sexta-feira, 24 de junho de 2011

O RAPTO

2 – Um novo olhar pela noite

Morava perto do escritório. Nascera e fora criado no Bairro de Campo de Ourique e com a morte dos Pais ficara com a casa que agora ocupara depois da zanga com Filomena.
Foi a pé percorrendo as ruas que não bem conhecia. Pouca gente, o Bairro tinha uma população envelhecida que se resguardava da noite. Caminhava lembrando os cafés que já não existiam, as lojas entretanto fechadas, o jardim sem jovens. Conhecia a noite na cidade, mas a outra noite, a dos perigos, dos desencontros, da miséria e do abandono. Mas agora no silêncio das ruas que ia percorrendo até casa, sentia uma nova noite, tão calma que lhe apetecia abraçar.
Só ao chegar a casa se apercebeu que não comia desde o almoço. Também não queria procurar em casa alguma coisa para preparar uma refeição ainda que ligeira. Tinha feito algumas compras na mercearia da rua, mas como a cozinha não era o seu lugar preferido, os produtos que escolhera estavam ainda nos sacos de compras. Apenas se lembrara de guardar no frigorífico alguns iogurtes e seria com um deles que acalmaria o estômago.
A casa era confortável mas tão vazia que se tornava fria. Faltava calor humano. Enquanto comia sem gosto um dos iogurtes, olhou para trás e relembrou:
“Fora apenas por orgulho, que não fora capaz de reconhecer o equívoco, que a sua vaidade masculina alimentara, que mais não fora que uma relação platónica mal resolvida. Não dera qualquer explicação quanto Filomena o confrontou e pior, sentira-se o ofendido.
Cometera o primeiro erro, reconhecera agora. Arrumara meia dúzia de objectos pessoais, enchera uma mala de roupa, empacotou a papelada solta e saíra de casa, instalando-se no apartamento onde agora estava.
Na realidade confiava que a sua situação, fruto de uma birra, em breve voltaria à normalidade. Acreditara nisso, mas não dera o primeiro passo. Filomena não tardaria a telefonar para o convidar a regressar.
Cometera um segundo erro. Esperara o contacto que nunca chegara.
Para sua surpresa, a mulher, que exercia advocacia num escritório de prestígio, decidira também, abandonar a casa comum e ir viver para casa dos Pais.
Ele não tinha família próxima. Ficou só. Abdicou um pouco do seu orgulho e conseguiu que a mulher se encontrasse com ele, ocasionalmente, mas nunca manifestando o desejo, verdadeiro, de reatar a vida em comum. Nos encontros esporádicos, falavam como dois amigos, evitando o que os separara. Julgara que pouco a pouco, a situação iria ficando esquecida. Não queria acreditar e reconhecer, que os erros que cometera pudessem pôr em causa, vinte anos dum casamento feliz. Mais outro engano. Ele subestimara o carácter da mulher.
O que mais lhe custava era que ele amava Filomena e sentia-lhe a falta.
Mas teimava em não o confessar e era demasiado orgulhoso para pedir perdão. Quando Filomena, a meio de uma conversa inócua, e perante o enfado com que ele a ouvia falar do seu trabalho, lhe perguntou, num repente, se ele queria o divórcio, estremeceu e respondeu negativamente.
Mas aquela simples pergunta, causara-lhe um estranho mal-estar. Ela já teria outra relação, concluíra roído de ciúmes.”
O iogurte ficou a meio, optou por fumar mais um cigarro, abrindo a janela da sala para deixar entrar a aragem fresca que se sentia. Mas a dor de cabeça não desapareceu.

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