sábado, 27 de outubro de 2012

O TEMPO DOS PRODÍGIOS

Ano 2002
Os factos mais relevantes começam com a entrada em vigor do Euro, substituindo as doze moedas dos Países da EU. Essas moedas foram classificadas nos arquivos como sendo património cultural. E só assim podia ser. Agora os doze países eram irmãos, falavam a mesma linguagem do dinheiro e as diferenças culturais foram engavetadas.
Mais de 300 milhões de pessoas iam assumir um caminho comum. O caminho da paz e do desenvolvimento. Era um caminho cheio de pedras mas de tropeção em tropeção cada país foi marchando alegremente para a riqueza, alguns e outros para a pobreza. Era o destino. Que se adivinhava.
A EU nasceu no tempo em que os líderes eram fortes e respeitados. Depois transformou-se duma agência de empregos, sem direcção política, sem poderes, navegando ao abrigo das conveniências e das alianças que se foram formando.

Porém no outro continente havia liderança. E que liderança! O Presidente dos EUA chamava-se George W. Bush e só por malvadez os eleitores americanos o tinham escolhido. Era um homem sem poder, sem força, sem projecto. Mas foi com ele que os EUA iriam assumir o papel de polícias do mundo. O resultado era fácil de adivinhar.
E ele não escondeu esse propósito, durante o Fórum de Davos para discussão do futuro da globalização, essa grande ideia que anos mais tarde muitos haverão que condenar, identificou o Irão, o Iraque e a Coreia do Norte como sendo o “Eixo do mal”. Havia objectivos já definidos. E os conselheiros iriam escolher o primeiro alvo. Era só uma questão de tempo para encontrarem o pretexto para nova guerra.
A do Afeganistão atingia já níveis muito exigentes. Por exemplo a operação Anaconda, código de uma ofensiva em que as forças militares dos Estados Unidos, juntamente com as unidades afegãs e de seus aliados, tentaram destruir a Al Qaeda e as forças talibãs.

 Esta operação foi a primeira batalha em grande escala dos Estados Unidos na guerra no Afeganistão em que participaram em combate directo um grande número de forças convencionais. (Tropas especiais). Mas os resultados ficaram aquém dos planos desenhados nos gabinetes de guerra do Pentágono.  O líder dos fundamentalistas escapou bem como a maior parte dos seus acólitos.

 Durante um discurso lembrando o primeiro ano dos ataques terroristas ao World Trade Center e ao Pentágono, o presidente americano George W. Bush pede apoio das Nações Unidas para derrubar o ditador Saddam Hussein  do poder. O mundo, um ano depois dos ataques, mostrou-se dividido e frágil: de um lado o temor da guerra, do outro, o cheiro do dinheiro.
Saddam era o elo mais fraco. Mas tinha muito petróleo e foi fácil encomendar estudos e relatórios que davam o Iraque como sendo um País infestado de armas de destruição maciça e representando por isso um desafio para o mundo livre. Os dados começaram a ser lançados.

Aproveitando a oportunidade, o mundo estava distraído, Israel decidiu organizar mais operação militar sobre a Palestina. Foi um ataque em força que desafiou até a comunidade internacional e a ONU a oferecer o seu apoio à formação do Estado da Palestina. Foi forte a reacção da ONU? Bem, muitas palavras, muitas ameaças e depois o veto. Os povos da Palestina, encurralados numa tira de terreno, ficaram sós. As feridas ainda não deixaram de sangrar.

Em Portugal o Presidente Sampaio dissolveu a Assembleia e convocou novas eleições legislativas.
Ganhou o PSD com um líder que iria fazer em Portugal o tirocínio para outros voos bem mais importantes, bem pagos e sem grande responsabilidade. Bastava um sorriso, uma vénia, e na devida altura alguém se iria lembrar dum político sem obra, mas esperto e risonho. Era o que convinha a uma Europa onde já se anunciavam sinais de desconforto. E o José Manuel esperou um ano para abandonar as promessas eleitorais, esquecer os Portugueses mansos e emigrar. Mas um emigrante de luxo, convenhamos.

A última parcela do império colonial Português, Timor-Leste, torna-se um estado independente. Depois de anos de luta e de sangue derramado assumiriam nas próprias mãos o seu destino.

 Voltemos a coisas mais sérias. A poesia será uma delas. E porque  ficou mais pobre, morreu um poeta. 

