Mário Cesariny
4 – A NOITE
Na véspera da data da consulta, Bárbara estivera de serviço de urgência e chegou a casa pelas nove horas da manhã. Tinha acordado que a Mãe estaria pronta e tomariam um táxi para o Hospital.
Mas chegou tarde, muito tarde, encontrou a Mãe deitada desiludida e vencida. A sua respiração tão fraca e entrecortada parecia um fino raio de luz, prestes a fechar. Ao seu lado na cama, uma caixa de cartão entreaberta mostrava fotografias, cartas, recortes de jornais e percebeu que aquela caixa guardava os segredos duma vida.
A Mãe tinha os sinais vitais muito débeis e não regia aos estímulos que ela, desesperadamente, aplicava. Por entre lágrimas e desespero chamou o INEM e a ambulância com uma unidade de suporte de vida e técnicos competentes seguiram para as Urgências Hospitalares. Quando deu entrada no Hospital já estava em coma.
Esteve assim durante uma semana, sem registar qualquer sinal de esperança. Bárbara sentada junto à cama, acariciava o rosto da Mãe enquanto se perguntava como era possível que ela soubesse tão pouco sobre o passado?
A Mãe fora a companheira mas apenas lhe falara do presente e com os olhos brilhando sobre o futuro. O passado não existia, parara quando Bárbara passara a ser o presente. Agora com a Mãe ausente dava-se conta de que pouco ou nada sabia sobre a mulher que lhe dera a vida. Nem familiares, nem amigos, a Mãe apagara tudo da memória. Durante as férias passavam mais tempo juntas e Bárbara ainda criança interrogava a Mãe sobre coisas tão simples como simples era o que ouvia contar aos colegas. A Mãe ficava absorta e respondia que um dia ela iria perceber. Mas não valia a pena conhecer o que nem sequer era importante.
Da vida, dizia ela, devemos guardar tudo o que nos toca, todas as alegrias, todas as certezas e sobretudo guardar o Amor de quem nos quer bem. O resto são pedaços, imagens e vagas recordações que se perderão ao longo do caminho. Olha para o sol como brilha, a beleza da chuva quando responde aos gritos da terra ressequida, o brilho das estrelas nas noites de lua nova, o canto das aves anunciando a Primavera, o desabrochar das flores, os campos verdes e as árvores oferecendo os seus frutos. Essas imagens são a vida que a Natureza nos dá e é disso que devemos encher o nosso coração. O resto é como uma nuvem que o vento acabará por dissipar.
E foi com estas imagens bem presentes que Bárbara deu acordo a que a máquina fosse desligada. Cumpria o pedido que a Mãe lhe fizera, muitos anos atrás, deixá-la partir como um sopro que se apaga. Madalena Lopes fora vítima, bem antes dos cinquenta anos de idade, de uma doença fatal e para a qual não havia cura.
Com a máquina desligada, Bárbara ficou só, como se esperasse um milagre. Caminhou uns passos até à janela do quarto, viu uma estrela isolada, perdida na imensidão do céu. Esteve assim até que o corpo da Mãe fosse transportado para a casa mortuária. Depois foi executar as últimas vontades. A cremação e as cinzas deitadas no campo, debaixo de uma oliveira ou de um sobreiro.
Voltou à casa vazia, fria despida de recordações. Guardou a caixa onde a Mãe fechara os seus segredos. Um dia, iria abrir e como na Caixa de Pandora tinha a convicção que só encontraria dor, sofrimento e quem sabe uma réstia de Esperança.
Ficou perdida e tomou então a decisão que iria mudar toda a sua vida. Nada a prendia ao lugar onde nascera. Precisava de partir. Mas, para onde fosse, teria que cumprir o sonho e agora já não tinha dúvidas, iria dedicar-se à Investigação Médica.
Andou á procura e passados seis meses recebeu uma proposta que respondia aos seus desejos. Fora admitida como bolseira no Instituto de Investigação em Seatle, na costa do Pacífico dos EUA. Aceitou, iria seguir o seu caminho de coração vazio e levando como bagagem principal a caixa onde a Mãe guardara as suas memórias e que ainda não tivera coragem para abrir.