfiança não lhe perdoaria.
Na verdade recebera apenas uma carta de Paulo, onde ele se mostrava indeciso quanto aos seus sentimentos, confessava o receio de poder magoar alguém que pudesse esperar dele algo que ele não se sentia ser capaz de dar. Tinha sido franco, dizendo que Li o tinha deslumbrado, como nunca se sentira antes, mas continuava a ter medo. Acordava desejando-a mas a fascinação do momento, transformava-se em temor, que nem sequer conseguia explicar.
Por sua vez Bárbara havia respondido à carta, recomendando que as dúvidas e os medos não teriam razão de ser se, ele fosse franco e honesto com a mulher que dizia amar. Para isso deveria explicar as suas dúvidas, mas que o deveria fazer olhos nos olhos. Sugeriu a Paulo lhes fizesse uma visita, e ela estaria fora, enquanto ele e Li procurariam o caminho.  
Paulo não respondera e nada dissera. E por qualquer razão que não conseguia entender, Bárbara ficou feliz por a correspondência com Paulo ter tido o seu final.
Com a aproximação do Natal, uma época que sempre fora especial, enquanto ela e a Mãe, faziam a consoada, conversavam até de madrugada, comendo filhoses e azevias que a Mãe fazia com muito esmero, Bárbara desejou ficar só. Não queria juntar-se aos amigos que a tinham convidado e até esperava que Li aceitasse os convites que, dizia, lhe teriam feito.
Naquele ano assim foi. Li iria passar o período de férias a Nova Iorque, tinha lá familiares. Também anunciou que encontrara um companheiro, dizia ser um amigo especial, mas que talvez viesse a ser mais do que isso e, portanto, deixaria de partilhar a casa com Bárbara. Já tinha encontrado um apartamento perto da Universidade onde ambos davam aulas e onde iria viver com o companheiro.
E foi assim, de uma forma fria que terminara a amizade entre as duas.
Bárbara reconheceu que aquela fora a melhor solução. Ela iria ficar só, partilhando o apartamento apenas com as suas recordações.
A noite de Natal doeu, a solidão começava a pesar e as horas não passavam.
Par combater o mal-estar, decidiu voltar a abrir a caixa onde a ver a Mãe guardara as suas memórias. Retirou as fotografias que espalhou pela cama e olhou uma a uma.
Colocou a caixa sobre a mesa e, pela primeira vez, notou que a caixa estava forrada e que um dos lados estava descolado. Com a mão trémula procurou no forro e encontrou um pequeno diário. Ficou na mão com o pequeno livro, não era maior que um pequeno caderno escolar. Leu a primeira página:
“Esta é a história da minha vida. Começou quando com dez anos de idade, me levaram da casa dos meus Pais.
Depois foram anos de sofrimento até que aos dezasseis anos me libertei e recomecei a viver. Mas as marcas daqueles seis anos ficaram marcadas para sempre. Tudo começou, e mudou de página. Bárbara ia continuar a ler. Tinha curiosidade, mas resolveu salvar um pouco da alegria da noite de Natal. Não era muita, mas ainda tinha recordações recentes. Amanhã, decidiu, amanhã vou ler a história de minha Mãe.