Deixo em sua memória uma poesia, que ainda hoje me faz chorar.
“Para sempre”
Por que Deus permite
que as mães vão-se embora?
Mãe não tem limite,
é tempo sem hora,
luz que não apaga
quando sopra o vento
e chuva desaba,
veludo escondido
na pele enrugada,
água pura, ar puro,
puro pensamento.

Morrer acontece
com o que é breve e passa
sem deixar vestígio.
Mãe, na sua graça,
é eternidade.
Por que Deus se lembra
- mistério profundo -
de tirá-la um dia?
Fosse eu Rei do Mundo,
baixava uma lei:
Mãe não morre nunca,
mãe ficará sempre
junto de seu filho
e ele, velho embora,
será pequenino
feito grão de milho.


E depois do choro um grito de alegria. Então não é que o meu Sporting voltou a ser campeão de futebol?



segunda-feira, 22 de outubro de 2012

O TEMPO DOS PRODÍGIOS

ANO 2001

A nave dos loucos começou a jornada. O ano promete ser fértil.
Logo no dia 20 de Janeiro, George W. Bush, toma posse como presidente dos EUA. A viagem prometia.
A doença das vacas loucas que assustou o mundo civilizado, tinha levado as autoridades de saúde a proibirem o consumo de vísceras dos animais, e do cérebro em particular.
Essa proibição teve efeitos nefastos. Porque por falta desse nutriente, havia mais pessoas que se queixavam de esgotamento e de lapsos de memória. E a culpa era das vacas.
A OMS que controlava os números de doentes infectados constatou que em algumas regiões o flagelo não teria tido grandes proporções. A África era uma delas, as pessoas morriam aos milhares mesmo sem a ajuda da doença das vacas loucas.
No mesmo ano em que Milosevic, presidente da Sérvia é preso e apresentado a julgamento pelo Tribunal de Haia, acusado de crimes contra a humanidade, no outro Continente, o General Pinochet, o carrasco do Chile, é preso, fica em prisão domiciliária e depois é libertado.
 A justiça Chilena arrancou a máscara e decidiu em conformidade com os superiores interesses do Estado. Afinal o ditador não fora culpado de nada. Coisas de somenos, talvez.
Importante foi a eleição de Tony Blair para primeiro-ministro da Grã-Bretanha. Era a segunda, talvez a terceira, ou seria a quarta via, já não sei bem, mas diziam ser um outro caminho para o futuro. E assim foi, como mais tarde se comprovou.

E em Portugal?
Em 5 de março, no pior acidente em dez anos em estradas europeias, dois carros e um autocarro de passageiros caem no rio, após quebra de estrutura de ponte metálica, construída em 1886, que ligava os municípios de Castelo de Paiva e Entre-os-Rios, sobre o rio Douro. Foram dezenas de mortos e muitos corpos nunca foram recuperados e lá ficaram sepultados sob as águas.
Desta vez o Ministro admitiu responsabilidade política e demitiu-se. Por razões de consciência, afirmou e para que fossem apuradas responsabilidades e a culpa não morrer solteira. Coisa nunca antes vista, que eu me lembre, pois a culpa nunca encontrou marido. Solteira nasceu e solteira morrerá.
E o Ministro lá seguiu o caminho habitual de todos, ou quase todos, os governantes ao cessarem funções. Um bom lugar numa Empresa Pública ou Privada.

Bem aqui tudo se portava bem e as operações de distribuição do Euro, em notas e moedas pelos Bancos, preparavam o futuro. Porque atempadamente, coisa que não nos é muito habitual, tudo foi feito para que em 1 de Janeiro de 2002, a nova moeda estivesse em circulação. Uma moeda sobre a qual, o País deixaria de ter controlo. A soberania, essa ficou guardada numa gaveta, onde tantas promessas já tinham sido arquivadas.
E a língua Portuguesa ficou mais pobre. Morreu Jorge Amado o Cavaleiro da Esperança.

Mas a nave dos loucos abriu as comportas. Soltou ódios, sementes de guerra e espíritos perturbados.
O mundo iria assistir em directo a um dos episódios mais terríveis, e que já não se pensava ser possível. O 11 de Setembro, a destruição das torres do World Trade Center em Nova Iorque extremarem o conflito civilizacional e a intolerância religiosa. Morreram naquela manhã, milhares de civis, brancos, negros, asiáticos e hispânicos, sem distinção de qualquer credo religioso. Tinham algo em comum, cometeram o crime de estarem, naquele dia, no seu lugar de trabalho.
Depois foi a retaliação. Os EUA começaram a bombardear o mesmo Afeganistão que anos atrás haviam armado para expulsar os soviéticos.
E os mercadores da morte recomeçaram a esfregar as mãos pelo dinheiro que choveria a rodos.
Finalmente aqui, na quietude nos nossos costumes, enquanto alguém se distraiu  e o Valentim  com o Boavista ou o Boavista do Valentim, vai dar ao mesmo, foi campeão de futebol.

