quinta-feira, 27 de outubro de 2016

POR TERRAS DE ESPANHA


A PONTE

 

Escorregando aqui e ali na caruma dos pinheiros que cobriam a encosta da serra que tinham que subir, os dois irmãos, de sacos atados às costas onde carregavam pacotes de café e de tabaco, seguiam pelo caminho que conheciam e não era o mais utilizado pelos contrabandistas habituais.

Estava uma noite fria de chuva e vento e a jornada tornava-se, hora a hora mais difícil.

Abandonaram o caminho e decidiram parar e recuperar as forças encostados a um castanheiro grande, perdido no meio do pinhal.

O silêncio só era perturbado com o soprar do vento e pelo ruído da chuva que caía sem parar. O Diogo o mais velho e mais experiente, arriscou dizer:

- Oh Chico, assim se tratavam entre si os dois irmãos, tu não pensas que ao aceitar o trabalho fizemos mal?

- Não, ainda agora começou a nossa aventura, a chuva o frio não são nada a que não estejamos habituados, respondeu em voz baixa o irmão mais novo. Continuo a acreditar na história que o cocho nos contou. A aventura até poderá ser um risco, não digo que não, mas desistir? Nem quero pensar nisso.

- Claro, responde o Diogo, eu também não quero desistir, mas falta qualquer coisa na história. Então ele não tinha uma perna, vivia naquela casa perdida no meio dos campos, sem vizinhos e não nos disse como é que foi salvo e em que hospital foi tratado? É isto que me deixa um pouco receoso, porque cortar uma perna não é trabalho de madeireiro. Pronto, não percebo!

- Ficaram em silêncio por mais alguns momentos. Diogo foi o primeiro a pegar no saco e retomar o caminho. António seguiu-o pensando que o irmão tinha razão pois, reconhecia que Ernesto não tinha concluído a história mas, preferia seguir o seu sentir que o rosto do Ernesto, mostrava em cada palavra, a dor, a desilusão e o sofrimento.

Continuaram a marcha e nada lhes pareceu estranho. Não estavam habituados a fazer contrabando e não sabiam que o silêncio é, por vezes, sinal de perigo. Mas Diogo parou, faz um sinal com a mão e saíram do caminho, embrenhando-se no meio da vegetação. Pararam alguns metros a seguir e sentaram-se.

- Viste o vulto escondido atrás das rochas, fumando um cigarro, pergunta Diogo?

 - Sim, também vi. Deve ser um elemento de alguma brigada que está emboscada à espera da coluna dos contrabandistas. Temos de escolher outro caminho. O silêncio foi quebrado por tiros e gritos, não muito longe do lugar onde se esconderam e sem hesitar, começaram a correr pela encosta até que um muro coberto de silvas os fez parar.

Ofegantes respiraram com alívio porque não ouviram mais tiros.

- Chico, diz o Diogo, agora nem sabemos onde estamos e como é que vamos encontrar a casa que o Ernesto nos indicou. Não sei o que fazer!

- Para mim, responde o irmão mais novo, temos de caminhar ao longo da margem do ribeiro que ouço a correr entre os arbustos. Vamos subir e teremos de encontrar um local para passar para o outro lado. Vamos, não tarda faz dia e tudo ficará mais perigoso.

A sorte estava no seu caminho. Encontraram um pinheiro caído sobre o ribeiro e era aquele, só podia ser aquela a ponte que lhes iria permitir atravessar o ribeiro.

Nem hesitaram, começaram a atravessar mas a ponte era frágil e caíram.

Foi reunindo as forças que ainda tinham depois da corrida que conseguiram passar para o outro lado.

- Pronto, diz António, já estamos em Espanha e apesar da roupa encharcada, vamos ter de descansar e depois procurar o sinal de luz que nos indicará a casa onde nos esperam. Assim creio.
  

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

FERIDAS


EU SEI, VI, ESTIVE LÁ

 

Percebo o vosso pedido, mas acreditem, estou cansado.

É tempo de descansar porque o que falta contar será como reviver os momentos de dor, de voltar a ouvir os gritos de gente pedindo ajuda.

Sim eu sei, chorei, prometi continuar a lutar, porque o que eu vi não se apagará por muitos anos que viva.

