quinta-feira, 23 de abril de 2020

APOCALYPSE NOW

 
Na minha vida sempre senti que havia um EU e OUTRO.

Desde criança, passando pela adolescência e idade adulta, convivi com as duas faces do meu Eu, brincando muito, estudando pouco, mas aprendendo bem, namoricando sem preconceitos, mas reservando sempre os meus sentimentos.

Brincar, inventando histórias de lutas e guerras que fui buscar aos heróis da História de Portugal. Era um guerreiro armado de lança e espada que eu próprio fazia, utilizando varas de árvores tendo com instrumento de corte uma velha navalha que um dia encontrara  e que escondi.
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Da guerras que inventei, eu fui sempre o vencedor dos combates que travei, dos duelos em que enfrentei os cavaleiros inimigos.  

 Foi o EU, que comandara exércitos, quem percorreu os caminhos da vida, lutando e passando os obstáculos.

Esta minha característica, ser ou não ser, foi uma defesa que me permitiu esconder a minha timidez. Mas ao chegar aos dezoito anos, esta característica da minha personalidade escondeu-se. 

 Porque deixei a cidade onde nasci e vim para Lisboa. Vim a tempo de viver os fabulosos anos sessenta, convivendo com muitos amigos, percorrendo as ruas duma Lisboa que me encantara, e passei a estar atento ao mundo que me rodeava, e que trazia à minha geração, inúmeros desafios.

Fui às “sortes” aquele momento em que nos apresentamos perante uma equipa de médicos, pelo menos um, mais alguns oficiais das Forças Armadas e no final da longa entrevista, pelo menos dois ou três minutos, ouvíamos a decisão” APURADO”.

Sim era uma festa, tinham sido dados como aptos para o serviço militar e para a guerra de África.

Percorríamos as ruas da cidade onde fora feito o nosso registo de nascimento, e depois, com uma fita verde que agitávamos ao vento, olhávamos para as raparigas enchendo o peito com orgulho e desafiando os seus olhares.


Também havia um ou outro que não tinha sido escolhido. Seguiam tristes no fim do grupo. Coitados, pensava eu, não vão ter oportunidade de ser heróis!

Mas a este guerreiro das lutas de infância, a guerra de África, permitiu conhecer a dor e o desespero. E permitiu crescer, enfrentar os desafios. Tudo corria bem.

Mas, quis o destino que tivesse de enfrentar o outro inimigo, com  a força do crepúsculo, com as noites mal dormidas, com a solidão que se sente num hospital, sonhei e voltei a encontrar o Outro. 
Já  o tinha sentido quando agarrado à cama onde o meu Pai estava amarrado para que não arrancasse tudo o que ainda o prendia à vida pensei ter coragem para o ajudar. Não o fiz, mas o sofrimento acompanhou-me sempre. 

O Eu perdeu sentido da vida, enquanto o meu Outro, sonhava  histórias de Amor, de Angústia, de Raiva e de Dor.

Quando acordava, o Eu tentava reconstruir as histórias que sonhara e, na primeira oportunidade tentava escrever.
E tudo me parecia bem, não tinha sequer o hábito de reler o que escrevera.
 
Até que um dia, o Outro, libertado das noites de solidão, deixou de sonhar. E Eu perdi o meu escritor fantasma e fiquei perdido.
 
Senti vontade de apagar tudo, sem deixar uma simples frase, mas desisti. A maior parte dos leitores que me seguiam eram dos EUA, e logo se leram, o que duvido, não terão percebido mais do que o nome do textos. 

E  assumi que o que escrevera não respondia aos gemidos de angústia do Outro, nas noites de pesadelo.

Mas os sonhos de angústia, de raiva e de dor, tornaram-se reais.

O mundo deixou de ser o Paraíso com que muitos sonharam, foi tomado por forças ocultas, guardando poder financeiro, abrindo caminho para guerras das quais eles seriam sempre os vencedores. Como o Eu nos combates de infância.

 Pobre de mim. Agora as forças do mal arranjaram um aliado invisível. Um vírus que tem semeado morte e é tão perigoso, que até sonhar pode ser o fim.  

 E  como Eu agora me custa escrever. 

 Mas tudo acaba como começou.

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