E foi mesmo um prodígio!

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

O TEMPO DOS PRODÍGIOS

ANO 2000

Enquanto na noite brilhavam as luzes do fogo de artifício, celebrando o nascer do novo ano, novo século e segundo milénio, os prevenidos do costume, encerrados nas caves e abrigos previamente construídos e abastecidos ou escondidos nos recantos mais remotos das florestas, aguardavam o apocalipse.
Estavam em suspenso e em silêncio. Acreditavam no fim do mundo e eles, os tementes os mais puros seriam a semente do homem novo.
Mas, para sua surpresa, o sol voltou a nascer do mesmo lado e com o mesmo brilho. Os profetas teriam cometido um erro, natural, pois mais ano menos ano, os homens se encarregarão de cumprir a sua missão.
Neste pedaço de terra outrora esquecido, com séculos de história em que o seu nome foi respeitado e temido, havia uma nova madrugada.
Durante o governo do Professor Cavaco, a economia transformou-se, as remessas de fundos comunitários alimentaram os espertos do costume. E vendemos a agricultura e as pescas e oferecemos a vergonha.
Levantamos o nome de Portugal, um País moderno, cheio de auto-estradas, e uma imponente ponte imortalizando o nome do grande navegador Vasco da Gama e dando início a uma nova febre. Não a do ouro, nem a do petróleo, mas sim duma doença esquisita que os financeiros se encarregaram de disseminar. A febre das PPP, que um dia iríamos pagar com sangue suor e lágrimas.
E o dinheiro continuava a correr. O País pobre passou a ter uma região com a mais alta concentração per capita de automóveis Ferrari.
Os Portugueses mais engenhosos inventaram os rebanhos itinerantes para que as verbas comunitárias fossem distribuídas com base em números fabricados. E então era ver a circular nas nossas estradas os jipes topo de gama com a marca IFADAP.
A actividade bancária crescera apresentando resultados fantásticos. O mais conseguido e mais moderno Banco, nasceu. Gente do mais sério e competente que se conhecia foram a força motriz. O Banco chamava-se BPN. E deu de comer a muita gente.
Apesar de tudo Cavaco Silva não se apresentou a novas eleições e o Partido Socialista ganhou as eleições.  Era hora de alimentar outras famílias.
Mas em 2000, ano internacional da cultura e da paz, ameaçava ser o auge do tempo dos prodígios. E António Guterres era então primeiro-ministro.
A festa continuou.
 Em 4 de Janeiro Portugal entrou no clube dos ricos. A Bolsa de Valores de Lisboa começou a negociar em Euros.
Os avisos de que na Bolsa se vendia gato por lebre não surtiram efeito, todos o jogavam na lotaria.
E o mundo mudava, o tempo dos prodígios era cada vez mais evidente.
- O Papa João Paulo II pede perdão pelos erros cometidos pela Igreja Católica, nos últimos 2000 anos, entre eles a Inquisição e as Cruzadas e o desrespeito às outras religiões e culturas na catequização e a hostilização ao povo judeu.
- A Rússia, agora uma Democracia, elegia Vladimir Putin. O saque dos tempos de Yeltsin, os novos multimilionários que ele criou, tiveram que se afastar ou mudar de casaca. Havia outros na fila de espera.
A ciência deu um passo em frente anunciando o primeiro esquema da sequência do genoma humano. Nesse dia muitas barreiras tremeram, afinal todos os homens, eram iguais. E agora?
Sim todos os homens eram iguais mas, como tudo na vida uns havia que eram mais iguais que outros.
É o caso. Ao final do ano George Bush é eleito presidente dos EUA.