Fugi de Badajoz, corri para a fronteira na esperança de chegar a Portugal. Na minha fuga encontrei um jovem miliciano espanhol ferido e abandonado numa valeta. Não hesitei, abandonei a espingarda e quis levar o jovem para o hospital de Elvas. Consegui-o mas, o enfermeiro que me ajudou, aconselhou-me que não ficasse por ali. Sabe, disse ele, as autoridades do nosso País, têm por hábito verificar se os nacionais que voltam, fugiram apenas com medo ou foram guerrilheiros que regressaram. E para o saber usam uma estratégia bem simples. No seu caso, obrigam-no a despir a camisa e se no ombro tiver marcas deixadas por uma espingarda de assalto, é um comunista e será metido nos camiões de todos os dias cruzam a fronteira, transportando munições e armas para os falangistas, que navios alemães descarregam, algures, na enseada do rio Sado, e por lá os deixarão ficar.

Sim, dizem que Salazar não gosta de Franco mas, ainda gosta menos dos comunistas e dos Portugueses que não o reconhecem com salvador da Pátria.  

O guerrilheiro ficou no hospital e eu tive que me esconder da Polícia. Foi uma semana, voltei ao hospital e soube que o jovem tinha sido enviado para o matadouro, quer dizer, para a praça de touros de Badajoz.

E então uma força me vez voltar, na esperança de salvar os filhos do médico. Entrei numa cidade quase deserta. Para me esconder, subi para a caixa de carga, duma camioneta com as lonas fechadas. E logo me arrependi. Acabara de entrar no inferno. A camioneta estava cheia de corpos das vítimas do massacre. Viajei escondido entre os corpos dos mortos que seriam enterrados numa vala no meio do campo. Quando o veículo parou, os soldados que iam na cabine, abriram a caixa e começaram a despejar a carga para a vala. Também fui despejado, dei por mim no meio de mortos, homens, mulheres e crianças. Consegui escalar a vala e fugir do inferno, um dos soldados apontou a metralhadora e disparou na minha direção.

Continuei fugindo esquecendo as dores e o sangue que me escorria pela perna. Passei a fronteira, atravessando um ribeiro. Cheguei a terra, caí e fiquei estendido num matagal. Sofri a dores físicas mas o que mais me doeu foi perceber que, afinal, eu tinha fugido.

 


 

 

sábado, 15 de outubro de 2016

CENAS DA GUERRA CIVIL EM ESPANHA


A MISSÃO

Ernesto respirou fundo. Ele precisava de contar a tragédia mas hesitou e enquanto acendia mais um cigarro olhou para os dois irmãos. E sentiu que não tinha o direito de os ferir.

Foi um dos irmãos, o mais velho, que fez questão de conhecer a missão, para a qual pressentia, Ernesto os iria propor. E fez  a pergunta!

 - Nós temos ouvido, com respeito, o que nos tem contado. Acreditamos, porque sabemos a miséria e a desgraça que apanhou os nossos vizinhos. E isso tem-nos sido contado pelos mais velhos que têm exposto a sua vida contrabandeando bens entre as aldeias da fronteira. Alguns foram presos pela guarda em Portugal, perderam tudo o que haviam conseguido na viajem mas outros, e não foram tão poucos assim, não regressaram e nunca mais soubemos do seu destino.

Nós temos filhos ainda crianças, que vão sobrevivendo do que a terra nos dá, sofrendo o frio das noites, aconchegados pelo calor das Mães que trabalham sem descanso. Nós caminhamos procurando trabalho, e quando o conseguimos, mesmo pago a preço de miséria, temos que, com o chapéu na mão,  pedir para que nos paguem. Isto é a nossa vida, a que nos querem convencer ser um milagre da Paz do Salazar.



Veja o senhor, daquele lado gente morta e torturada e deste lado, outros, porventura mais pobres e que, por isso mesmo, correm os riscos de atravessar a fronteira.

Sim, o que nos vai propor é fazer contrabando, não será assim?

 Ernesto acenou que sim e respondeu.
- Eu tenho contado o que sei e o que vi, para que os senhores saibam o que lhes pode acontecer. Sim, o que eu vos irei pedir é contrabando. Daqui levarão bens que eu próprio pagarei. O que receberem da venda será vosso. Mas no regresso, e espero muito que vão conseguir voltar, a contrapartida será a de trazerem duas crianças de 5 e 7 anos de idade, filhos do meu amigo médico e que estarão, assim penso, a salvo em casa de uma família, num pequena quinta, perdida nos arredores da cidade.

O Doutor Gonzalez tinha irmãos que fugiram a tempo e não querem partir para o México, onde têm mais família, sem as crianças. Quando recebi o pedido para salvar as duas crianças, preparei o caminho mas, como podem ver, aqui estou preso a uma cadeira de rodas. Então decidi pedir ajuda. E é o que vos peço.