A prática iria vencer a teoria?
Ah, quase me ia esquecendo. Ano 2000, o ano de prodígios, viu o Sporting campeão de futebol. E sem favor, este é o facto mais marcante daquele ano.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

O TEMPO DOS PRODÍGIOS



Será sinal dos tempos?
Talvez cansaço e desesperança e mudei de rumo. Olhei para o passado, o futuro que me resta não me seduz.
 Porque eu sempre pensei que os horrores do século passado pertenciam à história, que os erros cometidos tinham servido de lição e dou por mim a pensar que o século XXI, talvez não seja o século da paz, da cultura, do desenvolvimento, do saber, da fraternidade e dos grandes avanços da tecnologia, mas ao serviço do homem.
É que quem se lembra, porque viveu ou porque estudou ou ouviu contar, o século passado foi marcado por guerras sangrentas, que dizimaram dezenas de milhões de pessoas, numa velha Europa dividida, palco de todas as transformações sociais, desde a primeira guerra mundial, à revolução e o triunfo da revolução bolchevique, à ascensão dos regimes fascistas e do regime nazi, prenúncio da hecatombe da segunda guerra mundial, com a maldição dos nacionalismos e o rasto de mais milhões de mortos, nos campos de batalha, nas cidades e nos campos de extermínio, acreditava que, na segunda metade do século seria como a nova  antecâmara do futuro. 
E havia razões para acreditar e também eu me iludi.
As guerras continuavam a existir, mas bem longe, seguiram para o Vietname,




E para a África Portuguesa

Entretanto, longe do flagelo, a Alemanha, responsável por duas guerras mundiais e pelos horrores da limpeza étnica, estava, finalmente em fase de integrar o conceito Europeu e por isso foi uma das signatárias do tratado de Roma, no ano de 1957.
Estava lançado o desafio.
Depois foram os loucos anos em que tudo era permitido esperar, Paz, amor e liberdade.
Quem os viveu nunca mais os irá esquecer.
Pois como esquecer o Maio de 1966 em França?


e a morte do “Che” em 1967?


 ou o assassínio do Presidente Salvador Allende?

Neste canto quase esquecido, em 1968 uma cadeira fez o que o povo havia tentado mas não conseguira. O Ditador caiu da cadeira e do poder, abrindo caminho de liberdade, que chegou numa madrugada de Abril. Portugal, enfim, já não sentia vergonha.
Foram momentos em que num único dia se vivia mais do em toda a vida. 
A vizinha e mal amada Espanha esperou por 1975, ano em que o ditador Franco morreu. E a democracia chegou a um povo que havia sido dilacerado por uma guerra fratricida.

Depois foi uma fuga para a frente. De tratado em tratado, novos países escolheram o caminho da Europa sem que, salvo uma ou outra excepção, alguma vez o povo, tenha sido chamado a sufragar o caminho seguido
Em 1992, foi assinado o Tratado da União Europeia, ou de Maastricht, que consagrou o nome União Europeia e lançou as bases para a moeda única.
Pelo caminho ficaram novas guerras na Europa. A morte de Tito trouxe o pretexto para a destruição da Jugoslávia. À força de bombardeamentos, de crimes contra a humanidade, cenas de uma dureza atroz, gritos de pavor e de ódio adormecido que despertou velhas rivalidades e transformou os Balcãs num inferno.
E a Nato, resolveu talhar os despojos da guerra.

Mas o caminho estava agora traçado. Uma conturbada sessão nocturna em Bruxelas a 2 de Maio de 1998 foi decidido que a União Europeia teria uma moeda comum.
E até nós, os naturais deste rectângulo à beira mar plantado e esquecido, celebramos essa conquista.
O então chanceler federal alemão, Helmut Kohl, considerou a decisão de importância histórica: "A união económica e monetária é uma resposta decisiva à competitividade internacional cada vez mais acirrada, não só entre países, mas entre grandes regiões no mundo. Por isso a importância da zona do Euro, em que residem 300 milhões de pessoas, que ganham 20% dos rendimentos no mundo, uma situação comparável à dos Estados Unidos".
E de repente, com a queda do muro de Berlim a Europa parecia um oásis de paz e prosperidade.

E a Alemanha ganhava o protagonismo que tanto procurou.
 O Euro aproximava-se como símbolo da esperança. Afinal depois de tanta guerra, de tanta miséria, de tanta injustiça, de tanta pobreza, o século XX preparava-se para dar lugar ao século XXI, ao tempo dos prodígios.

domingo, 7 de outubro de 2012

VIDA POR UM FIO

DESESPERO
Aquela noite, o acto de desespero de uma mulher esquecida e a frieza do homem teriam consequências.
Não foram atitudes de revolta, gritos de dor, lágrimas e choro. Foi mais profundo, insidioso como um vírus que lentamente iria corromper uma relação à beira do abismo.
Passaram dias, meses e a alegria com que tinham combatido a adversidade foi desaparecendo.
A rotina de todos os dias não fora afectada, Artur levava os filhos à escola, depois o trabalho e o regresso. Mas começou a justificar a necessidade de regressar ao escritório, tinha trabalho atrasado.
Vivia a correr, sem pensar, mas as horas que passava no gabinete eram mais um escape, uma fuga. O trabalho era um pretexto.
Agora perdera o hábito de falar com Maria de Graça, não tinha tempo, fazia um aceno apressado e partia.
Quando regressava era madrugada, a mulher dormia ou fingia dormir. Artur deitava-se mas pouco dormia.
Na sua mente habitava a vergonha, a cobardia.
Estava no escritório, numa reunião de trabalho preparando os dados para a reunião com a Administração. Pela primeira vez estava atrasado e os resultados não eram aceitáveis.
Procurava razões para a quebra, mas elas eram simples de encontrar, Artur perdera o vigor, a ousadia, a capacidade de liderança e a Divisão pela qual respondia passou a trabalhar em roda livre.
A reunião correu mal como era de esperar. E foi avisado. Na próxima revisão, a realizar no final do mês de Setembro ou os resultados davam sinais evidentes de melhoria ou ele seria afastado das suas funções.
Tivesse esta reunião acontecido dois ou três anos atrás e ele sentiria a censura como um desafio. E sabia, sempre soube, que podia fazer melhor.
Mas agora não tinha energia, nem vontade nem orgulho. Ser despromovido seria quase um alívio. Estava no limite das forças.
Até que um fim de semana, a cunhada, aproveitando um momento em que Artur se isolara no sofá do escritório resolveu intervir, utilizando palavras duras e cortantes:
- Artur, ao fim de tantos anos em que nos conhecemos, chegou o momento de dizer coisas que não vais gostar de ouvir.
Artur levantou-se, olhou para o relógio significando que tinha pressa, mas Fernanda não parou:
- Hoje não vais fugir, não vou deixar sem que me oiças. Já tentei aproximar-me de ti, estendendo-te a mão e oferendo ajuda. Mas tu tens andado ausente, pior, tens mostrado cobardia e isso nunca esperava.
Não sei se encontraste outro apoio, alguém que te tenha ajudado a partilhar o leito. Nem isso me importa, mas duvido que alguém tenha visto uma sombra, um fantasma, que foi aquilo em que te transformaste.
 E o pior é que os teus filhos já sentem a tua ausência, a falta do Pai. Agora são órfãos e sofrem.
Artur, diz-me há quanto tempo não olhas para a tua mulher, enterrada numa cama, definhando dia após dia? Vês quando te deitas, de madrugada e luz apagada?
É que, tu não te deste conta, mas na tua ausência e há algum tempo atrás encontrei a minha irmã tão diferente, que me assustei. O Aníbal o fisioterapeuta e a Rosália contaram-me que ela fraquejara nos exercícios de recuperação, que estavam a correr tão bem. Voltou ao ponto de partida, imóvel sem conseguir avançar uma perna ou estender um braço.
Chamei o médico e ele fez um diagnóstico arrepiante. Fisicamente Maria da Graça nada tinha mas psiquicamente estava à beira da loucura. E assim continua, cada dia mais próximo do fim.
Eu sei a razão porque a Maria da Graça desistiu de viver. E tu também sabes.
Sei que sempre culpaste a Maria da Graça pelo acidente. Inventaste uma traição ou qualquer coisa no género mas, cobardemente, nunca se atreveste a perguntar. Descansa, fica com a dúvida, eu não vou aliviar o peso da tua consciência.
Quando te olhas no espelho o que vês, um homem? Duvido!
Mas agora, hoje, vais ter de enfrentar uma realidade. A vida da minha irmã está presa por um fio.
Nem eu nem os teus filhos te perdoaremos. Tem um gesto de nobreza e sai, vai embora, deixa-nos viver a nossa dor.
Full Moon, 1919
Oil on board
Stangel Gallery, Munich, Germany