Pensem bem, hoje é quarta-feira, e o melhor momento para atravessarem a fronteira será a noite de sábado.

Se quiserem podem voltar a casa e regressarem na manhã de sábado. Terei tudo à vossa espera, o mapa do caminho, os lugares a evitar, a aldeia para venderem a mercadoria, etc. Espero que aceitem, vocês são a única esperança que me resta.

- Vamos aceitar, diz o irmão mais novo. Salvar crianças merece correr riscos. 

Nós percebemos que a saúde, a perna amputada, lhe impedem que seja o senhor a ir buscar as crianças e por isso o seu pedido de ajuda. Mas temos tempo, gostaria de ouvir o resto da estória. Conte-nos, por favor.

 

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

ESPANHA . A GUERRA CIVIL


O MASSACRE

 

Tomei uma decisão cujas consequências, de que não me arrependo, ainda hoje as sinto. Foi uma decisão que tomei guiado, apenas, pela vontade de combater as tropas nacionalistas que invadiam pelo sul da Espanha, matando, violando e aterrorizando a população das vilas e mesmo das cidades. Eu ouvi relatos de pessoas que conseguiram fugir dizendo que oficiais relatavam na rádio de Sevilha as atrocidades que as suas tropas, mouras principalmente, haviam cometido durante a noite e que iriam continuar a praticar enquanto houvesse resistentes.

Juntei-lhe a outros e, armados com as poucas armas que nos deram, marchamos na direção ao sul, até encontrar terreno propício para emboscar os invasores. E foi na serra morena que começamos a receber a tiro os soldados bem armados, com carros de combate e metralhadoras. Passado o efeito surpresa tivemos de abandonar as posições. Tivemos de retirar, deixando para trás os mortos, as ilusões, a dor e a raiva e procurando salvar os feridos.

Eu carreguei sobre os meus ombros um jovem ferido que levei nos meus ombros, caminhando dia e noite por montes e carreiros desertos, procurando chegar à cidade e pedir a ajuda do meu amigo médico.

Entrei no consultório do médico e caí exausto. Mas foi depois que senti uma dor tão intensa e que permanece até hoje da minha memória. O jovem acabara de morrer.

 Tanto esforço e nem aquele jovem tinha conseguido salvar. Doeu muito, acreditem.

Ernesto contava aqueles episódios com o olhar fixo no lume que crepitava, de repente calou-se.

Foram alguns minutos. Depois olhou para os dois ouvintes, abanou a cabeça e comentou:

- Aquilo que eu vos irei pedir não será tarefa fácil e vocês correrão alguns riscos. Por isso eu faço questão de vos contar a história da matança na praça de touros de Badajoz. Depois me dirão.

- Eu sei que são homens, que já viveram as dores duma vida difícil e dura. Mas acreditem, não viram nada.

As tropas nacionalistas entraram em Badajoz, encerraram na praça de touros todos os habitantes que não tinham abandonado a cidade e chacinaram milhares de pessoas, homens, mulheres e crianças.

Entre as pessoas assassinadas naquela arena estava o meu amigo Dr. Gonzalez, a mulher e o filho mais velho, um jovem de quinze anos.

Ele que me tinha obrigado a regressar a Portugal, ficou. Pediu-me que se alguma coisa lhe acontecesse eu faria o possível por lhe salvar a família e, sabendo do meu interesse pela poesia ofereceu-me um livro de poemas de Federico Garcia Lorca. Não era um prémio, mas para mim, era mais do que isso.

Ernesto olhando para os dois irmãos e percebendo a inquietação e algumas lágrimas disse:

- Sim, é verdade, foi uma tragédia. Eu sei, eu vi, eu estive lá.

 

 

 

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

DOIS VIZINHOS - MESMO DESTINO


A REPÚBLICA ESPANHOLA

Os dois irmãos mataram a fome mas estavam fascinados com o Pintor e a sua história. Voltaram a lareira onde Ernesto acabava de encher o cachimbo. Aqui estamos desejosos de ouvir a sua estória de vida e nos dizer o que dois homens pobres e sem experiência, poderão fazer!

- Já agora, peço-vos me deixem continuar para melhor entenderem aquilo que vocês poderão ajudar, disse Ernesto.

Falar de mim é fácil. Também eu, um jovem que estudou porque os meus Pais puderam pagar, me deixei envolver nas lutas daqueles que acreditaram que era preciso mudar a sociedade. Fui preso, estive quatro anos encerrado numa prisão, nunca pude ver a família e, sem saber porquê, um dia fui libertado mas com aviso da Polícia política para ter cuidado.