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

A VIDA POR UM FIO

ENCONTRO IMPREVISTO

A vida era fardo que Artur carregava. Chegava a casa, depois de passar pela escola e pelo infantário e aqueles momentos em que ouvia os filhos falar da escola, dos amigos, das birras eram a alegria que lhe restava. Depois era fazer companhia à mulher que fazia assinaláveis progressos de recuperação. Ouvia-a contar o seu esforço a coragem com que enfrentava o duro caminho, os olhos brilhando de esperança, promessas de amanhãs felizes. Mas Artur já não era o mesmo. Mudara, passara a ser disponível, interessado, mas ficava cada vez mais longe da Maria da Graça. Ouvia, fazia-lhe uma carícia mas nunca tentara ir além disso.
Maria da Graça tentava a sedução, por gestos e por palavras, mas Artur fazia por não perceber.
Uma noite de verão, ela expôs a sua nudez, afastando o lençol e arfando de desejo confessou:
- Artur eu luto para voltar a ser a mulher que um dia de conquistou. Luto com todas as forças. Fecha os olhos, esquece que eu estou há meses presa a um destino cruel e vem fazer amor comigo. Eu darei tudo para que não te sintas como fazendo um favor. Tu gostas de mim, sempre mo disseste e no fundo do teu coração ainda deve restar uma réstia da paixão que nos uniu. É em nome dessa paixão que eu te peço. Toma-me, dá-me amor, apaga o fogo que arde no meu corpo.
Artur ficou parado, olhando para o corpo que se lhe oferecia. Maria da Graça cerrou os olhos, a reacção do marido fora um golpe inesperado. Ela conhecera bem Artur, sabia como ele reagia. Mas assim não, cometera um erro, reconheceu. Mas continuou:
- Eu reconheço que tu me tens dado o teu amparo, o teu braço a tua mão mas por qualquer razão que não entendo o teu coração está longe. Contudo nunca te pedi nada. Dói-me, acredita que me dói mendigar um pouco de paixão.
Mas nas longas noites de insónia em que choro a vida que quase perdi, dou por mim a pensar no meu egoísmo. E sinto que não posso mais ser um estorvo, um obstáculo na tua vida.
Tu já não me queres, e eu com mágoa aceito dar-te a tua liberdade.
Encontra outra mulher que te possa dar a felicidade que mereces, eu ficarei aqui, lutando e gritando por cada centímetro que ultrapasso. A Fernanda aceita viver aqui em casa, os miúdos também gostam dela e tu serás uma visita sempre bem-vinda.
Foi um momento de silêncio, Artur não sabia o que dizer. Olhou para a mulher, respirou fundo e respondeu:
- Na verdade o teu acidente foi doloroso, para todos nesta família. Não quero ser hipócrita, eu sofri e continuo a sofrer por ti, ou por mim? Já nem sei. Mas uma coisa aconteceu. Naquela noite em que estive na sala de espera do Hospital aguardando a opinião os médicos, naquela noite negra e fria eu encontrei o Artur que não conhecia.
E acredita, ainda hoje aquele encontro imprevisto, no qual a realidade foi mais forte que a utopia, não sei se o Artur que tu conheceste era melhor ou pior daquele que aqui está ao teu lado. Mas diferente, isso é verdade.
 Eu apaixonei-me pela Maria da Graça que conheci, numa tarde quase noite, só numa paragem do autocarro, abrigada da chuva e tremendo com os trovões e com a luz dos relâmpagos.
Eu era jovem inexperiente e pouco ousado. Mas deixei-me prender nos teus olhos que mostravam medo e ao mesmo tempo me desafiavam. E apaixonei-me.
Tu foste a primeira e única mulher da minha vida.
Mas naquela noite escura e fria no hospital, eu olhei para um espelho e tremi. Naquele momento de ansiedade sentia que a minha vida nunca mais seria a mesma, e afinal o Artur jovem alegre e ingénuo da paragem do autocarro desaparecera e era agora um homem triste e vencido.
Envelheci dez anos naquelas horas difíceis. Dez anos em que não vivi.
Sabes qual o maior medo deste tempo de provações? É que tenha perdido o gosto de amar. De amar uma mulher. De me dar sem reservas e partilhar o amor. E esse medo tolheu-me os passos e nunca mais me deixou em paz.
O Artur que tu conheceste estaria nos teus braços, desafiando as dores e as angústias. Mas o Artur de hoje é mais frio, tem medo, tem dúvidas e anda perdido pela vida.
Aproximou-se da mulher, ajeitou-lhe a roupa, limpou-lhe as lágrimas que ela não conseguira suster, fez uma carícia e uma promessa:
- Dá-me algum tempo, sou eu que preciso de ajuda para ultrapassar estes momentos.
O Artur de antigamente já não existe, hoje é preciso dar sentido ao homem em que ele se transformou.
Tu não mereces fingimento e eu não me posso dar. Há qualquer coisa que me atormenta e me consome. Não é uma questão física tua ou minha, é uma falha, mais uma fenda, que ameaça destruir o meu pensamento. O meu coração está frio, bate cada vez mais devagar.

HENRI MATISSE
Odalisque