Percebem agora porque eu vivo quase escondido e as pessoas me chamam de comunista.

Eu sabia, porque um guarda prisional mo disse, que o meu Pai tinha morrido de doença e que a minha Mãe, esperou mais alguns meses e fez o seu caminho, suicidando-se.

Vejam o que a vida me reservou.

Voltei a Elvas e comecei e ouvir os meus amigos a falarem sobre a República de Espanha.

Então fui procurar o Doutor Gonzalez, médico de Badajoz, e que tinha acompanhado a doença do meu Pai.

Passei a fronteira e encontrei um homem que me contava a esperança que a República Espanhola tinha trazido para um povo oprimido.

Ele conhecia bem ma história dos conflitos que já haviam começado a dividir os Espanhóis. Num lado os Republicanos, que mesmo entre si lutavam pelas reformas e do outro, os Nacionalistas comandados pelo General Franco defendiam a continuação de exploração nos pobres e dos privilégios da Igreja Católica e os interesses dos ricos.

O médico foi o único amigo, com quem aprendi a melhor perceber a política. Os outros antigos amigos ou apenas conhecidos escondiam-se de mim, por medo, eu compreendi.

E foi por acreditar no meu amigo que, quando se soube que a guerra se aproximava, peguei em armas e fui lutar.


 

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

O PRIMEIRO PASSO


PORTUGAL – A DITADURA DE SALAZAR

 

- O PINTOR

 

Numa casa perdida entre oliveiras e sobreiros, longe dos caminhos os dois irmãos, empurrados pela pobreza pela fome e tremendo de frio, bateram á porta de fechada, com hesitação e algum receio.

Esperaram minutos que lhes pareciam horas, olhando-se como quem hesita entre continuar ou desistir.

Foi então que, vindo das traseiras da casa, apareceu um homem de cabelos brancos, andando com esforço e só possível porque caminhava apoiado em duas bengalas.

- Olá, disse com voz rouca. Desculpem se esperaram muito tempo, mas eu não consigo dormir e passo as noites num anexo das traseiras onde me sento recordando o meu passado. Venham comigo, é mais confortável falar sentados à lareira e bebendo uns golos da aguardente que amigos me deram.

Os irmãos, candidatos à aventura, trocaram olhares e com um encolher de ombros lá se sentaram nos bancos junto ao lume e aceitaram o copo com a aguardente.

A bebida soube-lhe bem, e o calor até deu para se esquecerem do frio e da fome.

Passaram alguns momentos em silêncio, até que o dono da casa levantou os lhos e lhes disse:

- Antes de vos falar da proposta que fiz, creio que ao mais novo de vocês, gostava de fazer algumas perguntas. Por exemplo, vocês já ouviram falar de mim? Já alguém vos disse a razão que levou um homem sem uma perna, ter aceitado viver neste lugar esquecido?

- Eu sei, diz Diogo, que o ano passado quando colhia azeitona por estes lados alguém me disse que o senhor era um comunista fugido à Polícia e que não seria bom ser visto por estes lados, não vá o diabo...

- Sim é o que dizem de mim. E vocês, sabendo isso, aceitam fazer o trabalho que eu vos possa vir a encomendar?

- Acreditamos, diz o irmão mais novo, que não nos irá pedir para matar ou roubar alguém, e porque a vida tem sido madrasta, aceitaremos correr riscos.

- Muito bem, para fazerem o vosso próprio julgamento quero falar de mim, contar-vos a minha vida.

Então é assim:

Nasci há cerca de cinquenta anos, numa aldeia ali para os lados de Elvas. O meu Pai era professor e a minha mãe enfermeira. Tinham algumas posses e, filho único, fui estudar na Universidade de Lisboa, para o curso de direito. Mas o meu prazer era a pintura que foi a minha companheira até perceber que eu pintava e estudava outros lutavam pela vida. E acabei por me deixar influenciar pelas mudanças que se anunciavam e que prometiam uma sociedade nova.

- E o senhor só tem cinquenta anos? Pergunta Diogo, ninguém diria!

- Sim, tem razão, as feridas no corpo e na alma, as perseguições, as desventuras, a guerra, deixaram marcas de que os cabelos brancos são, apenas, um sinal. As marcas reais, essas são bem mais profundas.

Agora vão comer alguma coisa, pois a conversa pode ser longa. Ali em casa tenho pão, enchidos, conservas, fruta e podem escolher. Vão, aqui está a chave, eu fico à vossa espera.